Quando era Vogal da Comissão Executiva da Região de Turismo da Rota da
Luz, tive de me deslocar à Murtosa, para falar com o Presidente
da Câmara. À chegada, fui informado que o autarca ia chegar com uma hora
de atraso, pelo que me dirigi a um “snack” próximo, para beber uma
cerveja, enquanto esperava.
Sentei-me a um balcão em U, defronte de um homem na casa dos
setenta e, passados poucos minutos, chegaram três jovens que se
instalaram junto dele, dizendo um:
– Boa tarde, Ti Manel (este nome é a única coisa inventada, nestas
histórias), então o que é que o traz, hoje, cá à Murtosa?
– Vim à Câmara tratar duns assuntos.
– Conte a estes meus dois amigos aquela, quando foi aos patos e apanhou
uma caldeirada.
– Pois é verdade, tinha aberto a caça na Ria e eu fui dar uma volta a
ver se matava algum pato distraído. Apareceu-me uma vala mais funda do
que eu pensava e, ainda por cima, com o fundo mole. Atolei-me, fiquei
com água pela cintura e vi-me à rasquinha para sair. Quando cheguei ao
outro lado, tirei uma das botas altas e, quando a vazei, caiu uma data
de enguias; a outra ainda tinha mais. Pensei cá para mim: Manel, estás
todo molhadinho, tens uma boa teca de enguias, deixa lá os patos, por
hoje, que amanhã também é dia, e vai para casa secar-te e amanhar as
enguias.
– E a do coelho, no pinhal perto de sua casa?
– Estás enganado, não foi um coelho, foi uma lebre. Cheguei a casa,
perguntei à mulher o que era o jantar, ela disse-me que era escoado.
Estava-me mesmo a apetecer um coelhinho ensopado. Peguei na arma, mas vi
que não tinha nenhum cartucho carregado. Fui buscar o material; pólvora
e buchas havia, mas chumbo nem vê-lo. Mas eu estava cismado no raio do
coelho. Veio-me então à cabeça que tinha em casa uma mão cheia de
tachas. Fui buscá-las e carreguei os cartuchos com elas. Se se espetavam
na madeira também se haviam de cravar na carne, que é mais mole. Quando
ia a chegar ao pinhal, vi uma lebre que andava numas couves de uma
vizinha. Aproximei-me devagar, mas quando me pressentiu, fugiu a caminho
do pinhal. O tiro era comprido, mas a minha espingarda era para a caça
da Ria e tinha os canos muito longos e bem chocados. Apontei-lhe e
disparei, quando ela ia mesmo a chegar ao primeiro pinheiro, onde ficou
pregada pelas orelhas. Era cá um chibarro... tive que a pernar e amarrar
ao cinto pelas patas traseiras e pelas mãos, se não tinha vindo com as
orelhas a roçar pelo chão.
– Ti Manel, ainda tem aquela motorizada com que caiu à água?
– Então não havia de ter, homem! Já não se fazem máquinas como aquela.
Mas eu conto que estes senhores não conhecem essa peripécia.
Nessa altura do campeonato, eu já era considerado um ouvinte e dos
interessados.
– Ainda era de noite, a maré já vazava há mais de uma hora e eu ia com
pressa, para o Bico, onde tinha amarrada a minha bateira, para ir ver se
matava uns robalinhos. O nevoeiro era de cortar à faca, não se via um
boi à frente dos olhos. E não é que, quando dei por ela, já tinha
passado o fim do cais e estava chapado na água. Não havia ninguém e eu
também não fui procurar ajuda, porque não queria ser gozado, ainda me
haviam de passar a chamar o Manel Mergulhador. Fui buscar a bateira,
sondei com a vara e depressa dei com a máquina. Despi-me, amarrei a
ponta de um cabo na embarcação, meti-me à água com a outra ponta na mão,
mergulhei um pouco, aos apalpões, ainda levei uma queimadela, quando
toquei no escape, e amarrei o cabo ao quadro da motorizada. Vim para o
cais e puxei-a para terra. Dei-lhe uma limpadela, a vela tinha um fiapo
de moliço, sem querer carreguei no botão de arranque e não é que o motor
pegou logo à primeira! Grande máquina! Agora é tudo automático...
modernices.
Para terminar este cacharolete de mentiras, mas ditas por um caçador,
pescador e proprietário de uma oficina de duas rodas, narro outra
história de caça contada por um atirador que só teria disparado em
carreiras de tiro militares.
Durante anos, costumava encontrar-me com uns amigos que se juntavam num
restaurante, que ainda hoje existe, mas com outras características, à
volta da mesa baptizada do Molha o Bico. Eu, que jantava às sete,
para tomar um café, eles, que comiam às oito e meia, para beber um copo
como aperitivo, todos para confraternizar.
Um dia, apareceu, para encomendar um jantar de perdizes, uma pessoa
com quem mantive variados contactos a nível profissional e não só,
falecida há poucos anos. Falou-se, como seria inevitável, de perdizes; e
o proprietário do restaurante, grande caçador e óptimo cozinheiro de
espécies cinegéticas e de pratos alentejanos, não perdeu a oportunidade
de narrar como tinha dizimado um bando de perdizes, de pouso a pouso, em
terras alentejanas. O nosso amigo, a certa altura, disse:
– Eu, o maior número de perdizes que matei, com um tiro, foram onze.
– Como foi isso? – perguntou o mestre Cuca, pensando que se tratava de
uma piada, mas tendo entendido, pelo meu piscar de olho, que era algo
diferente.
– Eu ia por um carreiro e vi uma data de perdizes a comer, ao longo de
um rego de arado, umas do lado esquerdo, outras do direito, todas com
as cabeças viradas para dentro; apontei ao meio e matei-as todas. Meus
senhores, boa noite, para a semana, cá estarei com cinco amigos para
comermos as perdizitas estufadas.
Após a partida, o meu amigo caçador-cozinheiro desabafou:
– Então eu que passei grande parte da minha vida atrás das perdizes,
era considerado um bom atirador e só fiz três dobles (duas perdizes com
um tiro) e tive que ouvir esta mentira calado como um rato. Raios me
partam se não estive quase a perder um bom cliente!
O narrador-testemunha, a quem o pai ofereceu uma pressão de ar quando
fez o 2.º ano do Liceu, embalado por todos estes exageros, sente-se
tentado a participar na última historieta, dizendo, no final, ainda que
fugindo, pela única vez, à verdade histórica:
– Tem piada que já me aconteceu uma coisa parecida, mas só matei dez: o
perdigão fugiu com a perdiz e só os pus abaixo com o segundo cano.
02.02.2015 |