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Pintura de Gaspar Albino - Ílhavo, 2001, págs. 5 a 15.

   

 

GASPAR ALBINO,
FILHO DE MARÍTIMO NAUFRAGADO,
EXPÕE NA GAFANHA DA NAZARÉ

 

2. 2. - A actual exposição

Na Centro Cultural da Gafanha da Nazaré, Gaspar Albino mostra agora um
conjunto de 17 trabalhos inteiramente consagrados a temática piscatória e marítima. Fazem parte da exposição 15 óleos sobre tela, do formato rectangular vertical 
/ 12 / (70x90) e dois óleos, um sobre platex e outro sobre tela, igualmente rectangulares, mas de formato horizontal e de maiores dimensões, intitulados Alegoria da Gafanha da Nazaré e Alegoria da Beira-Mar.

Na primeira alegoria, Gaspar Albino elaborou como tema fundeiro uma síntese das igrejas e capelas da vila onde expõe. tendo a estruturar o espaço uma peixeira erguida com o cabaz à cabeça, à direita, e um pescador sentado numa âncora, à esquerda. A metade inferior do óleo. onde se destacam as duas figuras, é tudo um mar ondulado, verde, azul e arenoso, onde as formas e volumes estão delineadas com um traço espesso fazendo lembrar a técnica dos vitrais. A parte superior contém o friso de edifícios cultuais da Gafanha da Nazaré, mais pormenorizada mente representados do que os elementos do espaço do plano intermédio, e até mesmo da figuração humana (repare-se no barco assente no areal, de forma muito esquematizada, e pintado com a mesma cor de areia, da qual se distingue unicamente pelos traços apoiados que o definem). A capa do presente catálogo foi arquitectada com a reprodução deste óleo, a par, em ponto mais pequeno, do Pescador do Dóri. Alegoria da Gafanha da Nazaré também serviu para compor o cartaz da mostra, num bonito, e menos comum, formato, de apreciável impacto visual.

A segunda alegoria, sobre a Beira-Mar aveirense, também é parecida com a anterior, pelo formato e pela composição, mas de colorido e factura algo diferentes. Esta Alegoria da Beira-Mar, pertencente à paróquia de Vera Cruz, está hoje pendurada numa parede do Salão Nobre da Casa Paroquial de Vera Cruz.

No plano superior e fundeiro, o óleo representa os edifícios cultuais da Beira-Mar (tendo ao centro a fachada e a torre da Igreja de Vera Cruz, com a estátua de D. João Evangelista de Lima Vidal na sua dianteira; à esquerda, as capelas de São Gonçalinho e do Senhor das Febres; à direita, estão representadas as capelas de S. Bartolomeu e de N. Sr.ª da Alegria; no horizonte vêem-se as salinas. No primeiro plano, na parte inferior da composição, figuram diferentes tipos de embarcações, canais da cidade, redes, pescadores nas suas fainas, um simbólico e agigantado bacalhau, e uma mulher dessa zona ribeirinha (numa atitude muito similar à da figura feminina do quadro Meu Rico São Gonçalinho). Todos estes elementos estão pintados com cores térreas, cromaticamente contrastando com o plano superior e fundeiro, de cores de céu, azul e branco esbatido. O pescador da esquerda tem um perfil idêntico ao do marítimo que figura isolado na tela Pescador do Bacalhau I, estando os dois cobertos com suestes similares (esta tela já foi estampada in Porto de Aveiro. Relatório e Contas. Report and Accounts, 1997, p. 5).

Desta estirpe, figura na actual mostra, um outro quadro referente a Aveiro, intitulado Meu Rico São Gonçalinho; o azul e branco da capela do santo também tingem a cabeça da mulher sentada no primeiro plano, no areal repleto de barcos; as vestes da mulher da Beira-Mar e os barcos que a envolvem estão tratados com cores térreas.

Com idêntica oposição cromática pode ver-se O Homem do Leme, com a figura do marítimo e a parte superior da roda que comanda o rumo do navio a preencherem dois terços da tela. Composição idêntica, ou bastante parecida, tem a série Marinheiro, Marinheiro I, Marinheiro /I e Marinheiro 11/, cujas figuras / 13 / parecem prisioneiras numa teia feita de roldanas, cordame e correntes, as enxárcias e os cadernais que não amarram só os mastros e as pontes levadiças, mas acorrentam sobretudo os homens da pesca longínqua, os bacalhoeiros neste caso, e os marítimos em geral. O fardo duro da faina gelada da Terra Nova bacalhoeira também está fortemente sugerido no solitário Pescador do Dóri, com o seu ar de crucificado, como que meio enterrado no seu barco caixão. O que nesta tela tem ar de bem vivo é o ascendente bacalhau de contornos azul marinho. Ao longe, na linha do horizonte, bem distante, a esfumar-se está um lugre de quatro mastros (este óleo já foi reproduzido in Porto de Aveiro. Relatório e Contas. Report and Accounts, 1997, p. 17). Além de aparecer, em vinheta, na capa deste catálogo, o quadro foi também utilizado para ilustrar a capa do convite para a inauguração desta exposição de "Homenagem ao Pescador Manuel", que ficará patente no Centro Cultural da Gafanha da Nazaré, de 16 a 29 de Abril.

Em similar estado de alma parece estar o esmagado pescador da tela Safar o Peixe, como se temesse que o peixe lhe escapasse ou lhe caísse em cima da cabeça.

Um pouco mais sereno, se bem que também se lhe note um ar inquieto, está o maciço bacalhoeiro, de brônzeo perfil. do quadro Pescador do Bacalhau I, que, como já dissemos um pouco acima, parece ser o mesmo homem que figura à esquerda na Alegoria da Beira-Mar (estes dois quadros já ilustraram a publicação Porto de Aveiro. Relatório e Contas. Report and Accounts, 1997, p. 9 e 5). O pescador de bacalhau ocupa toda a metade esquerda, com o peixe preso em arco nas mãos enluvadas.

Pescador do Bacalhau /I mostra um outro homem da faina da Terra Nova, com um joelho no chão, zagaiando um peixão todo azulado, que o pescador parece ignorar com o olhar perdido em outras longínquas paragens; o bacalhau foi pintado com um atenuado azul marinho, contrastando com a cor quente das vestes do pescador. O peixe e homem ocupam dois terços do óleo, tendo o terço restante, na parte superior esquerda, sido reservada à evocação, esquematizada e de cores apagadas, do mar e das embarcações.

A tela Coser o Pano mostra uma outra ocupação dos bacalhoeiros no convés do lugre. Outro óleo, baptizado Escalar o Peixe (esta tela já circulou estampada in Porto de Aveiro. Relatório e Contas. Report and Accounts, 1997, p. 47) e mais um outro quadro, A Salga, evocam as tarefas para a conservação do pescado executadas a bordo do lugre, no porão do navio. Outro óleo, intitulado Lavagem nas Tinas, diz respeito à seca do bacalhau e mostra, de costas e a estruturar a composição, uma das quatros representações femininas da mostra, sobretudo consagrada à faina maior, dura tarefa executada exclusivamente por homens, ou escravos, como as ideologias dos leitores, ou dos visitantes da exposição, o entenderem.

Completam ainda a mostra mais dois quadros com temática lagunar:
Pescador da Ria e Varina. No primeiro, um estático pescador de cores garridas vestido, segura na mão direita um remo, ao alto erguido, como se dum estandarte se tratasse, destacando-se esta figura num fundo azul e branco, no qual está tenuemente esquissada uma embarcação da ria; no primeiro plano,
/ 14 / até meio altura do pescador, e à suo direito também, no porte inferior esquerdo do quadro, está figurado um leme, no qual o marítimo parece apoiar-se. No segundo, a peixeira, avança com a sua canastra à cabeça, tendo ar de caminhar sobre as ondas e de ir cortando outras vagas com o seu esguio corpo, A vendedora de peixe ocupa toda a metade esquerda da tela, sendo a outra metade preenchida com embarcações. As tonalidades dominantes são o azul e o vermelho, realçados pelo branco da vela e do fundo do quadro.

Nos quadros de formato médio consagrados à safra bacalhoeira, sobretudo na representação dos lugres e dóris, e dos galerianos que neles moirejam, apanhados e embaraçados nas redes do mar e da vida, as cores dominantes são barrentas e ferruginosas, de madeira velha ou de lama, ou de sangue, de forte carga simbólica. O ar soturno, solitário e cansado - por vezes de exaustão -, a temática e tonalidade cromática dominantes fariam pensar na pintura neo-realista se o pintor não pertencesse a outras hostes ideológicas e a outras crenças.

Alguns dos traços biográficos que salientei, como os naufrágios que seu pai sofreu - e como já referi também, esta mostra pretende ser uma homenagem ao progenitor do artista e a todos os que partilharam (e ainda têm) a mesma sorte -, essas recordações do passado, não esquecido, explicam em parte esse ar neo-realista que banha as telas de médio formato. Na exposição" 1 00 Anos de Artes Plásticas Aveiro 1882-1982", na qual como já relembrámos também, Gaspar Albino participou com três trabalhos, Arlindo Vicente mostrou um retrato de Pescador (Ver reprodução no Boletim Municipal de Aveiro - 700 Anos de Artes Plásticas. Aveiro /882-/982, n.º 1, Março de 1983, p. 37) de estilo expressionista lírico, e ao mesmo tempo neo-realista, muito semelhante à ilustração de pastores que pintou para A Lã e a Neve de Ferreira de Castro, o muito grande cidadão e escritor tão esquecido hoje em dia, e muito particularmente em Aveiro, situação imperdoável, que urge corrigir. Esse Pescador de Arlindo Vicente, de 1963, pelo ar desolado, sofrido, pelas suas grossas mãos e o peixe que a direita segura, pode, esquecendo a técnica do pincelada, ser aproximado de algumas das telas de Gaspar Albino desta actual exposição. Arlindo Vicente expôs também um Apontamento para um Retrato do Dr. Frederico de Moura (Ver referência in Boletim Municipal de Aveiro (700 Anos de Artes Plásticas. Aveiro /882-/982 n.º 1, Março de 1983, p. 37). Recorde-se que Gaspar Albino delineou a capa do livro Ressonâncias, colectânea de textos de Frederico de Moura, na qual imprimiu um retrato do autor de sua própria autoria, homenageando a mesma importante personalidade a quem Arlindo Vicente também rendera preito, já em 1938.

Gaspar Albino é um pintor autodidacta, como quase todos os pintores da região – de Arlindo Vicente o Cândido Teles, dos três irmãos, Manuel, Jeremias e Hélder Bandarra a Artur Fino, de Vasco Branco a Claudette Albino, de Fernando Gaspar a José Monteiro, de Quintas a António Neves. de Jorge Trindade a José Penicheiro, ete. –, que também foram, ou são ainda, totalmente, ou quase, autodidactas, sem terem frequentado nenhuma academia de ensino superior de artes plásticas, por aqui não existir então, e ainda hoje, falta que seria muito proveitoso para o cultura regional, e mesmo nacional, rapidamente tentar suprir. Quantos mais talentos não seriam estimulados, descobertos, aperfeiçoados. com / 15 / a criação de uma escola desse género?

Em guisa de conclusão, resta-me formular votos para que Gaspar Albino consiga vencer mais uma batalha, da qual me tem falado, amiudada e ansiadamente, destinada a conseguir dedicar-se mais à pintura e ao desenho, já que os duros percalços da vida – que, com pulso de ferro, soube parcialmente ultrapassar – não lhe permitiram ir tão longe como desejava, nem no campo artístico, nem na formação jurídica superior que teve que abandonar pelas circunstâncias que já evoquei.

É esse todo o mal que lhe desejo.

Pedro Calheiros
(Professor da Universidade de Aveiro)

 

 

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