Aqui existiram muralhas (eliminadas até ao mais
escondido reduto), ergueu-se a imponente igreja de S. Miguel
(arrasada sem deixar rasto), houve o convento das Carmelitas
(decepado e adulterado até quase irreconhecível), houve a igreja do
Espírito Santo nas 5 bicas, houve Stº António e S. Domingos,
palacetes da nobreza e fontes do povo. Tudo isso e até a .feira das
cebolas. (que dará o epíteto aos da Glória) fez parte de um
património, seja material ou imaterial, cuja perda é irreparável.
Foi contra uma certa voragem demolidora e de
.falso progresso. que se mobilizou um grupo de personalidades da
região, para fundar em 1979, a ADERAV, Associação para o Estudo e
Defesa do Património Natural e Cultural da Região de Aveiro.
Ainda que recebida sob certa desconfiança e com
momentos por vezes de grande tensão com os poderes, a ADERAV soube
conquistar o seu espaço e fazer ouvir a sua voz, ainda que incómoda.
As intervenções qualificadas e atentas, algumas vezes recorrendo a
meios de comunicação social desde jornais locais e nacionais à rádio
e à TV; as iniciativas promovidas nas áreas do património natural e
cultural; o importante contributo das suas publicações para um
melhor conhecimento e valorização da riqueza natural e cultural da
região de Aveiro; tudo concorreu para afirmar esta associação.
Imaginemos que a Acrópole de Atenas era mera
inscrição num livro, que o Coliseu de Roma e toda a grandiosidade da
Roma antiga eram hoje meras ilustrações num vaso por acaso
encontrado.
Imaginemos agora Aveiro despojada dos seus
monumentos, a igreja das Carmelitas e a das Barrocas em ruína.
Imaginemos Aveiro sem azulejos, imaginem outra Aveiro sem o que é
hoje o seu Centro Cultural e de Congressos. Imagine-se a cidade com
um imponente arranha-céus de 32 andares no Cojo destruindo por
completo a paisagem urbana. O que seria Aveiro sem o edifício da
Capitania, sem a bela casa do Major Pessoa e todas as marcas de Arte
Nova que são hoje orgulho da cidade e reconhecimento de quantos a
visitam.
Aqueles são alguns exemplos em que a acção da
ADERAV foi decisiva para alterar um certo rumo.
O historial desta associação faz-se também de
derrotas: perdemos a lindíssima casa de Homem Christo e seus
painéis; o claustro do convento de Stº António foi também ele
ocupado; destruíram-se painéis e painéis; demoliram-se edifícios
marcantes; deixou-se degradar muito do edificado com história.
Ao longo dos anos, além das campanhas pelo
património, a ADERAV dinamizou iniciativas marcantes: desde as
visitas guiadas mantidas ao longo dos anos, a primeira das quais
orientada pelo saudoso Eduardo Cerqueira, distinto e empenhado
colaborador da associação; os Colóquios e Jornadas, como os
realizados nos anos 80, sobre Cultura Popular orientado por Hélder
Pacheco, o Encontro Nacional Arte Nova em 1998, as Jornadas do
Património em 2004, as Jornadas de História Local em 2007 e 2008 com
corolário no Congresso de 2009 (parceria com a Câmara Municipal de
Aveiro); o Encontro de Zonas Húmidas em 2008 com a Câmara Municipal
de Águeda.
A ADERAV também deu atenção aos jovens, logo nos
anos 80 organizou-se um campo de trabalho de arqueologia em Cristelo
da Branca e seguindo esse exemplo, recentemente envolvemos alunos da
Escola Secundária Magalhães Lima em Área de Projecto; realizámos um
concurso de trabalhos escolares (artes plásticas e ensaio) para
jovens do concelho (integrado nas comemorações Aveiro 250 anos),
participamos no Conselho Geral da Escola Secundária Mário
Sacramento, organizamos anualmente um passeio de cicloturismo
designado Bike Paper Património, em colaboração com a Associação dos
Antigos Alunos da Universidade de Aveiro.
Na área editorial a ADERAV, com o desaparecimento
do prestigiado Arquivo do Distrito de Aveiro, preencheu essa grave
lacuna com a publicação do Boletim entre 1980-1990 e desde 2004 a
revista Patrimónios, além de um conjunto já considerável de edição
de autores regionais. A edição centrada na região, sua história e
património, justificariam só por si a existência desta associação.
A ADERAV é feita de pessoas concretas e ao longo
dos anos foram várias as personalidades oriundas do meio académico e
do ensino secundário, aliadas a simples cidadãos, de Aveiro, de
Águeda (um dos núcleos iniciais), de Ílhavo, de Albergaria-a-Velha,
de Estarreja, de Murtosa, entre outros.
De entre os que passaram pelas nossas direcções
contam-se desde o trabalhador da indústria que nas suas horas de
ócio se foi cultivando até saber .segredos. do património, até aos
que pelo seu prestígio atingiram lugares públicos de vereadores,
deputados, reitores e ministros, todos tendo em comum a postura
generosa de partilha da sua cultura e conhecimentos e uma
preocupação perante os destinos da comunidade em que vivem.
Ser ADERAV é um pouco como o lema escuteiro
«sempre alerta». Nos últimos 2 anos a ADERAV trouxe de novo para a
praça pública a necessidade de recuperação urgente do conjunto
formado pela igreja do antigo convento de Stº António e da Capela da
Ordem Terceira de S. Francisco. Por nossa iniciativa e pela primeira
vez foi realizado um estudo exaustivo por uma equipa especializada
da Universidade Católica do Porto e mobilizando cidadãos e entidades
conseguimos a integração deste projecto na candidatura Parque da
Sustentabilidade, submetida pela Câmara Municipal de Aveiro,
aprovada pelo QREN e em curso. Após décadas de indiferença, a
freguesia da Glória, Aveiro e o País (visto que se trata de um
monumento nacional) terão mais um dos seus tesouros preservados.
Este exemplo é bem significativo do que pode a
vontade e a organização dos cidadãos materializada nas suas
associações, certamente em diálogo e parceria com o Estado, as
Autarquias, incluindo as juntas de freguesia.
Associações independentes, sem fins lucrativos e
sem subsídios, vivendo apenas dos sócios e das actividades
realizadas, como é o caso da ADERAV, terão futuro? Tudo dependerá da
qualidade da nossa cidadania, do nosso empenhamento na vida
colectiva, da medida do nosso egoísmo ou do nosso amor à terra que
herdamos e cuja identidade é nosso dever passar às gerações
vindouras.
Luís Souto de Miranda
Presidente da Direcção da ADERAV