Até 1979, a secular Feira de Março realizou-se no Rossio. Anualmente,
era construído, na entrada do largo, ao lado do encontro das ruas João
Mendonça e Barbosa de Magalhães, um grande pórtico em madeira, no qual,
e desde que tenho memória, estavam instalados os Serviços Sonoros, à
direita de quem entrava, e um Posto de Turismo, do lado contrário.
Ao longo do Canal Central e da rua
Barbosa de Magalhães, montavam-se as
barracas camarárias – todos os restantes abarracamentos eram propriedade
dos feirantes –, onde se vendia uma grande variedade de produtos:
bijutarias, cutelarias, cerâmica decorativa e utilitária,
marroquinarias, retrosarias, atoalhados, fazendas, brinquedos, revistas
e livros antigos, etc., etc., etc.
A zona compreendida entre estas barracas era conhecida pelo “Picadeiro”
e, nela, as pessoas, em especial aos domingos, passeavam,
interminavelmente, para trás e para a frente.
Foi neste local que surgiu, na década de 1950, o primeiro espaço dedicado,
essencialmente, à exposição publicitária de produtos: um polígono
rectangular, cor de vinho, com outros dois mais pequenos, sobrepostos em
escada, onde estavam colocadas garrafas vazias de uma das Caves da
Bairrada, conjunto este circundado por uma vedação de corda, apoiada em
estacas.
Ao fundo do “Picadeiro”, existiu, também na década de 1940, uma “Casa de Chá” –
grande construção em madeira, pintada de azul claro, cujo acesso era
feito por uma ampla escada e integrava uma galeria com esplanada –,
pertencente à Câmara e que era anualmente concessionada.
Entre esta edificação e as preditas barracas, situadas ao longo do Canal
Central, montava-se um palanque para exibição de grupos folclóricos,
bandas e conjuntos musicais.
Paralelo ao Canal das Pirâmides, organizava-se um arruamento destinado à
venda de maquinaria diversa, alfaias agrícolas e, ainda, de
guarda-chuvas, chapéus e roupas, principalmente de homem. Alguns destes
últimos feirantes, por exemplo, o “Lopes de Penafiel”, acabaram por se
instalar na cidade, pelo que se pode dizer que foi deste sector que
nasceu o “Pronto a Vestir” em Aveiro.
O Circo – os mais frequentes eram o “Luftman” e o “Mariano” – montava a
tenda na esquina das palmeiras, no extremo da rua João Afonso de Aveiro.
Seguiam-se, até à curva deste arruamento, algumas instalações de que
cito as mais usuais: encostado ao Circo, um Estabelecimento de Bebidas e
Petiscos; a seguir, Barracas de Tiro – pelo menos duas, cujas sexi-empregadas convidavam, com vozes super-insinuantes, os potenciais
clientes para um tirinho ao alvo –, o “Comboio Fantasma”, a
“Mosca Sábia”, a “Fornalha Infernal”, etc.
Depois da curva e até à rua Barbosa de Magalhães, onde havia uma segunda
entrada com portão, ficavam as várias tendas de “Louças Artesanais” e a
“Barraca da Viúva” que era também conhecida pela “Barraca do Zequinha”,
porque tinha, na fachada, um pequeno boneco articulado com este nome, o
qual distribuía, a troco de 5 tostões (¼ de cêntimo de euro),
papeizinhos com a sina das pessoas; este abarracamento possuía
Marrecos (era assim que chamávamos aos Matraquilhos) e duas
Gruas Eléctricas, onde se podia ganhar, com alguma habilidade,
bonecos de peluche ou pequenas garrafas de amostras de licores, de que
ainda guardo alguns exemplares.
Todo este abarracamento servia, também, para vedar o recinto, dado que,
aos domingos à tarde e à noite, se realizavam espectáculos, cuja
receita, 1 escudo (½ cêntimo de euro) por pessoa, revertia para a
entidade organizadora: a “Tertúlia Beiramarense”.
O miolo da Feira tinha a seguinte constituição que, de ano para ano,
apresentava poucas novidades.
A Poente do supracitado “Picadeiro”, ou seja da actual Estátua de João
Afonso de Aveiro, montavam-se as Pistas dos Automóveis Eléctricos –
duas, sendo, usualmente, uma de andar à roda de um passeio central e
outra de circulação livre, propiciando choques mais frequentes e
violentos, custando cada corrida 25 tostões (1,25 cêntimos de euro) – e
os Carrosséis, 1 escudo cada viagem (½ cêntimo de euro), sendo os mais
renomados o “Oito” e o “Viagem à Lua” que devia o nome às suas
altíssimas e vertiginosas lombas de 1,5 m de altura.
Na área sobrante, alojavam-se os restantes Divertimentos e Atracções.
As “Farturas”, com pelo menos dois pavilhões, constituíam um dos
principais chamarizes do certame: não havia ninguém, em Aveiro e
arredores, que, pelo menos uma vez por ano, não fosse à Feira comer umas
farturinhas polvilhadas com canela e açúcar, acompanhadas com vinho
branco ou refrigerante, ou levar uma meia dúzia para oferecer a um
amigo, ou a alguém que não tivesse podido deslocar-se. Chegaram a ter a
concorrência espanhola dos “Churros de Don Pepe”, mas foi
sol de pouca dura.
Os “Marrecos”, grande atracção para os rapazes, estavam sempre
representados por vários feirantes e com diferentes tipos de mesas,
havendo delas, até, com fundo metálico, o que era raro e dificultava a
execução dos chamados truques efectuados com os três
atacantes, tornando o jogo muito mais rápido e diferente do praticado
nos tradicionais e usuais bilhares com tampo de madeira, fundo este que
permitia uma maior aderência, logo um melhor domínio da bola, dando
vantagem aos mais tecnicistas.
O “Poço da Morte”, onde dois portugueses, Freddy e Betty, na dupla
cruz da morte, arriscavam a vida, numa parede vertical, completamente
lisa, com 7 metros de altura.
Chegou, também, a vir a “Esfera da Morte” – grande bola construída com
tiras metálicas, suficientemente espaçadas para permitir ver, no seu
interior, um ciclista pedalar com tal velocidade que conseguia fazer uma
volta completa, na vertical, ficando de cabeça para baixo; o nome que
era publicitado era Fernando Moreira, para aproveitar a fama de um
vencedor contemporâneo da Volta a Portugal.
Por vezes, apareciam fenómenos humanos, lembro-me da “Mulher Polvo” –
uma menina albina – e de “Gabriel, o Gigante de Manjacaze”, com quem
mantive uma convivência que, por se ter revestido de aspectos curiosos,
narrarei mais adiante.
Havia umas estruturas metálicas de dois tipos (em rampa acentuada ou
circulares), chamadas “Comboios” que se destinavam a medir as forças dos
jogadores: consistiam em dois rails paralelos, ao longo dos quais
se lançava um objecto em forma de torpedo, com um explosivo na ponta;
quando atirado com força suficiente
–
e tinha que ser muita
–
era atingido
um alvo, colocado no fim da linha, detonando-se a carga e provocando-se
o consequente barulho e, ainda, a admiração do público, especialmente o
do sexo fraco, já que este jogo, dadas as suas características, quase
que só era praticado por homens.
As “Cadeiras Voadoras”, os
“Carrosséis e as Pistas de Automóveis Infantis” eram outros
divertimentos mecânicos que habitualmente vinham à Feira. Nos últimos
anos, apareceram uma “Roda Gigante” e uma “Roda de Póneis”.
Podia jogar-se uma grande variedade de Jogos, mesmo ilegais (neste caso
às escondidas da Polícia), por exemplo, a “Vermelhinha”. Entre os
autorizados e com instalações próprias, havia as Roletas, Tômbolas e
similares. Os mais célebres foram um, em que os prémios eram tachos e
panelas de alumínio, as “Corridas de Cavalos” e o do “Ratinho”, cujo
altifalante, em dias ou noites de nortada rija, fazia chegar, até à
Estação da CP, a mensagem 'ai o filho da mãe do ratinho que não quer
entrar!', que a seguir se decifra. Este jogo era constituído por uma
grande mesa redonda, na periferia da qual estavam montadas dezenas de
casotas numeradas; no centro, havia uma gaiola sem fundo, com um rato lá
dentro. Os jogadores apostavam nos números dos compartimentos e, quando
as rifas estavam vendidas em número considerado satisfatório, a
proprietária levantava a gaiola, puxando um fio, e o rato acabava por
fugir para dentro de uma das divisões, cujo número era o premiado.
Acontecia, contudo, que o animal, por vezes, assustado pelo barulho
feito pelos participantes que rodeavam a tômbola, tentando atraí-lo para
os seus números ou afastá-lo das entradas dos outros concorrentes, demorava a
decidir-se por uma das portas e, daí, a exclamação veemente que se
ouvia, com uma certa frequência, um pouco por toda a cidade, dependendo
da direcção do vento.
Para completar esta descrição, cuja fidelidade só depende da minha
memória (que já foi incomensuravelmente melhor), pois não consultei
nenhuns documentos, creio que só me falta referir os Vendedores de
Pipocas, de Algodão Doce e de Tremoços e Pevides, os chamados Ceguinhos
– que cantavam e vendiam em folhetos coloridos o que agora se publica
nas revistas cor de rosa, por exemplo, a história da fuga da cigana
“Carmencita, linda graça, / Abandonou sua raça, / Foi atrás de um sonho
lindo...” – e, ainda, os inevitáveis pedintes e carteiristas que, vim a
saber mais tarde, vinham todos do mesmo sítio e alugavam uma camioneta
para se deslocarem, aos domingos, para este rendoso local de trabalho.
o O o
Apresentada a Feira, falarei da minha visão e também experiência na
qualidade de utente.
Em criança, fazia duas visitas anuais, uma com a minha mãe e outra com
os meus padrinhos, pelo que ganhava dois brinquedos. O primeiro de que
me lembro foi de um “Ciclista”, boneco artesanal em madeira muito
característico da Feira e que consistia num monociclista policromo, de
chapéu de coco, com pernas e braços articulados, montado numa grande
roda, munida de um cabo; quando se empurrava, o girar da roda fazia não
só o ciclista pedalar, mas também movimentar os braços e, ainda, tocar
uma campainha. Gostava tanto deste brinquedo que o guardei durante muito
tempo e, quando tive responsabilidades na organização da Feira,
encomendei um cartaz do certame, em que o “Ciclista” era o motivo
central, peça publicitária essa de que o autor me ofereceu a Arte Final,
que está emoldurada e pendurada numa das paredes da sala, onde estou a
escrever este texto.
Os brinquedos dos anos seguintes foram carrinhos e camionetas de
madeira, telecomandados através de um cordel, com uma ponta amarrada aos
pára-choques e a outra puxada por mim. Passada a fase dos transportes,
entrei na da cinegética, passando a escolher espingardas de lata para as
minhas caçadas caseiras, dado que não tinha idade para ir brincar para a
rua. A última destas armas possuía uma particularidade: tinha um
projéctil de cortiça que, como o da “Guerra do Raul Solnado”, estava
amarrado por um fio, para permitir a sua recuperação.
Entretanto, os anos passavam, fui para a Escola Primária e tive
autorização para vir brincar para a rua com os outros garotos, sendo, à
noite, a hora de voltar para casa marcada, durante muitos anos, pelo
Toque de Recolher, tocado pela Fanfarra ou só pelo Corneteiro do
Regimento de Infantaria 10. Então, entrei no período bélico, pedindo
revolveres de lata ou colts, nos primeiros tempos, de barro preto
e, mais tarde, metálicos e com fitas de fulminantes, para jogar,
respectivamente, aos polícias e ladrões ou aos cowboys,
conforme o filme que passasse na matinée do domingo anterior, no
Cine Avenida, utilizando a rapaziada a técnica de entrada à borla,
também usada no futebol, e que consistia em pedir a um homem, que
entrasse sem ser acompanhado de nenhuma criança, “meu senhor, leve-me
consigo”. Ao contrário do futebol, no que respeita ao cinema não
tive que recorrer muitas vezes a este expediente, porquanto o meu
padrinho conhecia um dos bilheteiros que, mais tarde, veio a ser meu
tio, porquanto me casei com uma das suas sobrinhas, o qual me facilitava
a entrada para as primeiras filas da plateia, onde me juntava à
rapaziada borlista que se assumia como uma claque fervorosa e, por
vezes, ruidosa, do actor principal, avisando-o, quando os bandidos ou os
índios – para nós eram da mesma laia – tentavam atacar, à traição, o
nosso herói.
Um outro tipo de presentes, que ganhei na Feira, foi de índole musical.
Primeiro, um grande tambor vermelho, que não pedi, mas que se
arrependeram, mil vezes, de me ter oferecido, pois passava o dia a
tocá-lo, azucrinando a cabeça de toda a gente lá de casa. Depois, vieram
os instrumentos de sopro: ocarinas de vários tamanhos e harmónicas de
boca, que toquei, até aos 17, 18 anos, começando com a “Rosa arredonda a
saia” e acabando com peças muito mais complicadas que já requeriam
auxílio de pistão; mas o primeiro de todos foi um pífaro de barro, com
três furos, que me proporcionou, umas quatro dezenas de anos depois, uma
experiência de alto teor emocional, que passo a descrever.
Nos anos 80-90, passei, muitas vezes, a última semana de Janeiro, em
Madrid, para participar na “FITUR” (“Feria Internacional del Turismo de
Madrid”). Nos períodos do dia em que o certame estava encerrado ao
público, costumava passear pela cidade e, uma manhã, na esquina da
calle Mayor com a Plaza de Oriente, olhei para a montra de um
bom estabelecimento de música e, para meu espanto, vi, no meio de vários
instrumentos musicais clássicos, e em lugar de destaque, um pífaro
igualzinho ao que me tinha sido comprado, muitos anos antes, na Feira de
Aveiro, ao qual não faltavam as duas listas, uma vermelha e outra verde,
indicadoras da sua origem portuguesa. E, de repente, tal como aconteceu com a personagem proustiana, quando trincou a madeleine,
deixei não só de ser um homem, em Madrid, para voltar a ser a criança a
olhar para o pífaro da tenda da louceira da Feira de Março. Mas, mais
complicado ainda e só explicável recorrendo-se a complicados sistemas
sinestésicos, senti, de imediato, nos lábios, o sabor do barro cozido,
não envernizado, que a minha memória tinha guardado em segredo, numa
recôndita circunvolução cerebral e, aparentemente, sem nenhuma
utilidade, durante tantos anos. E, depois desta experiência, será
difícil vir a sentir-me inferiorizado perante os mais sofisticados
aparelhómetros da chamada inteligência artificial, pois duvido que haja,
ou venha a haver, uma máquina capaz produzir este resultado fantástico,
que um vulgaríssimo cérebro humano pode realizar, sem que para tal,
tanto quanto sei, tenha sido especificamente programado.
Para terminar as minhas visitas infantis à Feira, falarei de uma ida ao
Circo, com os meus pais, durante a qual aconteceu um episódio que ficou,
apesar de ser ainda muito novo, tão profundamente gravado na minha
mente, que não preciso de fechar os olhos para ver a sua repetição
exacta e a cores. Estávamos sentados na primeira fila das cadeiras de
pista e decorria um número de trapezismo; a artista, cujo nome artístico
era Mimi Codonis e envergava um maillot azul, tomou balanço,
saiu do seu trapézio e, não tendo sido agarrada pelo base – trapezista,
pendurado pela dobra das pernas, que faz a recepção dos voadores –,
passou por cima do topo inclinado da rede de segurança e terminou o
voo, em cima do público, a poucos metros de nós. Segundo ouvi dizer
inúmeras vezes à minha mãe – que a partir daí nunca mais gostou de ver
trapezismo, nem mesmo na televisão e sabendo, de antemão, que não iria
acontecer nenhum desastre –, aleijaram-se mais os assistentes que
serviram de colchão do que a artista que, de qualquer maneira, não deve
ter ganho para o susto.
Passada a idade dos presentes, poucas são as recordações que guardo da
Feira, porquanto não era grande frequentador, dado que as poucas
Diversões – marrecos e automóveis eléctricos –, que me poderiam atrair,
custavam dinheiro e isso era coisa que raramente existia nos meus
bolsos. No que respeita aos automóveis, por vezes, dava umas voltas,
porque o meu padrinho, que era capitão do exército, tinha uma ligação
qualquer, creio que mais oficiosa que prática, ao Socorro Social, pelo
que lhe davam umas senhas que vinham parar à minha mão.
Em 1957, fui admitido, após concurso público, como funcionário dos
Serviços de Turismo da Câmara Municipal de Aveiro, cujo Posto de
Informações se situava no Rossio, aproximadamente, onde está erigida a
supracitada Estátua de João Afonso, ou seja, em plena Feira de Março,
pelo que acabei de ser, durante um mês por ano, uma espécie de feirante.
Essas instalações eram frequentadas por participantes na Feira, para
lerem os jornais que recebíamos diariamente (“Primeiro de Janeiro”, “Jornal
de Notícias” e “Comércio do Porto”), pelo que me relacionei com vários,
o que me permitia ter livre acesso à maior parte das Diversões,
facilidade essa que rarissimamente utilizei, a não ser para ver, muitas
vezes, nas horas vagas, – note-se que tinha um horário especial, pois,
entre outras funções, fiscalizava, à hora das refeições, a restauração e
a hotelaria – os treinos dos artistas de circo, tendo tido a sorte e o
privilégio de assistir a algo de muito interessante que a seguir vou
contar.
Um dos cabeças de cartaz do “Circo Mariano” era “Moisés”, um
equilibrista que dava o salto mortal, sem barra de equilíbrio, na corda
bamba. Aconteceu, porém, que o artista tinha tido um acidente e
contraído uma lesão que, durante uns tempos, o impossibilitou de
realizar o seu número de eleição, pelo que, após ter recuperado
fisicamente, entrava só num número secundário de Forças Combinadas,
com as “Irmãs Ofélia”, e treinava, afincadamente, para voltar a ser uma
das vedetas do espectáculo. Assim, tive a oportunidade de o ver dar
inúmeras vezes o salto mortal, num cabo de aço esticado, mas que dançava
para todos os lados. Lá para o fim da Feira, o número saía,
praticamente, sempre à primeira e, quando lhe perguntaram porque é que,
nos espectáculos, falhava sempre uma vez, ouvi-o responder: “Se eu o
fizer à primeira tentativa, o público até fica a pensar que é fácil; eh
pá, mas se eu cair à segunda, é porque foi mesmo um falhanço.” Depois do
Moisés, já vi vários artistas fazer este número, mas com barra de
equilíbrio, especialmente na TV. Todavia, se nunca tivesse assistido e
se alguém me viesse dizer que tinha visto, não acreditaria facilmente
que tal fosse possível.
Para terminar esta Viagem ao Passado na minha Máquina do Tempo
chamada Memória, falta-me cumprir a promessa de falar dos contactos
que tive com “Gabriel, o Gigante de Manchacaze”. Num dia de Abril dos
anos 70, fui procurado nos Serviços de Turismo, à época instalados no
edifício Fernando Távora, por uma pessoa que trazia um cartão de um
filho do empresário do Circo que se encontrava na Feira, onde me era
pedido para ajudar o portador num assunto muito importante.
Quem pretendia falar comigo chamava-se Manuel Chora, era alentejano e
empresário do moçambicano Gabriel Estêvão Monjane ou Mondlane que com os
seus 2,50 metros de altura (na publicidade 2,62 m) era considerado o
maior homem do mundo, gozando de fama internacional. Uns tempos antes,
tinha estabelecido um pré-acordo com um colega sueco, cedendo os seus
direitos, durante um determinado tempo, para que o gigante fosse exibido
na Escandinávia. Mas, depois, pensando melhor, resolveu roer a corda,
porque lhe veio à ideia que o Gabriel, começando a receber em ricas
coroas suecas, em vez de em míseras coroas portuguesas e vendo-se
rodeado de maganas louraças – diga-se, de passagem, que ele não só era
louco por mulheres, mas tinha, também, uma especial predilecção por
louras –, podia resolver ficar lá pelo Norte da Europa, perdendo o
compadre Manel a sua única e rentável fonte de subsistência.
Acontecia, porém, que o empresário nórdico já tinha assumido encargos,
pois tinha alugado locais para a exibição do fenómeno, na Suécia, na
Noruega e na Dinamarca. Nesta conformidade, informou o Manuel Chora que
iria mandar um representante a Portugal, para restabelecer as
negociações, o qual chegaria alguns dias depois. E, aí, entraria eu como
intérprete, não em sueco, mas noutra língua, que foi o francês. As duas
reuniões, que duraram longas horas, realizaram-se, em fins de tarde, no
Hotel Arcada; o emissário apresentou uma série de substanciais melhorias
das condições contratuais, fez ameaças que se sabiam infundadas, pois
tinha sido previamente consultado um advogado, mas nada demoveu o
compadre Manel, ficando o sueco furioso e despedindo-se, mandando o
português para o diabo, insulto que, vim a saber mais tarde, por um
amigo que tem a dupla nacionalidade, é a coisa mais violenta que se pode
proferir na sua língua natal, mas que, no francês em que foi dita e no
português para que eu a traduzi, não preocupa nem choca ninguém, por
mais católico que seja.
Posto este longo intróito, vou passar à parte mais interessante dos meus
contactos com o bom gigante e seus parceiros liliputianos. A partir
destas reuniões e não tendo querido aceitar nenhuma remuneração pelo meu
trabalho, passei a frequentar, com uma certa assiduidade, a tenda onde
se exibia Gabriel, com dois anões: um deles, negro, disseram-me que era
também do Distrito de Manchacaze, e o outro, branco, era o mais pequeno,
só tinha 75 centímetros de altura e, salvo erro, chamavam-lhe o
Joãozinho de Tortozendo. Este último, apesar de ocupar um dos lugares
mais baixos na escala métrica mundial, se houvesse uma classificação
alcoólica, disputaria o topo; só um exemplo: uma tarde, quando eu estava
a conversar com o Chora, encostou-se com as duas mãos ao joelho do meu
interlocutor e, passado pouco tempo, já estava a ressonar.
O espectáculo em si não tinha nada de especial: corria a cortina e
Gabriel aparecia sentado num enorme cadeirão de madeira, ladeado pelos
anões que, em seguida, se sentavam nos seus joelhos; para terminar, o
gigante levantava-se com os seus parceiros nos braços e pousava-os no
chão; tudo se resumia a exibir a enorme diferença de estaturas e de
volumes – Gabriel não era gordo, longe disso, mas pesava mais de 180
quilos. Curiosamente, num primeiro contacto, poder-se-ia esperar que ele
tivesse uma voz áspera, desagradável; pelo contrário, falava de uma
maneira suave e muito bem modulada, o que condizia com a sua
personalidade tímida, receosa e reservada.
Os aspectos mais curiosos que mencionarei referem-se primeiro, a duas
das técnicas publicitárias utilizadas, na cidade: numa delas, o gigante
passeava, com um chapéu de cowboy, sentado no banco de trás de um
grande “Chevrolet Impala”, preto, descapotável, com os polegares metidos
nas cavas do colete e os cotovelos tocando nos dois lados do carro; na
outra, era utilizado um dos seus enormíssimos sapatos, branco e
castanho, exposto na montra de uma lavandaria, dentro do qual, às vezes,
se via o anão branco sentado, como se fosse um atleta numa canoa.
Seguidamente, abordarei alguns acontecimentos que observei e em que até
participei, passados nos bastidores da tenda. Gabriel tinha pouco
equilíbrio, por causa não só da sua altura, mas também e principalmente
devido a problemas na cabeça de um dos fémures, anomalia a que, mais
tarde, creio que foi operado, na África do Sul, pelo que tinha um
terrível medo de cair; aliás esse receio veio a confirmar-se ser
justificado, porquanto morreu, aos 46 anos, na sua aldeia natal, na
sequência de uma queda, em que bateu com a cabeça no chão. Assim, quando
o conheci, apoiava-se, sempre, fora das exibições, numa grande canadiana
de ferro, pintada de azul, e, quando chovia e o terreno da Feira, que
era de terra batida, estava escorregadio, tinha medo e não ia dormir a
uma casa de hóspedes, situada na Póvoa do Paço, utilizando uma cama de
ferro, tipo hospitalar, também de cor azul, com 3 metros de comprimento,
que existia nas traseiras da tenda.
Um dia, Gabriel estava sentado nessa cama, perto da cabeceira, a ler
uma revista aos quadradinhos e eu encontrava-me, no lado oposto, a falar
com o Chora. A certa altura, vi que ele tinha acabado de ler a revista e
que se preparava para pegar noutra que estava perto de mim e longe dele;
raciocinando como uma pessoa de estatura normal, preparei-me para lha
chegar, mas, antes que o fizesse, o sujeitão esticou o braço e pegou
calmamente no livrito.
Para terminar o relato das minhas Aventuras de Gulliver na Tenda do
Gigante e dos Anões, direi que passei alguns fins de tarde, em que
não havia público para os espectáculos, a jogar umas Suecadas, tendo por
parceiro o Gabriel e por adversários os anões. As cartas, nas minhas
mãos, tinham um tamanho normal, nas dos anões, pareciam ser calendários
de parede e o hiper-calmeirão alinhava as 10 cartas, ao lado umas das
outras, na palma da mão esquerda, onde pareciam selos do correio.
Agora, que estou a escrever isto, lembrei-me de averiguar se posso vir a
inscrever o meu nome no “Guinness”, como a pessoa que já jogou à Sueca,
com os parceiros mais bizarros. É que, além destes, quando tinha os meus
18, 19 anos, ocupei algumas tardadas das férias, que passava na aldeia
dos meus avós paternos, a jogar à Sueca contra o dono da venda (era este
o nome que se dava às tascas, lá na terra) e um dos seus filhos, que era
surdo-mudo, tendo como parceiro um pobre que andava, de alforge às
costas, a pedir pelas aldeias, e a quem chamavam o Astória, porque teria
sido empregado de mesa do hotel com esse nome, existente em Coimbra. E,
nesse caso, não se jogava propriamente a feijões.
02.08.2015 |