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Um esquiço de Hélder Bandarra

1OS IRMÃOS BANDARRA

Era uma escola formidável aquela EICA (Escola Industrial e Comercial de Aveiro) dos anos 50. Para poder frequentar o Ciclo Preparatório da então novíssima reforma do ensino técnico-profissional, tive aulas na rua Direita, num edifício habitacional que, no rés-do-chão, dava guarida a uma ourivesaria. Até a cozinha da casa estava transformada em sala de aula. As aulas de desenho eram na sala de jantar. Mas já tínhamos estiradores! Era lá que pontificavam os queridos professores Júlio Sobreiro e Porfírio Abreu, nossos Mestres de Desenho e de Pintura. A aula de Trabalhos Manuais era nuns arrumos do quintal que servia de recreio e que tinha por serventia uma viela que levava aos armazéns gerais da Câmara, instalados em parte da cerca do Museu de Santa Joana. Na mesma correnteza de casotas do quintal, ficava a cantina, onde mandava a Dona Adélia, alta e magrinha, esposa do chefe dos contínuos, o senhor Brito, baixinho e rechonchudo. Para eu comer de borla tinham-me nomeado cobrador das senhas de refeição. O director era o Dr. Cachim, de Ílhavo. As instalações da Escola eram precárias, humildes. Mas tínhamos o orgulho de desfrutarmos de uma plêiade de professores que nos ensinaram a ser “homens para a vida”, como então se dizia.

Feito o Ciclo Preparatório saltámos para o edifício da Misericórdia, mesmo ao lado da respectiva Igreja. O Dr. Damas, que opinava sobre tudo, a Dr.ª Cecília Sacramento, no Português, o Dr. Rocha e Cunha, no Inglês, o “meia-leca” (nunca lhe soube o nome!), pequenino de tamanho mas enorme pedagogo que tão bem nos ensinou Francês, o Sr. Armando Madaíl, na Dactilografia e na Caligrafia, o Dr. Araújo, o Dr. Lamy, nas Contabilidades, no Cálculo Comercial, no Direito, o Dr. Álvaro, na Geografia, o mestre Sr. Martins, na Talha, o mestre Sr. Ernâni Moreira da Silva, na Pintura Cerâmica, o escultor Truta, na Modelação, o padre António de Oliveira, na Moral e até no Cinema… Que sei eu? São tudo saudades de um tempo em que as necessidades e as carências se ultrapassavam com um enorme espírito de entreajuda, como se fôramos uma enorme mas muito amiga família.

Não ficámos pela Misericórdia neste deambular da recém-criada EICA. Eu já só fui acabar o meu Curso Geral do Comércio no velho edifício do Liceu de José Estêvão, um luxo! Salas grandes, janelas que respiravam luz, espaços próprios para prática de desporto e um pavilhão-ginásio, com um palco onde se podia fazer teatro. É que, entretanto, os alunos do LICEU tinham deixado aquelas instalações livres quando foram transferidos para o novíssimo Liceu do Bairro de Álvaro Sampaio. Foi por estes variados sítios que eu fui construindo as minhas amizades, as minhas mais sólidas e duradouras amizades.

Nesta circunstância e agora, dos meus muitos colegas, só me vou referir aos irmãos Bandarra. O Jeremias foi sempre meu companheiro de turma. Éramos (e somos!) como irmãos. Até no amor às coisas do Desenho e da Pintura, para que diziam que tínhamos jeito, apesar de frequentarmos ambos o Curso Geral do Comércio, preterindo assim os cursos mais vocacionados para as artes que havia na Indústria. O Jeremias tinha três irmãos. Todos com “o tal jeito” para o Desenho. O mais novo, o Hélder, era um “craque”! (era assim que o chamavam), aliás como também ao seu irmão Jeremias. Mas havia ainda o José Carlos, mais dado à gestão da oficina familiar de carpintaria mecânica, e o Manuel Bandarra, homem feito que muito respeitei, homem de talento excepcional que dominava com desenvoltura as subtilezas do desenho e das técnicas pictóricas.

 Pedimos ao Manuel que fosse nosso mestre na “Sala do Artista”, um espaço e um tempo nas nossas semanas que coincidiam com os deveres decorrentes da Mocidade Portuguesa. Assíduo frequentador da “Sala do Artista”, beneficiário primeiro dos ensinamentos de mestre Manuel Bandarra, com esse pretexto nunca “marquei passo” nem usei farda da M.P.. A invenção da “Sala do Artista” foi, sem dúvida, um bom estratagema, com o beneplácito do Professor Ernâni Moreira da Silva, para uns quantos de nós, mais dados às coisas da Arte, se descartarem daqueloutro tipo de obrigações.

Foi por estas e outras que eu me habituei a admirar os Bandarras, todos eles com um domínio de mão excepcional para o desenho e com uma enorme propensão para a criação artística.

O Manuel Bandarra fez brilhante carreira no Brasil no mundo da Arte Comercial e não só.

O Jeremias Bandarra, fundador de AveiroArte, fez sempre uma paralela carreira de artista plástico, ajudando brilhantemente a construir os últimos sessenta e tal anos da história cultural de Aveiro.

Resta-me o Hélder, o Hélder Bandarra que eu conheci de calção, sempre a desenhar a sua inquietude e a pintar os seus sonhos de menino. É deste Bandarra que me vou ocupar, mais com recurso aos meus afectos e às minhas memórias, do que em abordagem ensaística da obra plástica deste ARTISTA DE AVEIRO. Vamos então a isso… 

 

2A GERAÇÃO DE 60 EM AVEIRO

 O semanário aveirense LITORAL, fundado e dirigido por David Cristo, advogado, jornalista, orador de primeira água, artista plástico (desenhista, pintor, escultor e fotógrafo), professor do ensino secundário e universitário, melómano, coleccionista inveterado de tudo o que pudesse saciar a sua fome de saberes, foi sem dúvida alguma o cadinho onde revoluteou toda a juventude que se queria afirmar no mundo limitado da cultura aveirense, em finais de cinquenta e, principalmente, na década de sessenta.

 Os ares de um mundo novo em que a juventude se queria afirmar pela Paz (as guerras em África e no Vietname eram objecto de forte contestação), a “guerra fria”, os ventos da China e da sua Revolução Cultural, as ondas de agitação estudantil que abanavam e afrontavam o amorfismo das sociedades ocidentais, as mortes de John Kennedy e de Che Guevara, a mini-saia de Mary Quant, os Beatles, a Françoise Hardy, o amor livre com o seu grito-estandarte “make love not war!”, Simonne de Beauvoir e Sartre, Camus, a ida do homem à Lua… Todos os jovens sentiam que se estava a desenhar uma época diferente, de novos desafios, de novas apostas. A inquietude era a regra. Mas a sua porta estava ali escancarada.

Aliás, Hélder Bandarra começa a década de sessenta de uma forma que o havia de marcar para toda a vida. Desejando antecipar a sua entrada no mercado do trabalho, mantendo latente a ideia de emigrar para o Brasil, à semelhança de seu irmão Manuel, para ingressar no mundo das artes gráficas, Hélder decide frequentar o curso de sargentos milicianos em Santarém. E é nesta qualidade que é mobilizado para prestar serviço no Estado Português da Índia. Quem com ele tem convivido mais de perto percebe que esta Índia dos pequenos e isolados santuários hindus e budistas (onde ele, com a sua alma de artista, se recolhia, lá longe, para encontrar a sua paz interior) o marcou muito profundamente, o marcou de forma indelével e para todo o sempre. Nessa sua estadia enriquecedora, os seus talentos foram facilmente descobertos e por lá recebeu e executou as suas primeiras encomendas de trabalhos artísticos: lá fez os seus primeiros óleos, decorou quartéis, pintou retratos de Vice-Reis e desenhou, desenhou muito. Mas o Estado Português da Índia foi invadido e ocupado pelo exército indiano. Hélder Bandarra foi feito prisioneiro e sofreu as agruras violentas dos campos de concentração.

 Jamais esquecerei a sua figura esquálida, fruto do cativeiro, logo após o seu regresso a Portugal. Jamais esquecerei os apontamentos, de desenhos e pinturas, que ele tinha conseguido trazer. As cores que com ele vieram da Índia nunca mais o abandonaram.

Mas voltemos ao LITORAL. Este semanário tinha conseguido, mercê do espírito aberto de David Cristo, granjear um corpo de colaboradores excelentes: Vasco Branco, Frederico de Moura, Costa e Melo, Mário Sacramento, etc., etc. A sua folha cultural COMPANHA chegou a ser considerada pela “inteligência” da época como do melhor que se produzia em Portugal. E as portas do periódico estavam sempre abertas à colaboração dos jovens. A sua página VAE VICTIS, dirigida por Jaime Borges, era disso prova. Eu próprio, enquanto director do Pelouro Cultural do Clube dos Galitos, fundei o seu Círculo de Artes Plásticas, o qual pôs de pé a I EXPOSIÇÃO DOS ARTISTAS AVEIRENSES, pedrada no charco no conformismo cultural plástico vigente. O Hélder também estava lá no Salão Nobre do Teatro Aveirense, nessa exposição que foi um êxito enorme, pois a sua abrangência ia de Euclides Vaz, Arlindo Vicente (à data preso em Caxias), Vasco Branco (VIC), Lauro Corado, Cândido Teles, Guerra de Abreu, David Cristo, Carbaty, Zé Augusto, até aos mais jovens: o Jeremias Bandarra, o Artur Fino, o Jaime Borges,  eu também e, claro, o nosso Hélder, entre muitos outros.. AVEIROARTE formou-se entretanto e não mais deixou de perseguir o fomento do experimentalismo na criação artística. Hélder Bandarra foi também um dos seus fundadores. Por iniciativa de alguns do quase sempre mesmo grupo de jovens, formou-se o CETA, Círculo Experimental de Teatro de Aveiro, que perdura com actividade altamente meritória até aos dias de hoje e onde deram corpo, entre outros, Jaime Borges, Rui Lebre, Artur Fino, Zeca Fino, Jeremias Bandarra, etc. e, claro, Hélder Bandarra. Entretanto, Jaime Borges inaugurara a primeira galeria de arte de Aveiro, a que deu o seu nome, e que se veio a revelar como centro catalisador de inúmeras iniciativas mercê da acção de um grupo de intervenção cultural, fruto do convívio de jovens artistas que se queriam afirmar. Obviamente que Hélder Bandarra, com a sua irreverência juvenil, estava sempre em todas. Ilustrador no LITORAL. Cenógrafo premiado em Lisboa, pelo CETA. Presente com obra em tudo o que era Exposição de Artes Plásticas. Premiado nos Salões de Aveiro. Que sei eu? Ele também queria ser actor na transformação do mundo! E foi!

A história do movimento cultural em Aveiro, nos anos sessenta, está por fazer. E bem falta ela faz para se ter consciência da importância que uma geração de jovens, quase todos eles saídos da saudosa EICA, Escola Industrial e Comercial de Aveiro, teve na mudança de mentalidades na nossa pacata e adormecida cidade de então.

 

 

3 HÉLDER BANDARRA, DESIGNER GRÁFICO 

Aveiro, no entanto, era espartilho demasiado apertado para os anseios de Hélder Bandarra. E foi com naturalidade que ele partiu para Lisboa, depois de ter feito, de companhia com Jaime Borges, uma mostra no Salão Nobre do Teatro Aveirense que, por esses tempos, era a sala de exposições de Aveiro.

Foi animado por este êxito aveirense que ele começou a enfrentar as dificuldades duma Lisboa desconhecida. Seu irmão Manuel, regressado do Brasil, abriu-lhe as portas da Agência de Publicidade Zeiger. A capital a impor novos estilos de vida; o trabalho a propiciar novas descobertas no mundo do design, e novos contactos enriquecedores sob o ponto de vista humano, cultural: Mestre Manuel Lapa, professor da Escola de Belas Artes, Ary dos Santos, o poeta genial e irreverente. Saiu da Zeiger, tentou com colegas formar atelier próprio, até que, convidado, começou a trabalhar no Comissariado Nacional de Turismo. Nova etapa excepcional na sua vida de designer: cartazes, desdobráveis, capas de brochuras. Tempos de afirmação como “layout artist” e arte-finalista de primeira água. Em Tóquio, de parceria com José Carrasco, um cartaz de sua lavra alcança um primeiro lugar em concurso mundial de turismo. Colabora na Agência de Publicidade Sonarte, de Artur Agostinho, À amizade sólida com o escultor Francisco Simões junta-se o convívio estreito com Fernando Pernes, crítico de arte, com o jazista Raul Calado, com Jorge Alves e Fialho Gouveia, do mundo da televisão. Colabora com assiduidade com o grande Alexandre O’Neil.

Apesar desta vida de trabalho muito intensa, ainda arranja tempo para frequentar as aulas nocturnas dos mestres Hélder Baptista, no desenho, e Gil Teixeira Lopes, na pintura, na Sociedade Nacional de Belas Artes. Isto permitiu-lhe o aprofundamento de conhecimentos e uma sólida leitura cosmopolita da vida.  João Hogan, Fausto Boa Vida e Francisco Simões são seus companheiros de café.

Hélder Bandarra casa-se em 1967, nasce o seu filho Alexandre e, em 1970, deixa Lisboa, indo viver para o Porto.

Dirige a parte gráfica de uma importante empresa do ramo. Mas, o seu desejo de se afirmar exclusivamente como artista plástico começa a ganhar corpo.

O designer gráfico começa a ceder espaço ao outro Hélder que só a custo irrompe duma vida laboral intensa para se ir afirmando nas exposições singulares e colectivas onde a sua criatividade não tinha as fronteiras de um caderno de encargos.

 

4HÉLDER BANDARRA, ARTISTA PLÁSTICO 

Com mais dois colegas, o Rui Alberto e o António Rei, artistas da empresa litográfica que dirigia, forma o “Grupo Colectivo de Artistas Plásticos do Porto”. Pretenderam ser um grupo de intervenção cultural junto de populações rurais, de pessoal operário, de cooperativas. A sua actividade quase que parecia premonitória. Em 1973, José Sacramento funda em Aveiro a sua galeria GRADE, enfunada por ventos de mudança. E o 25 de Abril de 74 abana a sociedade portuguesa. Hélder Bandarra apoia a dinâmica da GRADE e participa em colóquios, convívios, “happenings” e toda a espécie de mostras.

No início de noventa, Hélder Bandarra organiza o seu ATELIER DE ENSINO DE EXPRESSÃO PLÁSTICA, em Vila Nova de Gaia, onde começa a dar aulas de pintura e desenho a adultos que assim escolhem ocupar os seu tempos livres.

Tal lhe permite garantir uma estabilidade de vida com o desfrute de tempo livre para criar a sua obra plástica, cada vez mais rica: o desenho que tanto acarinha quase desde que nasceu, a pintura, a escultura e, de quando em vez, ainda, as artes gráficas.

Expõe em todas as colectivas organizadas por AVEIROARTE. Com frequência pendular vai expondo, individualmente, a sua pintura por este país fora e mo estrangeiro. A ele se deve um dos mais belos monumentos que enriquecem Aveiro: a estátua da Princesa Santa Joana, mesmo em frente à Sé Catedral e ao lado do Museu Nacional de Aveiro, inaugurada no dia 12 de Maio de 2002.

O seu amor pelo Desenho levou-o a fazer em 1996 uma mostra exclusivamente de grafites de grande formato. Foi um acontecimento inolvidável, que muito me marcou.

Com regularidade desloca-se ao estrangeiro para redescobrir a arte dos mestres guardada nos grande museus: Nova York, São Paulo, Londres, Florença, Moscovo, Praga, São Petersburgo, Roma, Milão, Nova Dili, outras mais, mas, com regularidade, Madrid e Paris.

Actualmente é o presidente da Direcção de AVEIROARTE.

 

5HÉLDER BANDARRA, A SUA ARTE

Hélder Bandarra foi sempre um desenhista brilhante.

“Pensando materialmente, o ponto assemelha-se a um zero. O ponto geométrico é o mais alto e, sem dúvida, o único enlace entre o silêncio e a palavra. A linha geométrica é um ente invisível. É o traço que o ponto deixa ao mover-se e é, portanto, o seu produto. Surge do movimento ao destruir-se o repouso total do ponto”.  Vasily Kandinsky

 Este talento, o do desenho, nasceu com ele. Aliás, em abono da boa verdade, foi sempre marca indelével de todos os seus irmãos. No carvão, na grafite, no pastel, no nanquim, na gravura, dado o excelente domínio de mão e das técnicas, tudo o que o artista pretende traduzir é conseguido com uma qualidade que só nos eleitos se reconhece.

Lembro-me dos esquiços que ele trouxe da Índia. Das suas ilustrações no LITORAL. Das suas caricaturas. Dos seus apontamentos de viagem. Da sua grande exposição de Desenhos de grande formato, em 1996, na Galeria Municipal de Aveiro. Inexcedível.

Hélder Bandarra foi e é um designer gráfico de primeira água. Exímio criador no “layout”, todo o trabalho gráfico que lhe conheço é prova de um traquejo oficinal que lhe permitia e permite a execução de “arte final” impoluta. Só não domina os meios informáticos hoje ao alcance de qualquer, mas tal não importa; é que esses meios, as mais das vezes, só disfarçam muitas incapacidades que por aí pululam.

 

Hélder Bandarra é um pintor para quem a paleta não tem segredos.

“A arte é um símil da criação. É sempre um exemplo, como o terrestre é um exemplo cósmico… No círculo superior existe detrás da ambiguidade um último segredo, e a luz do intelecto apaga-se lastimosamente”. Paul Klee

 O Hélder desde sempre se exercitou no domínio das várias técnicas pictóricas. É exímio no manuseio dos pincéis e das espátulas, dos pigmentos da aguarela, dos óleos, dos acrílicos, dos vernizes… Nada disto para ele tem segredos. E é toda esta bagagem que Hélder Bandarra põe ao serviço da sua pintura, garantindo-lhe transpor para o espaço com que se confronta as suas ideias e os seus sentimentos na sua maior pureza, sem quaisquer desvios, sem quaisquer empecilhos.

Da sua fase da Índia só lembro, e muito vagamente desenhos, e apontamentos de cor: das cores da Índia que, para mim, não mais o largaram, endemoninhando-o.

Depois, fixei um conjunto alargado de obras, alargado no tempo e na temática, pintura a óleo, em que os nossos pescadores, as nossas peixeiras, os nossos barcos, as nossas redes trazem o nosso mar terra adentro, impondo-nos, com uma força plástica enorme, toda uma vivência do esforço e da dor que nos avassala. É um Hélder que me traz à memória Romain Rolland quando este afirma: “Só tem valor a Arte que serve para unir os homens”, mas com uma mescla daquele lastro espiritual que ele trouxera da Índia.

Contudo, é a omnipresença de Júlio Pomar com resquícios poéticos do Júlio Resende “alentejano” que esta sua pintura irresistivelmente me faz lembrar. É o seu mundo de preocupações de índole social que leva o artista a pôr toda a força do seu talento pictórico nesses trabalhos dum neo-realismo tardio, sem nunca perder, contudo, uma certa intencionalidade poética que nos faz sentir ainda mais profundamente essa força.

Guardo com imenso carinho alguns trabalhos desta fase do artista. Quando sinto necessidade de lembrar os meus tempos de vida ligada ao mar e à pesca vou revisitá-los em acto de recolhimento.

Uma outra fase, não necessariamente estanque em temporalidade, parece-me trazer à superfície todo um mundo de memórias da juventude, iria mesmo mais atrás, à sua meninice. Ele são máscaras, são palhaços, são carrinhos-de-mão, são brinquedos de madeira, são carrocéis de feiras-de-março inventadas, são papagaios vermelhos lançados ao vento em azuis de céu de praias atlânticas, tudo numa mescla de manchas de cor contidas em desenho firme, duma enorme alacridade, cores puras (sobretudo as primárias!) saídas directamente dos tubos quase sem passar pela paleta, sem intromissões que bem poderiam estragar a festa. Digo bem: a festa, uma festa que o Hélder terá precisado de criar para afastar o quanto de taciturno ele, artista, comporta. São composições oníricas dum rigor formal enorme, trabalhos de “jongleur” que se quer rir de si mesmo, rindo-se com os outros, nos outros. Há que reconhecer que são trabalhos dum enorme poder encantatório, e que, só por si, dariam para uma tese a requerer aprofundada análise. É difícil definir a sua ancestralidade. Mas também aqui me apetece descobrir algo que lhe ficou dos tempos da Índia.

A última pintura de Hélder Bandarra é, em si mesma, um conflito. Ou, então, a transposição plástica dum enorme conflito interior. Vou tentar explicar-me. Mas, primeiro:

“A natureza está em todas as partes, em nós e fora de nós, só há uma coisa que não pertence completamente à natureza, pois que é a sua superação e a sua interpretação: a arte. Na sua essência, a arte sempre tem sido o afastamento mais audaz da natureza e do naturalismo. A ponte até ao reino do espírito, a negromância da humanidade…“ Franz Marc

Pois é: a negromância da humanidade, a ponte até aos recônditos do inexplicável.

Hélder Bandarra agarra numa tela e começa por desenvolver um trabalho que, ressalvadas as distâncias, se poderia catalogar como sendo exemplo de suprematismo do mais conseguido, do mais canónico, em exploração geométrica de uma realidade espiritual. O artista, então, poderia dar o seu trabalho por acabado. Mas não. Vai daí, é tomado por uma sanha destruidora que quase elimina, destrói, o trabalho inicial. E, então, desencadeia uma luta de cores em movimento de choque que a tudo se sobrepõe, em gritante manifestação de acabado expressionismo abstracto, numa incontida expressão de subversão física.

“Os quadros devem ser milagrosos: no instante em que se acaba um quadro, termina a intimidade entre a criação e o criador. Este é um estranho. O quadro deve ser para ele, e para qualquer outro que o experimente posteriormente, uma revelação, a resolução inesperada e sem precedentes de uma necessidade eternamente familiar”.   Mark Rothko

* * *

Hélder Bandarra afirma que pinta o que pinta. E acrescenta: “a minha pintura mudou”.

Isso vê-se! E de que maneira!

Mas Hélder Bandarra explica-se melhor:

“Na minha pintura há uma luta de contrários, de libertação de formas, cores, matérias e forças geométricas opostas. /…/ E acrescenta: “ Procuro um compromisso expressivo entre ordem e  desordem. É a renovação constante da forma de ser e de viver”.

Pois é: a tal “necessidade vital de comunicar”. É o artista que o afirma.

E quem sou eu para o desdizer? 

Gaspar Albino

26 de Agosto de 2010

 

 

04-05-2018