Moliceiros na Ria.
O
barco moliceiro nasce duma pequena vara, conhecida pela designação de
pau dos pontos que, no seu metro e meio de comprimento, tem marcadas
todas as medidas que orientam a construção destas embarcações.
Esta
actividade, que se encontra em vias de extinção, é uma indústria tão
tradicional, que se verifica a hereditariedade na profissão,
encontrando-se famílias de mestres construtores que se sucedem, desde
longínquas datas.
Os
estaleiros localizam-se na região da Murtosa e,
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ao contrário do que seria natural supor, situam-se no interior das
povoações, distanciados da ria.
O
barco moliceiro destina-se à colheita e transporte de moliço, nome
vulgar que abrange, sem distinção de espécies, a vegetação submersa da
ria de Aveiro.
Embarcação bem adaptada à actividade que pratica e às condições
geográficas e climatéricas da sua zona de actuação, que abrange toda a
ria, regula por 15 metros de comprimento, tendo os costados muito baixos
e uma medida de boca de 2,5 metros. De fundo chato e de pequeno
calado, navega facilmente com pouca altura de água.
É
construído de madeira de pinho e resiste, em média, doze anos ao
serviço.
A cor
do costado é, inicialmente, amarelada, por efeito do embreamento
a pez louro; mas, logo que sofre a primeira amanhação, o costado
é totalmente embreado a pez negro, menos oneroso e mais eficiente no
calafeto e protecção.
Exceptuam-se, neste segundo aspecto, as zonas ocupadas pelos painéis da
proa e da ré que, apesar de reparados, conservam sempre o seu aspecto
decorativo.
É bem
singular a disposição interior deste pequeno barco, onde nada esquece.
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O castelo da proa, inteiramente coberto e fechado com porta e chave,
serve de câmara de tripulantes e de paiol de mantimentos.
A
cobrir as duas primeiras cavernas de água, há um estrado, ao mesmo nível
do piso da câmara e com a função de lareira, onde os tripulantes
preparam e comem as refeições.
O
castelo da ré é preenchido por um espaço, no
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qual se acondicionam
o barril de água, as forcadas e as tamancas, coberto por uma tampa
móvel, que serve de assento ao arrais.
O
leme, de grandes proporções, ostenta, dos dois lados, a divisa colorida
do construtor.
Nas
extremidades do costado, à proa e à ré, por ambos os bordos, situam-se
os painéis decorativos.
Os
meios de propulsão do barco moliceiro são: a vela, a vara
e a sirga.
No
primeiro caso, o mais vulgar, a vela é de formato trapezoidal,
usualmente de lona, com uma superfície média de 24 metros quadrados,
içada num mastro com a altura aproximada de 8 metros, assim alto para
colher o vento, em todas as circunstâncias, que por vezes sopra, apenas,
por cima de vegetações ribeirinhas.
Eventualmente, usa-se, à proa, um outro pano mais pequeno, adaptado a um
mastaréu.
A fim
de lhe servir de quilha, quando bolinam, utilizam a pá de borda
ou toste, colocada no bordo do barco, por sotavento, meia
mergulhada e segura ao mastro, por cordas.
Cada
embarcação possui três tostes, que servem, também, como pranchas.
Com esta finalidade, um dos
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lados é aparelhado com breu pulverizado de serradura, para lhe dar uma
melhor aderência.
O
segundo sistema de propulsão conseguem-no os moliceiros por intermédio
de varas, de 4 a 6 metros de comprimento, que firmam no fundo dos canais
e empurram, a peito, em repetidos percursos, desde a proa até próximo
da ré. Para este efeito, a cobertura do castelo da proa e os bordos são
aparelhados da mesma forma das tostes, com breu e serradura.
Por
último, a deslocação por meio da sirga, cabo de sisal, esparto ou
nylon, verifica-se na passagem dos canais mais estreitos ou junto às
margens, sempre que o barco navega contra a corrente ou contra o vento.
Uma das extremidades da sirga é amarrada aos golfiões,
pequenas peças de madeira situadas na cobertura do castelo da proa; a
outra leva-a o tripulante, que segue a pé pela margem, puxando o barco.
Moliceiros no Canal Central
de Aveiro
No que
respeita a decorações, trabalho de embelezamento que caracteriza o
barco moliceiro, a parte monumental é a proa. Ali, reúnem-se as
principais figuras, que são o símbolo dos elementos mais em contacto com
a ocupação profissional, decompostos em curiosas expressões
geométricas. O movimento das águas, expresso
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por uma faixa
ondeada, intercalada com fragmentos de moliço, tem preferência, no friso
superior, que remata na bica, peça recurvada, possivelmente
inspirada no bico de certos palmípedes, e que constitui o ponto mais
elevado da proa; seguem-se-lhe as conchas, em duas filas paralelas de
semicírculos alternados na sua disposição. Estes, os atributos marítimos
evocados, que cedem lugar, do lado oposto, nos frisos que limitam o
mesmo painel no
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seu prolongamento pelo costado, aos elementos
campestres: as flores, especialmente as de maior predilecção popular —
estas, como, aliás, todas as demais decorações, sempre num imbricado de
cores vivíssimas.
Ao
centro do painel, em lugar de honra, aparece, quase sempre, um monarca
ou uma figura equestre, tendo, em volta, algumas plantas floridas a
preencher os espaços disponíveis.
Esta
parte central do painel é sublinhada por uma legenda, que, ou é
relacionada com o motivo representado, ou indica, apenas, o nome do
construtor, data e local da construção.
A
diferença de estrutura, em relação à proa, limita, na ré, o espaço para
as decorações. No entanto, é precisamente nestes painéis que se revelam
os mais sugestivos desenhos e as legendas mais espirituosas. Aqui, têm
larga representação as imagens de devoção popular, militares, raparigas
e galãs, as profissões regionais, etc.
Nenhum
desenho se repete, sendo sempre quatro as policromias, diferentes entre
si.
As
legendas, de que citaremos a seguir alguns exemplos, com a ortografia
popular, cujos erros resultam
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dos da própria dicção dos que as escrevem, podem dividir-se nos
seguintes grupos:
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SATÍRICAS |
As
mulheres querce gordas
É um
pexão
Estaqui mas num é prati
Num me
toques que me desafinas |
|
AMOROSAS |
Os
dois namurados
Eu
querote amar
Dame um beijo amor
Nao negues o que te pesso amor
|
|
PROFISSIONAIS |
Bamus Ia pro rio
Corre
que levas lerpas
O respeto bai a proa
O campião do arrulado
|
|
RELIGIOSAS |
Ora bamus la cum Deos
Pas aos homes
Sinhora da Saudi
Sinhor dos Nabegantes
|
|
PATRIÓTICAS |
Biba Portugal
A
bandera portugueza
Biba o sinhor Prezidente
Sempre
defendi a patria
|
/ 13 / O castelo da proa é a rubrica
complementar da decoração: um friso floral, na vertente; nos dois
golfiões, respectivamente, um galã e a namorada; na base da bica, um
vaso com uma planta florida.
Este lindo barco, o encanto da
ria, é aproveitado para lenha, quando já inútil para a actividade que
exerce. No entanto, algumas vezes, poupam-lhe a proa, para a excêntrica
serventia de galinheiro, coelheira ou canil. |