EM AVEIRO AINDA TEMOS "ALMADA"
1º Momento
Algumas paredes pretas dos fumos do fogo e dos líquenes do tempo
poderiam ainda restar do que fora a igreja matriz de São Miguel.
Mas o chão, esse, tinha de ser aplainado para garantir assento ao
pedestal sobre o qual se viria a colocar a estátua do nosso tribuno
maior: José Estêvão.
As ossadas e os restos de jazigos foram todos misturados com o
terriço e o largo, assim conquistado, fronteiro à Câmara Municipal
de Aveiro, passou a permitir uma leitura mais desafogada do seu
edifício e a ter no seu centro o monumento da nossa gratidão
colectiva.
Aliás, o Liceu já estava de pé, por conta do gesto largo e
esforçado, suporte do verbo do nosso parlamentar maior que tinha
sido o primeiro cimento para a sua construção.
/ pág. 21 / Dois dos lados, o de poente e o de sul, do largo do
nosso Poder Local, ao longo dos tempos popularmente chamado de largo
da Cadeia, largo de José Estêvão, largo da Câmara e quase nunca
chamado pelo seu nome oficial de hoje — Praça da República — estavam
completos, pois que o Rei tinha desembolsado uns cobres e decidido
constituir uma sociedade anónima, para que convidou a Câmara como
accionista, vocacionada para a fundação dum teatro, o primeiro
Teatro Aveirense, que se veio a pôr de pé por conta de mais uns
quantos prédios "menores" da velha urbe com destaque para a
albergaria de S. Braz, a preceito destruídos.
Nos outros dois lados do largo, a consciência colectiva ficou
tranquilizada com a manutenção da Misericórdia, a nascente; os
edifícios de primeiro andar que confinavam o espaço, por norte, onde
se contava o velho Correio, esses ficariam guardados para sanha
destruidora posterior.
Entretanto, já se ligara o centro cívico do Poder Local a outra
praça — a do Poder Central — onde se pôs de pé o primeiro edifício
do Governo Civil. Este também carecia de espaço condigno.
Foi fácil: cortou-se a meio o Convento das Carmelitas, deixando-se,
desventrado, meio claustro, virado para a nova praça, permanecendo,
talvez por milagre, a igreja das Carmelitas onde, premonitoriamente,
não se deixou de colocar num dos seus alçados uma placa toponímica
com o nome do "mata frades".
Mas assim se ganhou um espaço bonito, airoso, digno: o largo do
Governo Civil, como o povo lhe chama, mas oficialmente, Praça
Marquês de Pombal, bem ligado ao largo da Câmara, por uma rua
direitinha, tirada a régua e esquadro, a de Gustavo Ferreira Pinto
Basto, paralela à outra, à Direita, torta como sempre foi, porque
quase intocada através dos tempos.
2° Momento
Ora é nesta praça, a de Marquês de Pombal, muito depois do seu
surgimento, já nos anos quarenta, que o engenheiro
Duarte Pacheco
decide mandar construir um airoso e arquitectonicamente escorreito
edifício dos Correios destinado a substituir a velhinha estação que
perdurava num dos vetustos edifícios fronteiros à Câmara Municipal.
Cotinelli TeImo, homem de mão para as arquitecturas do Ministro,
terá sido testemunha do momento da decisão. Respigamo-Io:
"O Ministro dá audiências... Do seu gabinete sai apressado um
Director Geral, um Engenheiro, o Presidente de uma Câmara, um
Arquitecto, não importa quem. Para quem espera, o que importa é que
alguém saia, sinal de que se aproxima a sua vez de ser absolvido ou
condenado inexoravelmente.
/ pág. 22 /
Lá dentro os assuntos sucedem-se e são variadíssimos; cá
fora apenas se tem a certeza, quando sai mais um, que se travou um
combate de ideias e decisões e que quem sai, vem vencido: vencido na
corrida de velocidade do diálogo travado, em que o Ministro o crivou
de perguntas, lhe atirou projectos por terra, sugerindo-lhe
partidos diferentes, exigindo mais, varando-o com as balas certeiras
de uma crítica em rajadas, com relâmpagos nos olhos, um dedo a
empurrar — "não é assim?" — vencido até pelo estalar súbito de um
aplauso: — "Bom! Muito bom! Bonito! Adiante!...".
O Ministro rapa, entretanto, do n.º 2, acabadinho de sair, da
revista PANORAMA, (1941), e mostra aos circunstantes as páginas 18 e
19. É uma nota apreciativa de Carlos Queiroz sobre a exposição de
Almada, "Trinta Anos de Desenho — 1911-1941", que todos lêem com
atenção.
"Para qualquer homem que atingiu, conscientemente, o apogeu
da maturidade, trinta anos de vida é uma vida inteira. Se é artista
ou poeta, se é um ser criador, impõe-lhe o destino, em dado momento,
completa versão da obra realizada.
Foi o que Almada fez agora. Debruçou-se nos seus desenhos e
reconheceu ter valido a pena dar ouvidos ao que o seu Anjo da
Guarda, a todos os instantes lhe dizia: — "Anda! Começa já! Começa
já a cuidar da tua presença!". Daí, esse importante acontecimento
que foi a sua recente exposição (no estúdio do S. P. N) de "Trinta
Anos de Desenho".
Quem, ignorando a biografia do artista, tão rica de experiência
humana, soube observar, profundamente, o desenvolvimento cronológico
dos trabalhos seleccionados, sem dúvida compreendeu que Almada, em
relação a uma época antes dele começada e ainda por terminar, é um
desses casos nacionais de espantosa e perturbante imparidade. Um
artista que sempre exigiu tudo de si mesmo numa tensão permanente de
sondagem, descoberta e renovação. — Futurista. Claro que o foi, mas
só pela razão de ter sido, num país prenhe de memória numa idade
parasitariamente histórica, o maior inimigo do lugar-comum, do
convencionado, do fácil, do bonitinho, do aparencial. Noutro
sentido, foi e é apenas um grande artista moderno. E chega.
A sua personalidade evoluiu ritmicamente, naturalmente, como uma
árvore. Quando se diria que a germinação estancou, surge uma flor
inédita, um fruto inesperado. E tudo a caminho duma simplicidade
mais pura, mais forte, mais profunda.
Na origem, vê-se um poeta cuja exuberante fantasia e múltiplos
recursos de expressão não cabiam, totais, no seu tempo de vida, e
que foi levado, por isso, a escolher, a apurar e a exprimir o mais
sensível dos seus dons: a visualidade.
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O que representa, como valor social, a individualidade
criadora de Almada, pode, talvez, resumir-se deste modo: — Se a
palavra "mestre" não se empregasse, quase sempre, entre nós, senão
para qualificar os artistas que ensinam aos outros os processos da
sua arte, podíamos e devíamos chamar-lhe "mestre Almada Negreiros.”
A terminar a página, um desenho: "Mulher deitada a escrever uma
carta". É bonito", diz o Ministro. "Fica bem neste projecto dos
Correios de Aveiro. Mesmo aqui no átrio, na zona do público, para
que este se comece a habituar a conviver com as coisas da Arte e,
acima de tudo, com aquilo que os nossos "modernos" vão fazendo. E
apontava para a planta dizendo os locais onde antevia os "a fresco"
que resultariam do desenho. Digam-lhe, ao Almada, que pense num
simétrico para o mesmo tema".
3° Momento
Mal acabado o meu curso técnico-profissional e já me encontrava a
trabalhar, nos meus quinze anos de vida.
Uma das minhas tarefas era, religiosamente, todas as manhãs,
deslocar-me aos Correios de Aveiro, para ir buscar à secção de
apartados a correspondência da empresa.
Das 8 h 30 até às 9 h 30, nesses anos de cinquenta, formava-se um
aglomerado de pessoas que me permitia tempo para namorar com os
olhos os "a fresco" bonitos que se quedavam dum lado e doutro dos
balcões de atendimento ao público.
Ao princípio não sabia quem tinha sido o seu autor. Mas que eram,
aos meus olhos de quase menino, um encanto, lá isso eram.
Depois descobri a assinatura.
Nunca soube se teria sido o próprio Almada a transportar para a
parede a pintura dos cartões que terão existido no desenvolvimento
do desenho a que o Ministro Duarte Pacheco se tinha preso.
Mas que a textura resultante da pincelada era uma maravilha que
revelava um total domínio da técnica do "a fresco" lá isso era.
E que o cromatismo, mescla de magentas, ocres, cião, amarelo,
gradantes de tonalidades enriquecedoras do desenho, era dum
chamatismo inebriante, também era facto.
Com os meus botões, ia-me preocupando com o surgir de humidades que,
aqui e além, começavam a escurecer as pinturas.
E ia-me, também, perguntando quando e quem seria capaz de deitar mão
à tarefa de salvaguarda de tão maravilhoso trabalho.
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4° Momento
Um dia chego aos Correios, no meu trabalho de rotina.
O átrio estava numa balbúrdia.
Andaimes por tudo o que era sítio, e operários afanosos a picar tudo
o que tinha assomo de humidade. Meu pensado, meu feito.
Os "a fresco" de Almada já tinham desaparecido à frente do cinzel
dos
trolhas.
Já era tarde demais.
Fiquei apertado num amargo de boca que me deixou nervoso.
Ainda falei. Mas o responsável administrativo disse que tudo tinha
sido "competentemente" autorizado e que os trabalhos de pintura se
iriam executar de acordo com o "legal caderno de encargos".
Depois, foi um escrito do saudoso Eduardo Cerqueira, homem de Aveiro
sempre agarrado aos seus jornais, com o lamento infrutífero.
Um bocado do Almada aveirense tinha sido assassinado.
E o património (?) da minha cidade, mais uma vez, tinha sido
delapidado.
5° Momento
Hoje são 5 de Março de 1993.
A minha mulher Claudette, advogada, acaba de chegar do tribunal de
Aveiro.
De rajada, com um sorriso tranquilizador, diz-me: "As obras do
tribunal ainda lá estão; quer o mural de Martins Barata, quer a
tapeçaria de Almada. Mas já alertei para a necessidade que há de os
acautelar porque, quer um quer outro, estão a precisar de trabalho
de manutenção. O mais estranho de tudo isto — disse-me ela — é que as
pessoas com quem falei lá no tribunal não sabiam de quem eram os
trabalhos. Ficaram preocupadas ao tomarem consciência do valor que
tinham à sua guarda".
Ainda bem, disse eu cá para dentro. Ainda bem que lá estão.
É que, há duas noites, eu tinha sonhado que também estas obras
tinham sido destruídas."
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Ao longo de todo este meu discorrer há um travo amargo provocado
pelas coisas que já tivemos e que, pelas razões já também invocadas,
foram desaparecendo desta terra de Aveiro.
E, particularmente, como natural se torna pela força da sua
história, daquela parte da nossa cidade que hoje constitui a
freguesia da Nossa Senhora da Glória, e
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que corresponde,
em larga medida, em termos geográficos, à Vila Velha alavariense.
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Sou filho duma simbiose difícil: nasci na freguesia da Glória, ao
que me dizem ali para os lados da travessa de São Martinho, mas
filho de pai "cagaréu" marinheiro e de mãe "ceboleira".
Já lá vão os tempos em que se roubavam os andores, se apedrejavam os
namorados das freguesias rivais, se ridicularizavam, reciprocamente,
as referências caracterizadoras dos nascidos na Vila Velha, a
Glória, e na Vila Nova, a Vera-Cruz.
Sou simbiose disso tudo: fruto do salgado do peixe maila cebola e a
chanfana.
E, por isso mesmo, quando olho para a freguesia onde nasci — a
Glória — não sou capaz de nela pensar sem deixar de também me sentir
vestido de camisa de lã branca e de manaia.
O que me dá muita tranquilidade para falar de Aveiro, sem me deixar
envolver pelos liames de bairrismo estreitos.
Até porque, curiosamente, as imagens mais antigas da nossa terra,
correspondem a uma leitura setentrional da vila que, historicamente,
se foi constituindo sobre a colina que definiu as fronteiras da que
é hoje a freguesia da Glória.
Isto é: uma leitura tomada sempre pela perspectiva da Vila Nova ou
do lado da nossa Beira-Mar.
As gravuras que nos dão uma vila de Aveiro, quase, então, só o
território da actual freguesia da Glória, com as muralhas mandadas
construir por El-Rei D. João I e que o Infante D. Pedro tornou
realidade.
Sobre os restos dum incêndio demolidor, os muros dessa muralha
começaram a ser construídos em 1418, para defesa da liberdade da
nossa terra.
Passados quatro anos estavam terminadas as muralhas que definiriam o
núcleo duro do que é hoje a freguesia da Glória.
As muralhas, "/.../ além de quatro postigos e de vários torreões,
tinham oito portas: a Sul, dando entrada na Rua Direita, a da Vila,
ornada com o brasão do /.../ Infante D. Pedro e com a data de MCDXVIII; para oriente desta e em frente da Rua da Corredoura, a do
Sol; seguiam-se as do Campo e do Cojo ou Cais; a da Ribeira, situada
junto à ponte e à rua da Costeira; /.../ para ocidente e para sul,
encontravam-se as do Alboi, de Rabães e de Vagos." — (Aveiro — Notas
Históricas, pág. 39 — Monsenhor João Gonçalves Gaspar).
É desta Aveiro muralhada nos princípios do século XV — só quase a
Vila Velha, hoje freguesia da Glória — que guardamos memória
garantida por gravura executada presumivelmente no séc. XVIII.
Do que escreveu Pinho Queimado, na sua "Memória sobre a Villa de
/
pág. 26 /
Aveiro", narrativa datada de 27 de Janeiro de 1687 e que é a mais
antiga que se conhece, ficaremos com a sua opinião quanto à nossa
freguesia que ele chamou de quarto bairro: /.../ “que é o
melhor e o mais antigo da Villa em que reside quasi toda a nobreza
d'ella; e este somente é cingido de altos muros, obra então
magnífica do Infante D. Pedro filho do sr. Rei D. João o primeiro, e
os melhores, que se conservam desde aquele tempo. Têm estes, como os
de Jerusalem, nove diversas entradas (bem que neles se encontrem
doze portas), e é a primeira a que chamam a da Villa, da qual sae
para o caminho real uma larga rua, que dividindo-se com a igreja do
Espírito Santo em outras duas, já cercadas de frescas hortas, e
lavranças — terra de ceboleiros!, acrescentamos nós —, acompanha
para o nascente as fábricas dos oleiros /.../."
São estas muralhas, que acompanham o período áureo da nossa
comunidade, que Rocha e Cunha, no seu "Relance da História Económica
de Aveiro" — (conferência realizada em 14 de Junho de 1930),
procura explicar como tendo uma "psicologia especial em qualidades e
defeitos, que a distinguem ainda hoje das outras povoações da
região. Uma corrente comercial, se representa materialmente em
intercâmbio de mercadorias, representa também espiritualmente um
intercâmbio de civilizações diferentes. O contacto que essa corrente
estabeleceu com os povos do Norte, sobretudo ingleses, flamengos,
holandeses, a larga permanência de elementos destes povos na própria
vila, imprimiu à burguesia aveirense um carácter, e uma mentalidade
diferente das outras populações /.../."
/.../ este aspecto da mentalidade da sua burguesia dos séculos XV e
XVI ainda hoje é um facto, como ainda é um facto o amor pela ordem,
pela liberdade, pela economia, a tolerância, a morigeração de
costumes, o asseio doméstico, e o gosto pela pompa dos cortejos
religiosos." (páginas 17 e 18 da mesma obra).
Falar da sorte de Aveiro e consequentemente, também, da nossa
freguesia da Glória, é falar da sorte da nossa Ria e da nossa Barra.
Conforme nos diz também Rocha e Cunha no texto duma outra sua
Conferência, realizada em 5 de Maio de 1923, na sede da Associação
dos Engenheiros Civis Portugueses, subordinado ao título "O Porto de
Aveiro", "Nos séculos 15º e 16º a população da região de Aveiro,
favorecida pelas condições do porto marítimo, tinha elevado a um
alto grau as suas aptidões agrícolas, marítimas, industriais e
mercantis, e gozava os benefícios de uma riqueza criada pelo esforço
de muitas gerações. A população da vila regulava por 14.000
habitantes, entre eles muitos estrangeiros, quase a população actual
/.../".
Ainda de acordo com outro texto do mesmo autor. (Relance da História
Económica de Aveiro, págs. 13 e 14, 1930):
"/.../ O movimento do porto (por essas épocas) era contínuo: de dia
e de noite, marítimos, marnotos e medidores, armavam as suas tendas
fora das muralhas
/ pág. 27 /
para carga e descarga dos navios.
Não tocava o sino da ronda, e não se fechavam as portas da vila do
lado da Cale de S. João, para permitir a entrada e saída livre a
qualquer hora, /.../. O armamento para o comércio marítimo tinha
atingido o seu apogeu; a praça tinha cem navios que se empregavam
principalmente no comércio de sal para os portos da costa, e para o
estrangeiro."
"A descoberta da Terra Nova em 1501 criou um novo campo de acção
para as aptidões marítimas da vila. A capacidade de iniciativa, o
poder de realização da sua burguesia marítima, a sua visão nítida
das realidades económicas, afirma-se imediatamente".
Eram cinquenta as caravelas empenhadas nesta pescaria do bacalhau. E
mais à frente:
"A vila concentrava todo o seu esforço nos trabalhos e tráfico do
mar; porém a actividade agrícola da região fornecendo as
subsistências ao grande agrupamento urbano, e alargando assim a
própria capacidade de compra, prestara sólida laboração à actividade
mercantil".
/.../
"A passagem do canal da Barra para o sul do extremo norte das dunas
da Gafanha, em 1575, consequência da acção permanente dos elementos
activos da formação lagunar, produziu fenómenos /.../ que acabaram
de arruinar, nos séculos XVII e XVIII, a economia regional."
/.../
"Em 1611 já a praça de Aveiro não tinha um único navio".
/.../
"A navegação nacional tinha desaparecido".
"No movimento do Porto de Aveiro de 1619 a 1624 figuraram duzentos e
oitenta navios", todos de bandeira estrangeira, "uma média de
quarenta e seis navios por ano."
/.../
"De 1683 a 1699 entraram apenas duzentos e quarenta e cinco navios
estrangeiros, média anual de catorze".
"Durante o século XVIII entraram 238 navios, média anual de 2,3".
/.../
"No fim do século XVII a burguesia mercantil tinha desaparecido."
/.../
"/.../ Os poucos habitantes de Aveiro que podiam reparar as suas
habitações aproveitavam delas os materiais que não podiam conseguir
doutra forma. A miséria remendava-se com os despojos de outra
miséria."
"No fim do século XVIII Aveiro tinha 900 fogos e 1.400 casas e
pardieiros
/ pág. 28 / em ruínas, e desabitados ou abandonados; a
desvalorização da propriedade urbana atingira o seu limite máximo."
Era a crise, a mais profunda.
E a saída passava pela reabertura da nossa Barra.
Os engenheiros Reinaldo Oudinot e
Luís Gomes de Carvalho foram
incumbidos de estudar o problema e optaram em 1802 por uma
"intervenção na região central da laguna, desde a Senhora das Areias
até ao Forte Novo, procurando restituir à laguna, tanto quanto
possível, a sua economia do século XVI".
As muralhas que abraçavam a parte mais significativa do que é hoje a
freguesia da Glória são quase totalmente demolidas para a construção
dos molhes que viriam a viabilizar a Barra Nova que ficou aberta em
Abril de 1808.
As mesmas muralhas que acompanharam a época áurea de Aveiro vieram a
converter-se na alavanca de novo período de reconquista da
prosperidade da nossa região que, seguindo o ritmo das melhorias
introduzidas no nosso porto de mar, tem vindo em crescendo até se
converter na importante cidade que hoje é, no contexto do nosso
país.
E a freguesia da Glória, coração político e administrativo da urbe,
acompanhou essa onda de progresso.
Ainda sou do tempo da
Fonte dos Amores e dos tanques públicos
envolvidos pelos quintais e o grande relvado onde se punha a roupa a
corar.
A Avenida de Araújo e Silva, quando foi aberta em tempos de Álvaro
Sampaio, ainda nos levava para uma zona da freguesia da Glória de
nítido cariz rural.
Pela Rua das Pombas íamos até ao Poço de Santiago aprender a nadar.
Santiago vai para 50 anos era zona de quintas, a verdadeira horta da
cidade. O seminário de D. João Evangelista de Lima Vidal, vi-o
nascer.
Assim como vi converterem-se em zona urbana, com tudo o que é hoje o
chamado Bairro do Liceu, as quintas por onde brinquei na minha
meninice.
E, do mesmo modo, tudo o que é hoje o novo Hospital e o Bairro da
Gulbenkian, onde abundavam ubérrimos campos de cultivo e de árvores
de fruta, por que nos perdíamos em penhoras de garotos.
Lembro-me do incêndio do Governo Civil e da chuva de cinzas que caiu
durante dias sobre as casas da nossa freguesia.
E da construção do Palácio da Justiça por mão-de-obra prisional.
E das minhas deambulações como aluno da Escola Técnica, saltando do
meu Ciclo Preparatório, instalado numa casa que tinha, no
rés-do-chão, uma ourivesaria da Rua Direita e com um quintal que
dava para a viela do Museu, para o Curso Geral do Comércio que
frequentei no edifício então decadente e hoje recuperado e devolvido
à Santa Casa da Misericórdia de Aveiro; e também ainda no edifício
do
/ pág. 29 / então Liceu de José Estêvão, entretanto vazio dos
seus alunos que tinham ido ocupar o Liceu novo do Bairro de Álvaro
Sampaio. Para terminar o curso já no também novo edifício da extinta
Escola Industrial e Comercial de Aveiro, logo no quarteirão seguinte
ao do então Liceu Nacional de Aveiro, na, nesses tempos, recém
aberta Avenida de Salazar, hoje Avenida 25 de Abril.
E, depois, o plano urbanístico de Auzelle que, a ser levado às
últimas consequências, não deixaria de pé quase nada do pouco que os
tempos e os homens foram consentindo do que foi a freguesia da
Glória, coração de Aveiro.
A rua do Seminário ou do Hospital, como o povo lhe chamava, foi-se
convertendo na Avenida de Artur Ravara, recentemente concluída; a
casa de Albino Pinto Miranda foi abaixo há poucos meses e o que
restava do quarteirão onde ainda vi o último bocado das muralhas de
Aveiro deu lugar a uma via que, quase desde Verdemilho desemboca no
novo viaduto que substituiu a velhinha Ponte de Pau, bem ao lado do
sítio onde era a Fábrica Aleluia, logo abaixo da Fábrica Gercar e
das casas das meninas da Fonte Nova, tudo isto já levado pelos
camartelos do progresso.
E ainda me lembro, quando em andanças como vereador do pelouro da
cultura, das minhas fugas até ao sobrado dos Paços do Concelho para
acompanhar o saudoso arquitecto Semide, semi-nu no escaninho-estufa
que lhe servia de "atelier", debruçado no estirador a "esgalhar"
projectos novos para a sempre renovada terra que me viu nascer.
Sonhava-se com o Bairro de Santiago já feito no papel. E com a nova
Universidade que hoje ocupa o Campus de Santiago, onde as hortas
deram lugar a verdes de esperança de uma sociedade mais culta, mais
sociedade.
Com o Porto de Aveiro, a nossa Universidade é, hoje, o mais forte
vector de progresso da freguesia da Glória, da nossa cidade, da
nossa região.
Actualmente, a freguesia da Glória já quase não tem quintais e muito
menos quintas; já não tem fábricas de cerâmica; contar-se-ão pelos
dedos de uma mão as indústrias que permanecem.
Em matéria de indústria só quase nos fica a dos Serviços.
Serviços; Comércio; Ensino, desde o Básico até ao Superior, público
e
privado.
E continua a conter nos seus muros, não se sabe por quanto tempo, a
sede do distrito a que Aveiro dá nome.
E a Câmara Municipal; o Tribunal; o Notariado; o Comando Distrital
da
P.S.P..
E o recente Centro Cultural e de Congressos de Aveiro, feliz
recuperação do que foram as instalações da Fábrica de Jerónimo
Pereira Campos.
E a Sé Catedral; o Museu de Santa Joana, com a Igreja de Jesus; a
Igreja da Misericórdia, a Igreja das Carmelitas; as Igrejas de Santo
António e de S. Francisco; e umas quantas capelas que continuam a
aconchegar o fervor do povo.
/ pág. 30 / No fundo, a actual freguesia da Glória é o reflexo da
vida esfuziante que se sente em toda a cidade. O projecto
urbanístico do Cojo em curso disso é prova evidente, com o regresso
de investimento estrangeiro a fazer lembrar o cosmopolitismo dos
séculos XV e XVI.
É uma terra — a minha terra — sempre e cada vez mais a provocar-me
"saudades de progresso".
Saudades do que sei que teve e que os tempos levaram.
Saudades do que ainda vi e vivi e que a renovação irreprimível fez
desaparecer.
Tudo me fazendo recuperar o que, ainda não há muito, ouvi da boca do
Presidente da Câmara Municipal de Aveiro, Prof. Celso Santos:
"Os problemas que Aveiro constantemente levanta, e consequentemente
a sua freguesia da Glória, resultam da capacidade criativa dum povo
que não pára. Aveiro, e a freguesia da Glória, não param no tempo. O
povo não deixa."
Valha-nos, para tudo isto, o Espírito Santo, já que a igreja deste
nome, como já referimos, também foi na voragem, ficando-nos em sua
substituição a Fonte das Cinco Bicas que, não sei porquê, até só tem
quatro e que nem sempre dão água...
Fiquemo-nos, portanto, e tão só, com as "saudades do que já lá vai e
com os desejos de progresso".
GASPAR ALBINO
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