Quando, em finais de Outubro de 1957, entrei para a Câmara Municipal de
Aveiro como Fiscal Informador dos Serviços de Propaganda e Turismo, já
se realizava, há alguns anos, o “Concurso dos Painéis dos Barcos
Moliceiros”, que tinha sido criado por iniciativa de Arnaldo Estrela
Santos, quando foi Vereador e Presidente da Comissão Municipal de
Turismo.
Pretendia-se, com esta iniciativa, não só manter estas decorações
tradicionais nos barcos que se fossem construindo – note-se que, nessa
altura, ainda apanhavam moliço bastante mais de 500 embarcações –, mas
também que, periodicamente, os proprietários as fossem repintando, o
que, em linguagem moliceira, se traduz por reformando.
Este certame realizava-se a 25 de Março, dia da abertura da secular
Feira de Aveiro, e compareciam, sempre, largas dezenas de embarcações. A
maior parte dos moliceiros-homens para vir à Feira e participar
na festa, poucos – só os dos barcos novos ou com painéis pintados de
propósito – para tentar ganhar um dos três prémios, de que já não me
lembro os valores, mas que dariam para pagar ao pintor; só me recordo de
que, durante uns anos, o prémio de presença era de 10 escudos (5
cêntimos de euro).
A apreciação dos painéis era feita por um júri, presidido pelo
Presidente da Comissão Municipal de Turismo e do qual fazia parte o
Capitão do Porto, pois, por inerência do cargo, integrava aquele órgão
autárquico, sendo convidados jornalistas e outras pessoas, algumas
delas, à última hora, entre os conhecidos que estavam a assistir. Para o
efeito, instalava-se uma tribuna junto ao cais do Canal Central, perto
da entrada da Feira.
Os moliceiros, amarrados entre a Ponte Praça e a tribuna, desfilavam, um
a um, à vara, mostrando, primeiro, os dois painéis de estibordo
e, depois, os de bombordo e, simultaneamente, as pinturas do
castelo da proa, das mãozinhas e da entremesa.
Os jurados tomavam notas, quando o faziam, trocavam impressões e,
por fim, eram distribuídos os prémios. Contudo, na esmagadora maioria
dos casos, os classificadores tinham poucos ou nenhuns conhecimentos
sobre a matéria que estavam a apreciar, pelo que, em vez de se tentar
contribuir para a manutenção das pinturas tradicionais, como tinha sido
a primeira e louvável intenção, se estavam, por vezes, a premiar
painéis, ou só pela piada das legendas, cujo segundo sentido,
frequentemente, era muito salgado, ou dando um peso excessivo à sua
beleza estética, sem atender a se tinham sido respeitadas normas
ancestrais, não escritas, mas conhecidas e seguidas por gerações de
pintores populares: ingenuidade, só cores primárias e meias tintas para
os pormenores, utilização da tradicional linguagem simbólica, etc. Até
que se chegou ao ponto de, se não me engano em 1969, se ter atribuído o
1º Prémio a um barco, cujo painel de proa de bombordo, representava “S.
Jorge e o Dragão” e era da autoria do conceituado artista plástico Zé
Penicheiro (de quem mais tarde viria a ser amigo), logo nem deveria ter
sido aceite, num concurso dedicado a pintores populares.
Nessa altura, já tinha visto muitas centenas de painéis – praticamente
todos os que tinham ornado os barcos, na última dezena de anos –, tinha
falado com muita gente que sabia do assunto e tinha lido quase tudo que
havia sido escrito sobre barcos moliceiros, pelo que fiquei
escandalizado, sem que, no entanto, nada pudesse fazer para corrigir
esse erro grosseiro.
Depois de reflectir sobre o assunto, julguei ter encontrado uma maneira
de evitar que asneiras como aquela se viessem a repetir. Passado um
tempo, disse ao Presidente da Comissão Municipal de Turismo, Carlos
Alberto da Cunha Soares Machado, que me propunha elaborar um pequeno
manual sobre as pinturas dos moliceiros, para uso de futuros jurados.
Obtido o acordo, dactilografei meia dúzia de páginas, a que juntei
ilustrações a cores, copiadas do Tomo referente aos Moliceiros, dos
“Estudos Etnográficos”, coordenados por D. José de Castro – Domingos e
não Dom, como durante muitos anos lhe ouvi chamar –, tarefa essa em que
contei com a ajuda do desenhador da Câmara, Mário Martins.
Seja-me permitido abrir um parêntese, para dizer que o predito trabalho,
de que não fiquei com nenhum exemplar, constituiu um êxito e acabou por
estar na génese do meu primeiro livro, intitulado “Moliceiros” que veio
a ser editado pela Comissão Municipal de Turismo, em Novembro de 1971,
publicação esta que me valeu um louvor, extensivo ao predito Vereador,
por parte da Comissão Municipal de Cultura.
Este Concurso revestia-se de inegável interesse etnográfico, pois
desempenhava um importante papel na conservação, em bom estado, dos
painéis dos moliceiros, que constituíam um importante cartaz turístico
de toda a região da Ria. Mas o evento, em si, nem trazia ninguém a
Aveiro – a não ser os familiares e amigos dos participantes, cujo poder
de compra era reduzidíssimo –, nem servia para entreter, durante um
período de tempo razoável, as pessoas que passavam perto do canal, a
maior parte delas dirigindo-se à Feira, porque se tornava monótono, a
não ser para meia dúzia de aficionados, ver desfilar barcos – chegaram a
atingir o número de 72 –, durante duas horas.
No entanto, eu já considerava, nessa altura, que as embarcações
lagunares, e não só os moliceiros, tinham enormes potencialidades não só
para chamar muita gente a Aveiro, mas também para se assumirem como
personagens principais de espectáculos a que milhares de pessoas
assistissem, durante horas, de forma interessada.
Depois de pensar sobre a maneira de poder vir a concretizar-se esta
hipótese, cheguei à conclusão de que sendo a competição dinâmica uma das
coisas que mais agrada ao público, se se organizassem corridas entre os
vários tipos de embarcações que trabalhavam na Ria, poder-se-ia obter um
espectáculo que não só trouxesse pessoas a Aveiro, mas também servisse
de entretenimento para os que já cá se encontrassem, ou seja, em termos
de Turismo, seria um dois em um: atraía e animava.
Seguindo este princípio, imaginei e vim a organizar, durante alguns
anos, na qualidade de funcionário dos Serviços de Turismo da Câmara, a “FESTA
DA RIA”, cujo programa, no seu auge, era o seguinte.
No sábado à tarde, uma “Regata de Moliceiros”, com concentração e
partida da Torreira e chegada a Aveiro, a meio da tarde. Esta Regata
condicionava a data da Festa – nuns anos, era em Julho e noutros, em
Agosto –, porquanto dependia de uma maré que permitisse que, até S.
Jacinto, os barcos aproveitassem a vazante, chegando aí,
aproximadamente, no virar da maré e vindo com a enchente para Aveiro.
Como o “Cruzeiro da Ria”, com partida do Areinho, tinha a mesma
condicionante, as duas regatas realizavam-se no mesmo dia, e eu dava a
partida aos moliceiros, quando via as primeiras velas do “Cruzeiro”
aparecerem, à Ponte da Varela, pelo que, antes de S. Jacinto, os barcos
mais rápidos já vinham juntos com os moliceiros, proporcionando um
espectáculo inolvidável. A minha ideia, quando propus a realização desta
Regata, foi proporcionar, aos fotógrafos e cineastas, amadores e
profissionais, 9 milhas náuticas ou 12 quilómetros – dos quais 8, pela
estrada que liga a Torreira a S. Jacinto e 4, pela antiga estrada da
Gafanha – e duas horas de hipóteses para fazerem excelentes imagens, que
constituiriam óptimos elementos publicitários, susceptíveis de despertar a vontade
de nos visitar a quem os visse.
No sábado à noite, um “Festival Internacional de Folclore”, num
estrado montado sobre uma barcaça, de braço dado com dois moliceiros,
varados no Canal Central, defronte do Clube dos Galitos. As ruas, que
ladeiam o Canal, eram encerradas ao trânsito automóvel para permitir a
instalação do numerosíssimo público que enchia as bancadas montadas para
o efeito e se apinhava nos cais, no varandim da Ponte Praça e na
esplanada do edifício “Fernando Távora”, havendo, inclusive, pessoas que
assistiam em pequenos barcos, junto ao palco. Participaram, neste
Festival, grupos nacionais e internacionais de grande valia, sendo de
referir, neste último caso, os provenientes de muitos países do Leste,
cujos cachets não eram muito dispendiosos, porque se aproveitavam
os que vinham ao “Festival Internacional de Gulpilhares”. A qualidade
deste evento e a originalidade de se efectuar sobre a água levaram a que
a Rádio Televisão Portuguesa o transmitisse, directamente, em 1981.
Neste momento, acho que se justifica a abertura de um parêntese, para
relatar algo de interessante que se passou comigo. Essa transmissão
obrigou a que uma equipa da RTP Norte estivesse, durante alguns dias, em
Aveiro, para preparar o espectáculo; e o realizador Marques Vicente teve
a ideia de aproveitar a estadia para fazer um filme para o programa
“Setentrião”, que passava no 2º Canal, no qual seriam abordados três
temas: os moliceiros, a cerâmica aveirense e a poesia popular. Foi-me
pedido um texto de 10 minutos para os barcos, tendo assinado um contrato
para executar esse trabalho. Passado um dia, solicitaram-me para
aumentar o texto, primeiro, para o dobro e, mais tarde, para o triplo,
porque as pessoas contactadas, postas perante a máquina, tinham reagido
mal: o poeta não conseguia falar e o especialista em cerâmica, que até
tinha sido indicado por mim e era jurista, não só era incapaz de encarar
a objectiva, como passava o tempo a coçar, por toda a cara e orelhas,
uma imaginária comichão (se não tivesse visto o filme, não me tinha
acreditado em tanta falta de à vontade num orador tão experimentado e de
reconhecidos méritos). Concluindo: não só fui o autor do texto, como
tive também de apresentar o filme “Moliceiros, tempo para morrer”, que
passou, mais do que uma vez, na RTP 2 e na RTP Madeira ou Açores. Por
razões que não interessa mencionar, o apoio a esta produção – aluguer do
barco moliceiro e pagamento aos tripulantes – não foi prestado pela
Comissão Municipal de Turismo de Aveiro; a entidade patrocinadora foi a
Junta de Turismo do Furadouro. O pagamento, que recebi, foi o
inicialmente combinado para um texto de 10 minutos; mas não o
renegociei, porque esta tarefa constituiu para mim uma nova experiência,
bastante agradável, e que, posteriormente, até me veio a ser útil,
noutras participações fílmicas e televisivas. Só discuti, tempos mais
tarde, quando encomendei uma cópia do filme em VHS, para Região de
Turismo da Rota da Luz, e a RTP pediu mais dinheiro do que me tinha
pago.
Fechemos este longo parêntese e voltemos ao programa. No domingo de
manhã, o júri do “Concurso dos Painéis dos Barcos Moliceiros”,
para o qual eram convidadas previamente pessoas conhecedoras – e do qual
eu também fiz parte, até ter deixado de organizar a “Festa da Ria”,
em 1986 –, visitava as embarcações, atracadas no Canal Central, tomava
notas e decisões que, mais tarde, eram comunicadas, por escrito, ao
Presidente da Comissão Municipal de Turismo.
À tarde, no Canal das Pirâmides, realizavam-se as seguintes corridas,
recebendo todos os concorrentes prémios de participação, para além dos
referentes às classificações:
●
“Caçadeiras”
– Pequenas embarcações com 1 remador.
●
“Bateiras à pá – Mulheres”
– 8 remadoras que utilizavam, em vez de remos, pás das
marinhas e 1 timoneiro.
●
“Bateiras à pá – Homens”
– O mesmo número de tripulantes.
●
“Bateiras do chinchorro”
– Dois remadores a cada remo.
●
“Mercantéis à sirga”
– 1 homem a puxar à sirga em cima do cais e outro ao leme.
●
“Mercantéis à vara”
– 2 homens, um com cada vara.
●
“Moliceiros à sirga.
●
“Moliceiros à vara”.
●
“Concurso dos Painéis dos Barcos Moliceiros”
– Entrega de prémios, aos cinco primeiros classificados.
No final, os barcos moliceiros partiam, desfilando perante os milhares
de pessoas que tinham assistido ao espectáculo, durante,
aproximadamente, duas horas, em bancadas situadas junto à meta ou nos
cais dos dois lados do canal.
14.08.2015 |