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Vale Guimarães

Esquiço para um grande aveirense

 

III

 

Neste seu novo mandato, tornou-se-lhe imperativo visitar todas as freguesias do nosso Distrito de forma a adquirir de forma directa uma consciência o mais completa possível das carências sociais, nas vertentes da saúde, da habitação, da educação, do trabalho, da agricultura, da indústria, do comércio…

Os seus mais próximos sabiam do seu profundo desejo de ver criada na cidade de Aveiro uma Universidade. E assim, ainda em Dezembro de 1968, Vale Guimarães trazia a Aveiro o Ministro da Educação Nacional, Dr. José Hermano Saraiva e o Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, Dr. Azeredo Perdigão que, entre outras coisas, visitaram as obras do novo Conservatório de Aveiro, a Secção Feminina do Liceu, a Escola Industrial e Comercial, tudo no sentido de fazer ressaltar as carências a nível formativo que o forte tecido comercial, agro-pecuário e industrial exigiam ver supridas.

 

Não eram decorridos três meses sobre a sua tomada de posse e já a Oposição Democrática de Aveiro, liderada pelo Dr. Mário Sacramento, se aprontava para apresentar requerimento para a realização do II Congresso Republicano, o que fez em 31 de Dezembro de l969. Vale Guimarães sabia que podia contar com a abertura do Professor Marcelo Caetano, que continha, subjacente, um anseio de mudança. Mas igual ambiente não encontrava Vale Guimarães junto do Ministro do Interior, Dr. Gonçalves Rapazote, muito imbuído da linha dura dos tempos de Salazar.

Assim, o despacho autorizando a realização do Congresso só ocorreria no dia 3 de Maio de 1969, impondo certas restrições que resultariam, por certo, de difíceis negociações com o Ministro do Interior.

Com efeito, no despacho subscrito por Vale Guimarães dizia-se:

/…/ “Não serão portanto, permitidas manifestações ou reuniões fora dos recintos em que tenham lugar as sessões e o almoço, bem como a distribuição ou circulação de panfletos ou manifestos pelo público em geral, dado que não sendo ele congressista, não tem de apoiar ou desapoiar as teses e as suas conclusões, cuja publicação pertence, como é regra, aos órgãos normais de informação.”

Costa e Melo logo se apercebeu do que se terá passado, como resulta de posterior escrito seu de 1984:

 /…/ “Pensávamos naquela pobreza (de redacção...) que não acredito fosse do Vale Guimarães mas que ele sancionara e adoptara com a sua assinatura...” /…/

Mário Sacramento, o cidadão empenhado, o médico solidário, o escritor e brilhante crítico literário, já não teria a alegria de ver alcançada a autorização para a realização do Congresso.

Fora a enterrar no dia 27 de Março de 1969 e Vale Guimarães participou no seu funeral para espanto de muitos. Mais tarde viria a ter conhecimento do contido no testamento político de Mário Sacramento: “Façam um mundo melhor, ouviram? Não me obriguem a voltar cá!”

Mas Vale Guimarães já estava a fazer o que podia por um mundo melhor… Vale Guimarães já estava a fazer o que lhe era possível, em nome das tradições de Aveiro, em nome da liberdade possível.

O Secretariado do II Congresso Republicano foi constituído pelos seguintes elementos de Aveiro: Dr. Álvaro Seiça Neves, Dr. Costa e Melo, Dr. Artur Bártolo, Dr. Augusto Chaves, Dr. Carlos Candal, Dr. Flávio Sardo, João Sarabando, Dr. Joaquim Silveira, Dr. Jorge Sarabando, Eng. Santos Pato e Dr. Élio Sucena.

E realizou-se nos dias 15, 16 e 17 de Maio, no Teatro Aveirense. Não se registaram quaisquer incidentes. Tudo correu bem.

 

 

Até ao final da década foi um corrupio de visitas oficiais ao distrito de Aveiro: o Presidente da República, Marcelo Caetano, Ministros de várias pastas, que sei eu. O arrolamento das necessidades que Vale Guimarães levava para Lisboa, a insistência com que buscava soluções, tudo isso obrigava a que a máquina do Governo fosse posta a funcionar. Os projectos iam-se convertendo em obra feita…

E dizia Vale Guimarães:

/…/ “Nas minhas visitas as freguesias do distrito, 170 das quais já percorri, esperando visitar as 40 restantes em Novembro, conversei, em cada uma delas e, na maioria dos casos, em cada um dos seus principais lugares, com centenas de homens e mulheres. Conversa aberta, leal, repleta de sinceridade de parte a parte. As pequenas coisas que me apresentaram, deixava-as logo resolvidas. As de maior vulto, explicava que tinham de ser programadas para se executarem em vários anos. Todos compreendiam que assim tinha de ser.

 

Felizmente, que semanas ou meses depois, muitas dessas obras já de razoável ou grande volume, puderam ser iniciadas 

Portanto, nada de promessas. A promessa é arma só usada por quem não pensa seriamente, em trabalhar pelo povo e para o povo, por quem não faz mais do que dizer palavras.

A preocupação única de Marcelo Caetano, em que todos os seus colaboradores comungam, é a de, com perfeita avaliação das necessidades, fazer evoluir rapidamente o Pais, evoluir em todos os sentidos.” /…/

Em Julho de 1970, era a vez do novo Ministro da Educação Nacional vir visitar o distrito de Aveiro. Isto porque em Janeiro de 1970 sai do Governo, por sua livre iniciativa, o Dr. José Hermano Saraiva, que ocupava até então a pasta do Ministério da Educação Nacional, e para o seu lugar o Dr. Marcelo Caetano convidou o Reitor da Universidade de Lourenço Marques, Prof. Dr. José Veiga Simão, que aceitou o convite que lhe fora endereçado pelo chefe do Governo.

Na sua visita de três dias ao Distrito de Aveiro, (dia 3, 4 e 5 de Julho), era visível a satisfação de Vale Guimarães ao poder contar para o desenvolvimento escolar do seu distrito com importante figura nacional. Assim percorreram 14 dos 19 concelhos do Distrito. /…/

No segundo dia de visita, houve uma jornada de trabalho no Liceu Nacional de Aveiro.

Depois de alguns discursos, entre os quais o do Dr. Vale Guimarães, foi a vez do Dr. Veiga Simão usar da palavra dizendo que “Com gente como a de Aveiro a batalha decisiva da educação será vencida”. Logo de seguida fez uma declaração surpreendente: “Aveiro, particularmente no respeitante aos estudos superiores, tem ainda um sistema educativo incompleto, sendo essa também a opinião do Chefe do Distrito; justo seria pois que ele não viesse a abandonar o seu cargo sem que o assunto que patrocina se encontre solucionado.”

A ideia de Vale Guimarães de fazer com que a cidade de Aveiro tivesse a sua Universidade começava a ganhar contornos, apesar dos vários problemas e obstáculos a ultrapassar. Na época, as Universidades existentes no País estavam situadas em Lisboa, Porto e Coimbra. Em teoria, qualquer hipótese para Aveiro seria afastada, dada a sua proximidade de Coimbra e do Porto. Mas as palavras do Ministro alimentavam esperança.

Entretanto fora criada a ANP, Acção Nacional Popular, eliminada que fora a UN, União Nacional dos tempos de Salazar. Muitos acreditaram que a ANP, como eu acreditei, pudesse vir a ser embrião de um verdadeiro partido político, de base democrata-cristã, que, com os ventos da mudança que Marcelo deixava adivinhar, viesse a conviver com outros partidos representativos de todas as correntes de opinião. Vale Guimarães convenceu-me a fazer parte da Comissão Concelhia da nova formação política. E eu aderi. Estávamos a viver a chamada “Primavera Marcelista”…

 

 

Era frequente ouvir dizer a Vale Guimarães que Aveiro e a sua região eram fruto do seu povo laborioso, e que o termómetro do seu desenvolvimento era o seu  porto de mar em boa hora reaberto e que vinha merecendo profundos melhoramentos.

No dia 2 de Janeiro de 1971 o Ministro das Obras Publicas e Comunicações, Eng. Rui Sanches designava como novo Presidente da Junta Autónoma do Porto de Aveiro Eduardo Cerqueira, pai do tão falado “Aveirismo”. O despacho desta decisão chegou a 13 de Janeiro de 1971.

Eduardo Cerqueira era um aveirógrafo e um aveirófilo de primeira água. A sua pena ágil de excepcional cultor da nossa língua estava sempre ao serviço das boas causas aveirenses.

Tinha um profundo conhecimento da História de Aveiro, revelando-se um profíquo investigador na sua vertente económica. Conhecia bem as vicissitudes da Barra e da Ria de Aveiro e acompanhara sempre o devir do Porto de Aveiro. Não era um técnico mas o seu amor pelas coisas da sua e nossa terra fazia com que ele abordasse os problemas com grande equilíbrio e inteligência. Os seus relatórios assinados como Presidente da Junta Autónoma do Porto de Aveiro continuam a ser deleite para quem os lê. Para além de fonte de ensinamentos, o fulgor do texto torna fácil o que a aridez da técnica nos impõe. 

No acto de posse e antes do brilhante discurso de Eduardo Cerqueira, Vale Guimarães, na qualidade de Governador Civil, afirmou:

/…/ “O surto do tráfego portuário, pelo números crescentes do seu movimento, revela inequivocamente que o Porto de Aveiro tem que ser um grande porto, por imperativos duma predestinação que está para além do que ocasionais politicas queiram ou não queiram”./…/

E referindo-se ao seu amigo Eduardo Cerqueira:

/…/ “A escolha recaiu em quem, na sequência de funções desempenhadas por alguns dos mais distintos e dinâmicos Aveirenses, tem ombros bastante robustos para as responsabilidades a que foi chamado. Aliás o Porto de Aveiro não é produto de técnicos, embora muitos mereçam pela sua competência e devotação, mas de políticos aveirenses persistentes, de elevada craveira mental e moral, com José Estêvão a abrir o rol.” /…/

 

 

Decorreram os tempos com uma certa acalmia política. O lançamento de obras públicas ia-se processando a bom ritmo, apesar das guerras no Ultramar. Mas a renovação desejada, a mudança, nem sempre encontrava ventos de feição.

Neste ambiente morno, no final de 1972, cerca de cinquenta democratas do Distrito de Aveiro, encabeçados pelo Dr. Álvaro Seiça Neves, requereram ao Governador autorização para organizar mais um Congresso Republicano. O Ministério do Interior pôs dificuldades, inclusivamente quanto à designação do Congresso que, por imposição superior, teria que se chamar de Congresso da Oposição Democrática. A autorização ainda foi dada em 1972.

Vale Guimarães, entretanto, tinha ido ao Brasil, integrando uma embaixada aveirense de visita à cidade-irmã de Aveiro, Belém do Pará. Foi uma brilhante jornada de lusitanidade de que os meios de comunicação da época, brasileiros e portugueses, se fizeram eco.

Regressado a Aveiro, e já depois de ter conseguido autorização para que os democratas aveirenses pudessem realizar o seu terceiro congresso, eis que o Governo, pela voz do seu Ministro da Educação Nacional, anunciava a criação de uma Universidade para Aveiro. Vale Guimarães e o reitor do liceu, Dr. Orlando de Oliveira que tanto tinha também pugnado por esse desiderato, viam, assim, começar  a realizar-se um sonho antigo.

Os aveirenses não poderiam receber melhor prenda no Natal de 1972. A concretização do projecto da Universidade de Aveiro viria a modificar radicalmente toda a vida da região aveirense. Este facto histórico só encontra paralelo na reabertura da Barra de Aveiro, ocorrida em 1808.

A 22 de Fevereiro de 1973, o Ministro das Obras Publicas e Comunicações anuncia a construção da nova estrada Aveiro–Viseu. Estoutra notícia foi também recebida com imensa alegria. Era já a Europa a ficar mais perto.

A nova ponte para a praia da Barra estava em construção. E muitas outras obras estavam em curso.

 

 

Abril de 1973 veria a realização do III CONGRESSO DA OPOSIÇÃO DEMOCRÁTICA.

A autorização fora concedida nos precisos termos do pedido formulado, apenas se acrescentando ficar o acesso às sessões limitado aos congressistas inscritos

Em 17 de Março, a Comissão Executiva requerera autorização para, em 8 de Abril, dia do encerramento do Congresso, promover uma romagem à campa do Dr. Mário Sacramento, com concentração junto à estátua de José Estêvão e consequentemente desfile até ao cemitério.

Respigamos do comunicado do Governo Civil emitido a este propósito, e datado de 26 de Março de 1973, algumas passagens:

/…/ “É do conhecimento público que entre as várias correntes oposicionistas algumas há que preconizam o uso da violência e o praticam… /…/. Alem disso, sabe-se haver outras correntes discordantes da realização do Congresso. Nada nem ninguém podia impedir que os sequazes daquelas correntes da violência ou discordantes do Congresso se incorporassem na referida romagem, desvirtuando a sua finalidade e eventualmente provocando alteração da ordem publica.

Em recintos fechados, a responsabilidade do que neles se passar cabe, exclusivamente, aos dirigentes do Congresso e, aí, só a seu pedido, as forças policiais intervirão. Na via ou recintos públicos, ao contrário, cabe às autoridades providenciar por forma a que não seja perturbada a tranquilidade dos cidadãos.

Perante o perigo real de incidentes, possíveis em face do acima referido e que, a verificarem-se, constituiriam afronta aos tradicionais sentimentos de tolerância e independência responsável dos aveirenses e inqualificável atentado às Liberdades Republicanas, a que as gentes desta terra, a começar no Governador Civil, tão afeiçoadas são, compete a este tomar as medidas que as circunstâncias aconselham. Assim, indefiro o pedido na forma como foi apresentado. Mas tendo em atenção que Mário Sacramento foi promotor do I e II Congressos; considerando ainda os seus méritos de pensador e até, se me for lícito invocar razão de ordem pessoal, a amizade que nos ligou, fica autorizado que comissão delegada da Comissão Nacional do III Congresso da Oposição Democrática, constituída por um representante cada Distrito e toda a Comissão Executiva preste, junto à campa de Mário Emídio Sacramento, a homenagem que entenderem adequada. Para o efeito, e para evitar qualquer infracção aos termos desta autorização, a Comissão Executiva comunicará ao Governador Civil, com antecedência de 24 horas, o dia, a hora e os nomes das pessoas que integrarão a referida representação.

Mesmo na tarde da véspera da romagem Vale Guimarães pediu-me que fosse ao Governo Civil. Lá encontrei o saudoso Dr. Manuel Soares, presidente da Concelhia da ANP. E o Governador disse-nos que temia não ter mão, nem no cumprimento estrito do seu despacho de 26 de Março, nem na possível intervenção do corpo da polícia que tinha sido destacado e estava às portas da cidade para intervir se se verificasse o desrespeito do seu despacho. Nós vimo-lo amargurado.

Soube depois que, ao fim dessa mesma tarde, um destacado elemento da Comissão Organizadora do III Congresso terá telefonado ao Dr. Vale Guimarães, que se encontrava ainda no Governo Civil, dizendo que a romagem se iria realizar mesmo sem a autorização do Governo Civil. O Dr. Vale Guimarães voltou a aconselhar que tal não viesse a acontecer, pois que não se responsabilizaria pelo que daí pudesse resultar. As suas palavras não foram ouvidas e a romagem à campa do Dr. Mário Sacramento foi alvo da intervenção da polícia, provocando cenas indescritíveis de pânico e vários feridos.

Mais tarde, também, o Dr. Carlos Candal diria acerca dos tristes acontecimentos que Aveiro viveu, que o Dr. Vale Guimarães havia perdido o controlo da situação e que, acima dele, o Ministro do Interior teria sido quem dera a ordem para a intervenção da polícia de choque.

O que sei é que nada do que se passou foi consentâneo com as mais profundas tradições aveirenses. O que sei é que o que aconteceu mereceu o mais vivo repúdio da população da minha terra. Só o relembrar os factos me incomoda ainda hoje.

 

 

A 21 de Junho de 1973, realizou-se em Aveiro, no Teatro Aveirense, o I Plenário da ANP., que se prolongou até ao dia 24.

Para além das 10 teses aveirenses que haviam sido apresentadas no Congresso de Tomar, foram admitidas mais 11 teses de índole distrital.

Uma das teses era de minha autoria. Apresentei-a a convite do Dr. Vale Guimarães com o título “Formação e Dinâmica de Grupo – um caso concreto”. Nela eu procurava dizer da necessidade de se adoptar uma óptica de “marketing” na formulação das políticas. Eufemisticamente, o que eu queria dizer é que a política devia ser urdida de acordo com os interesses do seu “consumidor final”, isto é, o povo. Nunca me tinha visto naquelas andanças, mas a verdade é que o meu pequeno escrito mereceu a aprovação de Vale Guimarães e concitou o interesse do próprio Marcelo Caetano.

No último dia do Plenário, o Presidente do Conselho proferiu o discurso de encerramento e depois procedeu à inauguração de uma exposição alusiva à obra feita pelo seu Governo no Distrito de Aveiro.

Nessa exposição figurava com destaque uma referência documental à futura Universidade de Aveiro, cujos primeiros edifícios estariam a funcionar a partir de Novembro desse ano.

Já desde Fevereiro de 1972 que tudo apontava para que a Universidade de Aveiro fosse uma realidade, mercê da acção de Vale Guimarães, que anunciava ao Ministério da Educação terem os CTT adquirido um terreno para se implantar edifício que albergasse um bacharelato em Telecomunicações e Electrónica.

O Decreto-Lei n.º 402/73 de 11 de Agosto veio autorizar a criação das novas Universidades em Aveiro, Minho – Braga e Évora. Este decreto apontava para um período de 3 anos para a instalação das universidades, podendo ser renovado por igual tempo.

O Prof. Victor Gil foi o primeiro Reitor da Universidade de Aveiro, tomando posse em 15 de Dezembro de 1973.

A Universidade de Aveiro começou por funcionar em 1974/75 com os primeiros 46 alunos do curso de Electrónica e Comunicações nas instalações que são hoje da PT Inovação, em Aveiro.

Hoje, a nossa Universidade é um dos principais motores de progresso da nossa Região e converteu-se em instituição universitária de referência, nacional e internacionalmente.

 

 

Ao fim de 12 anos, o saudoso Dr. Artur Alves Moreira, que eu servi como seu vereador, escusou-se a continuar à frente da Câmara Municipal de Aveiro. O Dr. José Luís Christo, seu vice-presidente, garantiu a continuidade com os seus vereadores, até que Vale Guimarães convidou o Dr. Mário Gaioso, homem não afecto ao Regime, para presidir aos destinos da Edilidade.

No discurso de posse, Vale Guimarães referiu-se assim ao novo Presidente:

/…/ Ora, Mário Gaioso é um democrata liberal. Tal como a maioria das gentes da Ria. Portanto, é em perfeita concordância com a sua formação política que se presta a servir a sua terra, em posição altamente responsável, colaborando com um Governo que está na origem do espectacular desenvolvimento da extensa região que tem por capital a nossa bela cidade.

Se Mário Gaioso, para ser Presidente da Câmara, tivesse de abdicar das suas melhores preferências ideológicas, então muitos, aqui em Aveiro, não poderiam ter sido chamados, ou virem a sê-lo, ao desempenho de cargos que envolvam confiança. Teríamos, então, muitos de nós, de negar o aveirismo, o que, por certo, nos recusaríamos a fazer.

Mário Gaioso: já não é a primeira vez que você tem sido guardião intemerato do espírito que sempre presidiu à vida da nossa Cidade. Agora, como Presidente da Câmara, esse papel é-lhe entregue em pleno. Fica em muito boas mãos. /…/

Fui disso testemunha, como seu vereador, enquanto se manteve no exercício de funções.

Talvez desiludido pelo facto das flores da mudança tardarem tanto a desabrochar na Primavera Marcelista, Vale Guimarães apresenta a sua demissão de Governador Civil, deixando o cargo a 6 de Fevereiro de 1974.

No dia 9 de Março de 1974, o Dr. Horácio Marçal, que até então desempenhara as funções de Presidente da Câmara Municipal de Águeda. Toma posse como Governador Civil de Aveiro

Mas já a 4 do mesmo mês, Vale Guimarães tinha sido homenageado por todos os presidentes das Câmaras do distrito de Aveiro, excepção feita a São João da Madeira, tendo-lhe sido entregue um pergaminho por todos firmado com o seguinte texto:

“As Câmaras Municipais do Distrito de Aveiro, com excepção da de São João da Madeira, como legítimas representantes dos seus concelhos, em reunião conjunta efectuada, e considerando:

Que o Ex. Sr. Dr. Francisco José Rodrigues do Vale Guimarães, durante os dez anos em que exerceu o alto cargo de Governador Civil de Aveiro, sempre foi fidelíssimo intérprete das aspirações das terras e das gentes do seu distrito, a umas e outras servindo com exemplar dedicação e extraordinária eficiência;

Que no desempenho de tão elevadas funções, Sua Ex.ª sempre defendeu, com igual entusiasmo e carinho, os interesses de todos os concelhos do distrito, proporcionando-lhes, com a notabilíssima acção pessoal desenvolvida, benefícios de vária ordem e de inestimável valor, geradores de um surto de progresso, sem paralelo na história de cada um deles;

Que, em qualquer dos seus dois mandatos, Sua Ex.ª sempre teve, como objectivos finais, plenamente atingidos, o prestígio e o desenvolvimento global e harmónico do distrito de Aveiro – unidade que firmou em bases mais sólidas, força que tornou mais forte, voz que fez ouvir mais longe, deliberaram por unanimidade e aclamação, nomear o Ex. Sr. Dr. Francisco José Rodrigues do Vale Guimarães Cidadão Honorário do Distrito de Aveiro, distinção esta que é concedida a título verdadeiramente excepcional e que no seu simbolismo, constitui testemunho público de imperecível gratidão dos concelhos do distrito.”

No dia 23 de Março de 1974, mais de quatro milhares e meio de homenageantes reuniram-se num jantar para exprimir a Vale Guimarães o apreço e a gratidão pela obra muito valida, que realizou, ao longo de dois mandatos, em dez anos de chefia distrital. Nessa ocasião, usou da palavra o Presidente do Município Aveirense, Dr. Mário Gaioso que enalteceu a obra do homenageado; a entrega do pergaminho foi feita pelo Dr. Nunes dos Santos, Presidente da Câmara Municipal de Espinho; Hamilton de Figueiredo entregou a Vale Guimarães uma expressiva mensagem assinada por milhares de munícipes de S. João da Madeira; o Eng. José Gamelas Júnior, Presidente da Junta Distrital, entregou ao homenageado um álbum com fotografias referentes ao seu segundo mandato. Usaram ainda da palavra o Presidente Distrital da ANP, Dr. Fernando Oliveira; o Padre Manuel Crioulo, em representação das cooperativas agrícolas do distrito; os Deputados pelo circulo de Aveiro, Dr. Veiga de Macedo e Conselheiro Albino dos Reis, Dr. Horácio Marçal; o Ministro do Interior, Dr. César Moreira Baptista que, depois de tecer o elogio do homenageado, referiu um telegrama-mensagem do Presidente do Conselho e fez entrega, por entre vibrantes aplausos, das insígnias de grande oficialato da Ordem do Infante, com que o Chefe de Estado, sob proposta do mesmo Ministro, galardoou Vale Guimarães; e o antigo Ministro da Justiça, na altura Presidente da Câmara Corporativa, Prof. Dr. Mário Júlio de Almeida Costa.

O homenageado agradeceu sublinhando que a resposta à questão da sua “diligência e fidelidade na execução dos programas de chefia que lhe haviam sido confiados, estava dada ali: a presença daqueles milhares de aveirenses de todos os pontos do distrito e de todas as camadas sociais, a deliberação dos municípios honrando-o com inédita cidadania, as deliberações de numerosas colectividades concedendo-lhe gratíssimas mercês, o galardão com que acabaria de ser ali distinguido e, fundamentalmente, a amizade dos seus conterrâneos, bem expressa, sempre e por múltiplos e inequívocos testemunhos, tudo me convence de que cumpri” ...

 

 

Aconteceu, pouco depois, o 25 de Abril de 1974.

E, depois da “Revolução dos Cravos”, várias vezes se deslocou ao Brasil onde seus filhos se haviam radicado por razões económicas... Numa dessas idas esteve quase a ser detido no aeroporto de Lisboa por um qualquer problema de menor importância. Tal não veio a acontecer mercê da pronta intervenção de Otelo Saraiva de Carvalho, lembrado que estava este da sua actuação à frente do Governo Civil de Aveiro.

Reformado dos CTT, Vale Guimarães continuou a ser um dos administradores do Estaleiros de São Jacinto, empresa em tempos fundada pelo saudoso Carlos Roeder e que durante décadas fora quase a única empregadora naquele praia aveirense. Vale Guimarães, no decurso dos conturbados tempos revolucionários, tudo fez para manter em regular laboração os estaleiros. Mas a falta de trabalho era muita dado que os investimentos nacionais na construção naval praticamente tinham parado. Vale Guimarães prescindiu de muito, dando a todos os funcionários um bom exemplo de solidariedade empresarial

 

 

Após a Revolução, surgiram os Partidos Políticos corporizando institucionalmente as várias correntes politicas existentes no País. Alguns deles, como o Partido Comunista e o Partido Socialista, já existiam na clandestinidade. Mas outros, como o Partido Popular Democrático, PPD, e o Centro Democrático Social, CDS, tiveram que se formar com urgência, dada a vertigem da Revolução.

Vale Guimarães, declarando-se independente, afirma-se, contudo, simpatizante do CDS e, publicamente, denunciava o seu sentido de voto nesse partido. E a amigos mais chegados chegou a afirmar que até gostaria de ser Deputado pelo CDS, emulando o senhor seu Pai e o seu ídolo de sempre, José Estêvão. Porém, tal nunca veio a acontecer.

Com a brutal morte de Sá Carneiro e de Adelino Amaro da Costa muita coisa mudou na vida política em Portugal.

Vale Guimarães, já em 1983, começa a acreditar, de acordo com uma lógica supra-partidária, que o Dr. Mário Soares seria, a seus olhos, nas futuras eleições presidenciais de 1986, o melhor candidato à Presidência da República. Num jantar em casa do industrial Ilídio Pinho, Vale Guimarães afirma, na presença de Mário Soares, que, se este viesse a candidatar-se, o apoiaria publicamente.

E Mário Soares veio, efectivamente, a convidar Vale Guimarães para seu mandatário no Distrito de Aveiro, pois sabia que ele tinha sido um homem que tinha acreditado na chamada "Primavera Marcelista" e que tinha sido o único Governador Civil em Portugal que autorizara a realização dos Congressos Republicanos e da Oposição Democrática. Sabia também que Vale Guimarães, com o seu espírito liberal, desejava a democracia, a Europa…

Evidentemente que o convite foi aceite.

No seu último escrito político, uma carta aberta às gentes do Distrito de Aveiro, Vale Guimarães afirmava:

“Sou um Liberal – Conservador. Servi o regime anterior com lealdade e esforçadamente, sem quebra, porém, da minha preferência liberal, independência de juízo, respeito pelos adversários e tolerância, apesar dos apertados condicionalismos políticos da época. Em nome destes princípios autorizei os três únicos Congressos Republicanos realizados após o 28 de Maio, confiei a distintas personalidades da oposição cargos de alto relevo e confiança, rodeei Humberto Delgado das honras devidas a um candidato a Belém. /…/ A orientação politica adoptada teve grande repercussão no País, sendo Aveiro proclamada guardiã da liberdade em Portugal.

Haverá quem não queira compreender que um Homem de Direita, /…/ opte por candidato de esquerda à Presidência da República/…/.

Importa explicar.

O 25 de Abril não me surpreendeu, porque sempre entendi que um regime cerceador das liberdades e autoritário tinha os dias contados. Por isso advoguei a sua auto-evolução democrática /…/

Surpresa foi para mim o surgimento de um MFA bastante dominado por ideais totalitários. Só sabia, isso sim, de sectores militares dispostos a reporem a Democracia, como o atestam os sucessivos golpes tentados em vida de Salazar, o mais expressivo e extenso dos quais foi personalizado pelo próprio Ministro da Defesa, General Botelho Moniz e Marechal Craveiro Lopes, anterior Presidente da República (1961) e em que andei envolvido.

A corrente militar totalitária encontrou apoio decisivo na aliança Povo-MFA, /…/ e foi tão dominante, que a Direita, a Igreja e a Esquerda Democrática ficaram paralisadas.

Tudo parecia estar perdido.

Mas, em começos de 1975, um Partido e um Homem dispõem-se a desencadear a luta em defesa da Liberdade e da Democracia Pluralista: O PS e Mário Soares.

Na Fonte Luminosa e no do jornal "República" tiveram lugar manifestações de grandiosidade impar. Em ambas me integrei, por o instinto me dizer estar ali a salvação. E estava, porque, sem dúvida, foi a sua grandiosidade que levou o MFA e Costa Gomes, Presidente da Republica, a darem luz verde a Democracia. /…/

E assim, ao PS e a Mário Soares, à sua coragem, visão e vontade determinada, é que os Portugueses devem a Liberdade de que gozam, ciente como estou de que foram aquelas manifestações que criaram, além do mais, o ambiente propício à reacção militar do 25 de Novembro, comandada por Ramalho Eanes. /…/”

Depois de uma longa soma de factos históricos justificativos da sua atitude, Vale Guimarães continua assim:

“Entrámos na CEE. Estamos agora na hora da adaptação, cheia de escolhas e de aspectos políticos delicadíssimos.

Em tal quadro a acção do Presidente da República será decisiva. Mário Soares foi o maior obreiro da entrada na CEE e o político português de maior irradiação e prestígio internacional.

São dados preciosos, que não podem ser desperdiçados. /…/

Mário Soares, politico todo dado ao consenso, tolerante razoável, pode facilmente, criar a ponte que seja o local de encontro entre as duas correntes ideológicas, (a esquerda e a direita) o que é fundamental à actividade económica e seu progresso e à indispensável colaboração entre as forcas sociais.

Outra razão de muito peso, para apoiar Mário Soares.”

Vale Guimarães termina assim a sua missiva aos aveirenses:

“/…/ continuarei Homem de Direita, Liberal-Conservador.”

 

Mário Soares conseguiu passar à segunda volta, com Freitas do Amaral, na altura o candidato mais votado, deixando para trás, candidatos da esquerda como Maria de Lurdes Pintassilgo e Francisco Salgado Zenha.

Vale Guimarães recebe a notícia da vitória de Mário Soares já internado no Hospital do Carmo, no Porto.

A posição política que na altura tomou foi pouco compreendida por algumas figuras ligadas ao CDS, seu partido de afeição. Mas cinco anos mais tarde, nas seguintes eleições presidenciais, muitas dessas figuras viriam a dar-lhe razão. O próprio PSD e até algumas individualidades do antigo CDS apoiaram o Dr. Mário Soares, um Presidente de Todos os Portugueses, como ele fazia gala de afirmar.

Vale Guimarães vê agravar-se o seu estado de saúde e pede, em premonitória atitude, que fosse chamado o Bispo de Aveiro, D. Manuel de Almeida Trindade, o qual posteriormente escreveria assim:

“/…/ Regressei a Aveiro ao mesmo tempo triste e contente: triste por me aperceber de que, em breve, ia perder um amigo; contente, por me ter sido dado a mim (a mim porquê?) ajudar a preparar o Dr. Vale Guimarães para o encontro definitivo com Deus.

De facto, poucos dias depois, recebi a notícia de que tinha morrido. As exéquias realizaram-se na Igreja da Vera Cruz, em Aveiro. Aquela tinha sido a Igreja do seu baptismo.”

Em paz consigo e com os homens, o Dr. Vale Guimarães viria a falecer no dia 22 de Fevereiro de 1986. Contava 72 anos de idade e encontrava-se doente há já bastante tempo...

O seu funeral realizou-se no dia 24 de Fevereiro. A Câmara de Aveiro manifestou em comunicado o seu profundo pesar e convidou a população de Aveiro, como se tal fora necessário, a integrar-se no funeral, com paragem em frente aos Paços do Concelho.

A urna contendo os restos mortais de Vale Guimarães esteve em câmara ardente na Igreja da Vera Cruz e, perante uma multidão compacta que transbordava do templo, foi celebrada a missa de corpo presente pelo vigário da diocese, padre Georgino Rocha, que teve nove sacerdotes como coadjutores.

Foi um dia de chuva impiedosa. Apesar disso, milhares de pessoas incorporaram-se no cortejo fúnebre que, a pé, percorreu algumas artérias da cidade que se encontravam apinhadas de gente que se curvava, respeitosamente, à passagem da urna, enquanto o comércio encerrava as suas portas.

Muitas figuras de relevo da vida portuguesa estiveram presentes, com especial destaque para Mário Soares, que se fez acompanhar de sua mulher, Maria Barroso e do seu mandatário nacional, Fraúste da Silva. No final, o Presidente da Republica eleito afirmaria que considerava a morte de Vale Guimarães como “uma grande perda para Aveiro e para o Pais”, sublinhando a sua qualidade de homem liberal que sempre foi,  quer no antigo regime quer depois, sempre fiel às suas convicções. “Sinto-me honrado por ter contado com ele como meu mandatário distrital em Aveiro”, concluiria...

Citemos palavras de Daniel Rodrigues no “Comércio do Porto”:

“Momento particularmente tocante foi quando o cortejo fúnebre parou em frente dos Paços do Concelho, para que a Câmara prestasse a sua homenagem, cumprindo-se deste modo um desejo manifestado por Vale Guimarães, como referiria o presidente da Edilidade Girão Pereira.

Assim, perante toda a vereação e com uma enorme moldura humana como pano de fundo e enquanto a Banda Amizade entoava o hino de José Estêvão, os presidentes da Câmara e da Assembleia Municipal colocavam sobre a urna a bandeira da cidade que Vale Guimarães tanto amou e defendeu.

Em muitos rostos pudemos, então, ver lágrimas rebeldes de comoção. Foi, indubitavelmente, um momento particularmente tocante....”

Vou roubar a Victor Mangerão um seu texto que ele fez publicar no “Jornal de Aveiro” a 27 de Fevereiro de 1986. Gostaria de ter sido eu a escrevê-lo, tal qual.

“UM DOS RAROS”, era o título.

Ele era um Senhor, um dos raros que continuava a ser tão discutido que sobrevivia a todas as discussões. Por isso, quando voltava à cidade, a sua silhueta vagarosa e distinta sobressaía de entre os apressados anónimos e os lojistas vinham às portas cumprimentá-lo.

É que, cada vez são mais os chamados e cada vez são menos os que merecem ser lembrados.

Digam, agora, o que disserem, a memória desta década ficará, nestas terras, marcada por tudo aquilo que à sua volta se disse a favor ou contra. Há homens que, pela sua diferença, se transformam em símbolos e referências obrigatórias. E numa região de tantas areias e águas movediças, honra lhe seja prestada, porque as suas pegadas por aí ficaram inscritas, um pouco por cada lado, sobrevivendo a todas as marés.

Mas apenas palavras e funerais, não. Que, a umas, leva-as o vento, os outros misturam os amigos sinceros com os falsos escondidos. Parecer aveirense é fácil e pouco: ser aveirista exige ser-se outra coisa. Como muito raros, ele sabia-o. E provou-o. Até ao seu derradeiro discurso politico.

Que ao menos, e para já, antes que recomece a Primavera, o seu nome regresse à pedra de uma rua larga desta cidade onde, finalmente, repousa. Todos sabemos que ele é um dos raros que o merece. E o Dr. Vale Guimarães de certeza que há-de gostar.”

Só há poucos meses é que Vale Guimarães viu ser atribuído o seu nome a artéria condigna.

Finalmente foi reparada uma falta grave desta gente de terra de água.

Mas não me fico por aqui e vou recuperar a parte final do discurso de Vale Guimarães na homenagem ao saudoso bispo D. João Evangelista. Dizia ele, com ligeiras alterações que introduzo:

“Pois bem! Tanta saudade e gratidão há que perpetuá-las no bronze. Tal como se fez a José Estêvão, que a cidade lhe erga, também, uma estátua.

Aos Aveirenses deste século toca, em dever, a magna empresa.

A sugestão aqui fica.

A inscrição poderá ser quase assim em parte inspirada em conhecida poesia:

“Não morreu. Tão-somente volveu à terra o que a terra era” /…/ Nós, os de Aveiro, especiais devedores, lhe rendemos, na arte, a nossa homenagem mais duradoura.

Agora, tal texto deveria ser aplicado a Vale Guimarães…

Saibamos erguer-lhe, e com ele, um monumento à Liberdade. Por certo que não ficaria zangado… A sua memória merece-o.
 

 

04-05-2018