A correspondente em
Copenhaga do semanário «Expresso» deu-nos, na edição de 11 de Fevereiro
do caderno «Actual», uma resumida história do que foi e é o jornal
dinamarquês «Morgenavisen Jyllands Posten», o tal que publicou, em
Fevereiro, uma série de caricaturas de Maomé. É uma espécie de «Correio
da Manhã» lá do sítio que, com uma tiragem diária de 150.000 exemplares,
é um dos maiores diários dinamarqueses. Inicialmente, quando começou a
ser editado em Aarhus como jornal regional, vai para mais de trinta
anos, era um jornal com um perfil editorial pouco tolerante. Mas, da
fusão com outra editora, em 2003, converteu-se num jornal moderado e
defensor de valores democráticos. Segundo o seu director, Carsten Juste,
foi dentro destes parâmetros editoriais que o jornal publicou as tais
visualizações caricaturadas do profeta Maomé, resultado de um desafio
lançado aos «cartoonistas» dinamarqueses para avaliar do seu receio face
aos fundamentalistas islâmicos, pois que também os há na Dinamarca. A
comunidade muçulmana residente neste país ronda os 200.000. E é sabido
que a representação gráfica de Maomé está proibida no mundo islâmico.
Tardou meses (o que não deixa de ser estranho…) para que a publicação
destas imagens viesse a ser considerada como insulto deliberado aos
muçulmanos, como acto provocatório que esteve na origem do surgir da
chamada “guerra dos «cartoons»”: desde Setembro último, data da sua
publicação, até Fevereiro, data em que começaram os tumultos, tal foi o
período de maturação de um processo que, aos olhos de muito boa
imprensa, não terá tido nada de ingénuo. O que parece certo é que os
editores do jornal nunca terão esperado que as coisas chegassem onde
chegaram, com esta onda de violência que ninguém sabe onde vai parar. E,
pelo que se vê, a procissão ainda vai no adro. O director do «Jyllands»,
Carsten Juste, logo que lhe foram exigidas desculpas por várias
organizações islâmicas, procurou justificar-se dizendo, numa carta
aberta publicada em dinamarquês, inglês e árabe, que os desenhos não
tinham tido a intenção de ser ofensivos, não tinham violado a lei
dinamarquesa, mas, dado terem sido considerados ofensa por muitos
muçulmanos, por isso pedia desculpa. Tal declaração, também pelos
vistos, não convenceu os muçulmanos. A nota da correspondente Lúcia
Andersen termina informando que “/…/ os dinamarqueses não gostaram do
que fez o jornal. Não questionam o direito fundamental que é a liberdade
de expressão… mas não entendem porque é que o fez.”
***
Günther Grass, prémio
Nobel da literatura, (diga-se de passagem, também um apaixonado do nosso
país e principalmente do nosso Algarve..,), numa entrevista dada ao
conceituado jornal espanhol “El País”, dizia: “Recomendo a toda a gente
que dê uma vista de olhos aos desenhos: lembram os de um famoso jornal
alemão dos tempos nazis, “Der Strümer”. Publicou fotografias
anti-semitas do mesmo estilo… Não se pode invocar a liberdade de
expressão sem analisar como esta está no Ocidente.” E José Saramago,
também no mesmo periódico: “Vivemos em estados laicos, nos quais a
margem de liberdade é muito ampla e, por vezes, pensamos que todo o
mundo se alimenta do mesmo, e não é assim. /…/ Alguns opinam que a
liberdade de expressão é um direito absoluto que existe, enquanto todos
os outros são relativos. A crua realidade impõe limites.” (Não nos
podemos esquecer, diga-se também de passagem, que quem fala assim,
escreveu e editou em liberdade “O Evangelho segundo Jesus Cristo”;
contudo, e apesar dessa liberdade, não deixou, por causa desse livro, de
sofrer engulho que, ainda hoje, lhe provoca, a ele e a muito boa gente,
como eu, profundos amargos de boca.).
Apesar de todos nos
lembrarmos do assomo de intolerância de que José Saramago foi vítima e
da forma como a isso o escritor reagiu e ainda reage, o mesmo, na mesma
entrevista, à pergunta “Que fazer? Autocensurar-se?” respondeu: “Não se
trata de autocensura, mas sim de usar o bom senso. Numa situação
como a que vivemos, e conhecendo a susceptibilidade que existe em torno
destes temas, o bom senso deve ditar-nos o que fazer. Alguém
verdadeiramente responsável, que tivesse a certeza que uma caricatura
podia ser como deitar gasolina para o fogo, guardá-la-ia para melhor
ocasião.”
Não vou tecer
comentários acerca do que acabo de transcrever. Cada um fará o seu
próprio juízo…
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A grande verdade é
que a reacção a mais violenta, os protestos os mais desmedidos,
desembocando em incêndios de embaixadas e bandeiras queimadas, com
feridos e mortos à mistura, estão a surgir não só no mundo árabe mas
também nesta velha Europa. E tudo isto passados que são quatro meses
sobre a publicação das caricaturas. Parece que há um interesse
deliberado em provocar um “choque de culturas”. Bem ao jeito
revanchista, no Irão está a ser promovido um concurso de caricaturas
sobre o “Holocausto”, o qual, para muita imprensa muçulmana, nunca terá
existido. E tudo se passa coincidindo com a conquista do poder na
Palestina pelo Hamas que ganhou as eleições.
Face ao que venho de
dizer, bem pode tranquilizar-se o primeiro-ministro dinamarquês, Anders
Fogh Rasmussen, que ainda há poucos dias se lamentava: “estão a pintar
os dinamarqueses como um povo intolerante e inimigo do Islão e da
religião. Isto é falso e deliberado”. Pois é mesmo, senhor
primeiro-ministro! O que está a ser posto em causa não é somente a
Dinamarca. É a Europa, é o Ocidente. São os valores da civilização
ocidental.
Nesta nossa
Europa habituámo-nos a uma liberdade que nos deixa ler “A Velhice do
Padre Eterno”, de Guerra Junqueiro; que nos deu “O Evangelho segundo
Jesus Cristo”, de José Saramago
- meros exemplos com ressaibos de
iconoclastia religiosa e política, entre muitos outros que encontramos
na literatura portuguesa. Habituámo-nos a revisitar os autos-de-fé dos
“cartoons” e da revista “Paródia” de Bordalo Pinheiro. E não
dispensamos, nos dias que correm, independentemente das nossas
convicções, a, semanalmente, desfrutarmos do humor ácido do cartoonista
António, nas páginas do “Expresso”. E de muitos outros, que felizmente
os temos, na imprensa portuguesa. Quem não se lembra do “cartoon” de
António em que ele caricaturava o papa João Paulo com um preservativo
posto no seu nariz? Pois, nessa altura, muita gente veio a terreiro, nos
vários “media”, insurgindo-se contra o desaforo do artista que não se
coibiu de “insultar” o representante de Deus, para os católicos como eu,
nesta terra dos homens. Mas, que se saiba, não houve manifestações
tumultuosas, nem incêndios em embaixadas…
***
Desejo afastar o
fantasma de mais guerras, cujos agouros não nos largam. Mas,
infelizmente, não posso pôr de lado o facto de 57 países muçulmanos
terem depositado, nas Nações Unidas, no passado dia 14 deste mês de
Fevereiro, um texto propondo “a interdição dos casos de intolerância” e
de “difamação das religiões e dos profetas” a incluir num projecto de
resolução que visa criar um Conselho dos Direitos do Homem em
substituição da actual Comissão. A ter êxito tal proposta, uma parte
significativa do nosso património cultural passaria a estar proibido. E
esta proibição seria já não a nível de regimes e de nações. Bem pior
porque seria a nível universal.
***
Quero dizer que
sou a favor da liberdade de criação: cada um de nós, todos nós,
deveremos ser livres de desenhar, pintar, esculpir, filmar, escrever,
compor tudo aquilo que a nossa consciência consente, com o sentido de
responsabilidade que a mesma nos impõe. E não devemos ter medo, pois que
“o medo -
como muito bem escreveu Miguel Sousa Tavares
-
é a outra face de uma moeda chamada liberdade. Direi mais e ainda com o
mesmo cronista do “Expresso”: “Onde não há liberdade, há medo; onde há
medo, não há liberdade.”
***
O “cartoonista”
António tem usado livremente os seus talentos para afrontar muita coisa,
muitas pessoas, muitas situações, num sentido para que a sua consciência
o impele. Nem sempre estou de acordo com aquilo que ele nos transmite
com a sua arte quase que inexcedível. Mas isso não me impede de dizer,
por conta do muito que o seu espírito criativo me tem dado: obrigado
António!
Gaspar Albino –
21-02-2006
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