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2. 2. - A actual exposição
Na Centro Cultural da Gafanha da Nazaré, Gaspar Albino mostra agora
um
conjunto de 17 trabalhos inteiramente consagrados a temática
piscatória e marítima. Fazem parte da exposição 15 óleos sobre
tela, do formato rectangular vertical /
12 / (70x90) e dois óleos, um sobre platex e outro sobre tela,
igualmente rectangulares, mas de formato horizontal e de maiores
dimensões, intitulados Alegoria da Gafanha da Nazaré e Alegoria da
Beira-Mar.
Na primeira alegoria, Gaspar Albino elaborou como tema fundeiro uma
síntese das igrejas e capelas da vila onde expõe. tendo a
estruturar o espaço uma peixeira erguida com o cabaz à cabeça, à
direita, e um pescador sentado numa âncora, à esquerda. A metade
inferior do óleo. onde se destacam as duas figuras, é tudo um mar
ondulado, verde, azul e arenoso, onde as formas e volumes estão
delineadas com um traço espesso fazendo lembrar a técnica dos
vitrais. A parte superior contém o friso de edifícios cultuais da
Gafanha da Nazaré, mais pormenorizada mente representados do que os
elementos do espaço do
plano intermédio, e até mesmo da figuração humana (repare-se no
barco assente no areal, de forma muito esquematizada, e pintado com
a mesma cor de areia, da qual se distingue unicamente pelos traços
apoiados que o definem). A capa do presente catálogo foi
arquitectada com a reprodução deste óleo, a
par, em ponto mais pequeno, do Pescador do Dóri. Alegoria da Gafanha
da Nazaré também serviu para compor o cartaz da mostra, num bonito,
e menos comum, formato, de apreciável impacto visual.
A segunda alegoria, sobre a Beira-Mar aveirense, também é parecida
com a anterior, pelo formato e pela composição, mas de colorido e
factura algo diferentes. Esta Alegoria da Beira-Mar, pertencente à
paróquia de Vera Cruz, está
hoje pendurada numa parede do Salão Nobre da Casa Paroquial de Vera
Cruz.
No plano superior e fundeiro, o óleo representa os edifícios
cultuais da Beira-Mar (tendo ao centro a fachada e a torre da Igreja
de Vera Cruz, com a estátua de D. João Evangelista de Lima Vidal na
sua dianteira; à esquerda, as capelas de São Gonçalinho e do Senhor
das Febres; à direita, estão representadas as capelas de S.
Bartolomeu e de N. Sr.ª da Alegria; no horizonte vêem-se as salinas.
No primeiro plano, na parte inferior da composição, figuram
diferentes tipos de
embarcações, canais da cidade, redes, pescadores nas suas fainas, um
simbólico e agigantado bacalhau, e uma mulher dessa zona ribeirinha
(numa atitude muito similar à da figura feminina do quadro Meu Rico
São Gonçalinho). Todos estes elementos estão pintados com cores
térreas, cromaticamente contrastando com o plano superior e
fundeiro, de cores de céu, azul e branco esbatido. O pescador da
esquerda tem um perfil idêntico ao do marítimo que figura isolado
na tela Pescador do Bacalhau I, estando os dois cobertos com suestes
similares (esta tela já foi estampada in Porto de Aveiro. Relatório e
Contas. Report and Accounts, 1997, p. 5).
Desta estirpe, figura na actual mostra, um outro quadro referente a
Aveiro, intitulado Meu Rico São Gonçalinho; o azul e branco da
capela do santo também tingem a cabeça da mulher sentada no
primeiro plano, no areal repleto de barcos; as vestes da mulher da
Beira-Mar e os barcos que a envolvem estão tratados com cores
térreas.
Com idêntica oposição cromática pode ver-se O Homem do Leme, com a
figura do marítimo e a parte superior da roda que comanda o rumo do
navio a preencherem dois terços da tela. Composição idêntica, ou
bastante parecida, tem a série Marinheiro, Marinheiro I, Marinheiro
/I e Marinheiro 11/, cujas figuras /
13 /
parecem prisioneiras numa teia feita de roldanas, cordame e
correntes, as enxárcias e os cadernais que não amarram só os
mastros e as pontes levadiças, mas acorrentam sobretudo os homens da
pesca longínqua, os bacalhoeiros neste caso, e os marítimos em
geral. O fardo duro da faina gelada da Terra Nova bacalhoeira também
está fortemente sugerido no solitário Pescador do Dóri, com
o seu ar de crucificado, como que meio enterrado no seu barco
caixão. O que
nesta tela tem ar de bem vivo é o ascendente bacalhau de contornos
azul marinho. Ao longe, na linha do horizonte, bem distante, a
esfumar-se está um lugre de quatro mastros (este óleo já foi
reproduzido in Porto de Aveiro. Relatório e Contas. Report and
Accounts, 1997, p. 17). Além de aparecer, em vinheta, na capa deste
catálogo, o quadro foi também utilizado para ilustrar a capa do
convite para a inauguração desta exposição de "Homenagem ao
Pescador Manuel", que ficará patente no Centro Cultural da Gafanha
da Nazaré, de 16 a 29 de Abril.
Em similar estado de alma parece estar o esmagado pescador da tela
Safar o Peixe, como se temesse que o peixe lhe escapasse ou lhe
caísse em cima da cabeça.
Um pouco mais sereno, se bem que também se lhe note um ar inquieto,
está o maciço bacalhoeiro, de brônzeo perfil. do quadro Pescador do
Bacalhau I, que, como já dissemos um pouco acima, parece ser o mesmo
homem que figura à esquerda na Alegoria da Beira-Mar (estes dois
quadros já ilustraram a publicação Porto de Aveiro. Relatório e Contas. Report and Accounts,
1997, p. 9 e 5). O pescador de bacalhau ocupa toda a metade
esquerda, com o peixe preso em arco nas mãos enluvadas.
Pescador do Bacalhau /I mostra um outro homem da faina da Terra
Nova, com um joelho no chão, zagaiando um peixão todo azulado, que o
pescador parece ignorar com o olhar perdido em outras longínquas
paragens; o bacalhau foi pintado com um atenuado azul marinho,
contrastando com a cor quente das vestes do pescador. O peixe e
homem ocupam dois terços do óleo, tendo o terço restante, na parte
superior esquerda, sido reservada à evocação, esquematizada e de
cores apagadas, do mar e das embarcações.
A tela Coser o Pano mostra uma outra ocupação dos bacalhoeiros no
convés do lugre. Outro óleo, baptizado Escalar o Peixe (esta tela
já circulou estampada in Porto de Aveiro. Relatório e Contas.
Report and Accounts, 1997, p. 47) e
mais um outro quadro, A Salga, evocam as tarefas para a conservação
do
pescado executadas a bordo do lugre, no porão do navio. Outro óleo,
intitulado Lavagem nas Tinas, diz respeito à seca do bacalhau e
mostra, de costas e a estruturar a composição, uma das quatros
representações femininas da mostra, sobretudo consagrada à faina
maior, dura tarefa executada exclusivamente por
homens, ou escravos, como as ideologias dos leitores, ou dos
visitantes da exposição, o entenderem.
Completam ainda a mostra mais dois quadros com temática lagunar:
Pescador da Ria e Varina. No primeiro, um estático pescador de cores
garridas
vestido, segura na mão direita um remo, ao alto erguido, como se dum
estandarte se tratasse, destacando-se esta figura num fundo azul e
branco, no qual está tenuemente esquissada uma embarcação da ria; no
primeiro plano, /
14 /
até meio altura do pescador, e à suo direito também, no porte
inferior esquerdo do quadro, está figurado um leme, no qual o
marítimo parece apoiar-se. No
segundo, a peixeira, avança com a sua canastra à cabeça, tendo ar de
caminhar sobre as ondas e de ir cortando outras vagas com o seu
esguio corpo, A vendedora de peixe ocupa toda a metade esquerda da
tela, sendo a outra metade preenchida com embarcações. As
tonalidades dominantes são o azul e o vermelho, realçados pelo
branco da vela e do fundo do quadro.
Nos quadros de formato médio consagrados à safra bacalhoeira,
sobretudo na representação dos lugres e dóris, e dos galerianos que
neles moirejam, apanhados e embaraçados nas redes do mar e da vida,
as cores dominantes são barrentas e ferruginosas, de madeira velha
ou de lama, ou de sangue, de forte carga simbólica. O ar soturno,
solitário e cansado - por vezes de exaustão -, a temática e
tonalidade cromática dominantes fariam pensar na pintura
neo-realista se o pintor não pertencesse a outras hostes
ideológicas e a outras crenças.
Alguns dos traços biográficos que salientei, como os naufrágios que
seu pai sofreu - e como já referi também, esta mostra pretende ser
uma homenagem ao progenitor do artista e a todos os que partilharam
(e ainda têm) a mesma sorte -, essas recordações do passado, não
esquecido, explicam em parte esse ar
neo-realista que banha as telas de médio formato. Na exposição" 1 00
Anos de Artes Plásticas Aveiro 1882-1982", na qual como já
relembrámos também, Gaspar Albino participou com três trabalhos,
Arlindo Vicente mostrou um retrato de
Pescador (Ver reprodução no Boletim Municipal de Aveiro - 700 Anos
de Artes Plásticas. Aveiro /882-/982, n.º 1, Março de 1983, p. 37)
de estilo expressionista lírico, e ao mesmo tempo neo-realista,
muito semelhante à ilustração de pastores
que pintou para A Lã e a Neve de Ferreira de Castro, o muito grande
cidadão e
escritor tão esquecido hoje em dia, e muito particularmente em
Aveiro, situação imperdoável, que urge corrigir. Esse Pescador de
Arlindo Vicente, de 1963, pelo ar desolado, sofrido, pelas suas
grossas mãos e o peixe que a direita segura, pode, esquecendo a
técnica do pincelada, ser aproximado de algumas das telas de Gaspar
Albino desta actual exposição. Arlindo Vicente expôs também um
Apontamento para um Retrato do Dr. Frederico de Moura (Ver
referência in
Boletim Municipal de Aveiro (700 Anos de Artes Plásticas. Aveiro
/882-/982 n.º 1, Março de 1983, p. 37). Recorde-se que Gaspar Albino
delineou a capa do livro Ressonâncias, colectânea de textos de
Frederico de Moura, na qual imprimiu um retrato do autor de sua
própria autoria, homenageando a mesma importante personalidade a
quem Arlindo Vicente também rendera preito, já em 1938.
Gaspar Albino é um pintor autodidacta, como quase todos os pintores
da região – de Arlindo Vicente o Cândido Teles, dos três irmãos,
Manuel, Jeremias e
Hélder Bandarra a Artur Fino, de Vasco Branco a Claudette Albino, de
Fernando
Gaspar a José Monteiro, de Quintas a António Neves. de Jorge
Trindade a José Penicheiro, ete. –, que também foram, ou são ainda,
totalmente, ou quase,
autodidactas, sem terem frequentado nenhuma academia de ensino
superior de artes plásticas, por aqui não existir então, e ainda
hoje, falta que seria muito proveitoso para o cultura regional, e
mesmo nacional, rapidamente tentar suprir. Quantos mais talentos não
seriam estimulados, descobertos, aperfeiçoados. com /
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a criação de uma escola desse género?
Em guisa de conclusão, resta-me formular votos para que Gaspar
Albino consiga vencer mais uma batalha, da qual me tem falado,
amiudada e ansiadamente, destinada a conseguir dedicar-se mais à
pintura e ao desenho, já que os duros percalços da vida – que, com
pulso de ferro, soube parcialmente
ultrapassar – não lhe permitiram ir tão longe como desejava, nem no
campo artístico, nem na formação jurídica superior que teve que
abandonar pelas circunstâncias que já evoquei.
É esse todo o mal que lhe desejo.
Pedro Calheiros
(Professor da Universidade de Aveiro)
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