REGRESSO AO PASSADO

Ao remexer numa estante do sótão, na semana passada, deparei com uma gravação áudio, cuja visão me provocou o mesmo efeito que o sabor da madeleinetinha produzido a Marcel Proust: um recuo temporal súbito e enorme, no meu caso de quarenta e quatro anos. Ou seja, instantaneamente, senti-me na plateia do antigo Teatro Aveirense, sentado numa cadeira das filas pares junto das frisas, a viver minutos de grande tensão. Após ter recuperado, emocionalmente, do que revivi em poucos instantes, em tempo real,   mas que teve uma maior duração psíquica, pensei que seria interessante contar essa experiência que nada tem de mística pois é bem conhecida cientificamente , até porque já tinha efectuado uma outra viagem no tempo semelhante, em Madrid, nos anos oitenta, a qual já narrei no meu livro de Memórias, essa mais complexa, porquanto implicou uma sinestesia gustativa. Quando estava a rascunhar mentalmente esse possível texto, veio-me à memória um outro acontecimento coevo que também nunca poderei esquecer, se bem que por razões bem diferentes, pela narração do qual decidi começar este meu artigo.

Nos anos de 1974 e 1975, enquanto a Câmara Municipal de Aveiro foi gerida por uma Comissão Administrativa, os Serviços de Turismo foram incumbidos de levar a cabo vários espectáculos essencialmente culturais que, muitas vezes, pouco tinham a ver com  Turismo, talvez porque a Comissão Municipal tivesse orçamento autónomo. E eu, na qualidade de funcionário, vi-me envolvido, por vezes profundamente, nessas organizações.

Ulisses amarrado ao mastro escutando as sereias, enquanto a tripulação prosseguia a viagem
com os ouvidos tapados com cera.

Uma delas foi a vinda a Aveiro, Ílhavo e Águeda da peça teatral Um barco para Ítaca da autoria de Manuel Alegre e encenada pela companhia lisbonense Casa da Comédia. No Teatro Aveirense não houve problemas de montagem, apesar do cenário ocupar pouco espaço e ser muito baixo (5 metros), na medida em que o palco dispunha de uma  estrutura e de um equipamento que lhe permitiam ser considerado o melhor do País. Baixou-se a bambolina-régia, criou-se uma rotunda com um grande ciclorama azul e o cenário foi montado no meio dela. Já no respeitante às outras duas localidades as coisas correram de maneira muito diferente, se bem que por razões bem distintas. Já não sei qual a razão, mas tive que colaborar activamente nesses espectáculos.

Em Ílhavo, fui previamente averiguar como era o palco do cinema, o qual tinha uma grande dimensão, mas não estava minimamente equipado para nele se realizarem espectáculos teatrais. Subi a um varandim lateral, para verificar se, não havendo teia para pendurar o ciclorama de Aveiro, haveria alguma estrutura no tecto por onde se pudessem passar umas cordas para o suspender. O passadiço estaria a meia dúzia de metros do chão, a luz àquela altura era muito pouca e eu avançava, lenta e lateralmente, tentando descortinar alguma coisa lá em cima, com as duas mãos no corrimão. Foi a minha sorte, porquanto, de repente, o estrado acabou e enfiei a perna da frente pelo buraco abaixo, ficando agarrado ao corrimão. Se fosse a andar normalmente, não estaria hoje a escrever isto. Quando vou a Ílhavo e passo a conduzir no local, apesar de o cinema já não existir, as mãos ainda se me crispam instintivamente no volante. Não me lembro da representação, o que quer dizer que decorreu sem problemas.

Em Águeda, o espectáculo foi à cena no Auditório do CEFAS, onde o cenário se adaptava perfeitamente ao palco. A casa estava cheia, mas à hora do espectáculo a rua fronteira encontrava-se pejada de gente que queria entrar à viva força. Estávamos em pleno PREC (Processo Revolucionário Em Curso) e Águeda era não só a terra natal de Manuel Alegre, mas também lá residiam os seus pais. Não me lembro se havia algum piquete da GNR, mas a situação ia-se complicando com o passar do tempo, tendo chegado ao ponto de se verificarem não só ameaças, mas também tentativas para se forçarem as portas de entrada. Ocorreu-me telefonar para a Escola Central de Sargentos e o Oficial de Dia que, por casualidade, era meu conhecido, dado que tinha sido meu treinador quando jogava Andebol no Galitos, informou-me que não tinha disponibilidades para responder à minha solicitação. O início do espectáculo estava a atrasar-se, porquanto um dos carros com actores ainda vinha a caminho, e a tensão não parava de aumentar no exterior. Veio-me à ideia uma solução: dar-se novo espectáculo no dia seguinte. Falei com o encenador, se a memória me não falha, chamava-se Norberto, para saber da viabilidade da minha sugestão. Depois de uma breve consulta foi-me dito que era possível e seguidamente fui falar com Manuel Alegre, acompanhado por alguém de quem não me recordo. Parece que ainda o estou a ver, entre-cenas, sentado num caixote, na posição do Pensador de Rodin. Comunicámos-lhe a ideia e solicitámos a sua colaboração para a comunicar aos seus conterrâneos da varanda ou janela do edifício. Assim foi feito. As pessoas retiraram-se em boa ordem, o espectáculo correu bem e a noite acabou na casa de família do poeta, se não me engano, na chamada Rua de Baixo, a comer chouriça assada e a beber uns copos, ouvindo histórias e historietas contadas, entre outros, pelo pai do poeta, Francisco Duarte, grande conversador, grande caçador e grande atleta, creio que foi campeão nacional de salto à vara. Já agora, acrescento que Manuel Alegre foi também campeão nacional, mas de natação, salvo o erro, em 400 m livres na Figueira da Foz. Esta capacidade atlética é hereditária, dado que, para além do pai, a avó e o tio paternos do poeta, Maria Teresa de Faria e Melo (1ª Baronesa da Recosta) e Mário Duarte foram grandes desportistas.

Terminada esta digressão teatral, vou voltar ao espectáculo com que iniciei este escrito. Na supracitada época, o Presidente da Comissão Municipal de Turismo de Aveiro, Alberto Gomes Andrade, incumbiu-me de organizar um Encontro de Coros, para o qual iria convidar o maestro Lopes Graça. Aceite o convite, foi solicitada a colaboração de Fernando Morais Sarmento, à data, maestro do Coral Vera Cruz, para sugerir nomes de corais do distrito, tendo sido escolhidos, salvo erro, doze, os quais foram informados das características do espectáculo e receberam cópias do arranjo musical da canção popular que iriam cantar em conjunto. O programa previsto era o seguinte: numa primeira fase, cada coral interpretaria duas cantigas do seu reportório, não podendo exceder um determinado tempo; na fase seguinte, cantariam todos o Milho Rei e o Hino Nacional, sob a direcção do Maestro Lopes Graça. Entretanto, solicitei aos Serviços de Armazéns  da Câmara que fosse montada no palco, no dia do espectáculo, parte da bancada do rinque do Parque para servir de estrado aos coralistas na actuação conjunta iriam ser à volta de trezentos, pelo que alguns tiveram de actuar lateralmente a nível do palco e uma estrutura em forma de cone truncado, com degraus embutidos, para o maestro.

Maestro Fernando Lopes Graça

No dia do espectáculo, fui com o predito Vereador, o Maestro e mais três pessoas, que já não sei quem eram, merendar à Costa Nova e, depois de se ter conversado sobre assuntos epocais, começou-se a falar sobre o espectáculo dessa noite. O Maestro, após ter elogiado a iniciativa da Câmara de Aveiro, disse uma coisa, que em seguida traduzirei por palavras minhas, mas sem desvirtuar minimamente o seu teor, que nos deixou, ao senhor Alberto Andrade e a mim, não só preocupados, mas também em pânico, quando nos apercebemos que Lopes Graça, que sabíamos ser de antes quebrar que torcer, não estava a fazer humor, mas a falar muito a sério. Então aqui vai a intervenção do Maestro, em discurso directo para ter mais sabor. «Meus senhores, tiveram uma óptima ideia, agradeço-vos terem-se lembrado de mim, mas lamento ter de vos dizer uma coisa: tem que ser um dos maestros dos Corais participantes a dirigir o Hino Nacional, porque eu não o farei. E não dirigirei o Hino, porque a versão oficial é um arranjo do Ruy Coelho em andamento nazi de passo de ganso e eu entendo que o andamento do nosso Hino deve ser bem português e em passo de touro.» Disse-se-lhe que o teatro tinha a lotação esgotada, que as pessoas tinham comprado bilhete essencialmente para o verem a dirigir os coros e não para assistirem a um espectáculo de música coral, mas ele mantinha-se intransigente, acabando por dizer: «Só gosto de coelho quando é cozinhado por mim na minha casa de Lourel, onde terei muito prazer em vos receber.» Voltámos para Aveiro e no Posto de Turismo, situado no Edifício Fernando Távora, o Vereador e eu continuámos a tentar demover Lopes Graça da sua decisão. Ao fim de muita conversa ficámos com a impressão de que, por fim, o tínhamos convencido.

À noite tudo estava a correr muitíssimo bem. Os coros foram muito aplaudidos e o Maestro deu uma lição de como se deve interpretar uma peça de música coral: a concordância entre a música e o poema, a adequação das tonalidades, as pausas, as ligações melódicas, etc. etc. Acabado o Milho Rei, virou-se para a assistência eu, na minha lateral par, senti, de imediato, um alarme disparar dentro da cabeça e, ele, aí vai disto, repetiu o discurso da tarde, só tendo faltado a do coelho cozinhado em Lourel. A reacção do público foi imediata, ouvindo-se Comuna, Vermelho e por aí adiante. Todavia, o PCP e o MDP/CDE tinham procedido a alguma mobilização, pelo que Lopes Graça contava também com apoiantes. O ambiente estava a começar a aquecer demasiado e eu, que sentia ter alguma responsabilidade no que se estava a passar, tive uma ideia para evitar que se chegasse ao ponto de ebulição: falei com os dois ou três amigos que estavam comigo e com alguns vizinhos e começámos a fazer uma coisa que eu já tinha feito várias vezes no palco daquela casa, quando fazia parte do orfeão do Liceu de José Estêvão: cantar o Hino Nacional. O nosso canto foi alastrando, chegou ao palco, os grupos arrancaram e eu já não vi mais nada. Abalei em direcção à cabine de projecção no 1º Balcão, para me apoderar da gravação áudio que eu tinha encomendado, temendo que ela pudesse vir a cair em mãos que usassem o seu conteúdo em detrimento do Maestro Fernando Lopes Graça, pessoa que eu muito admirava e admiro, não só por ter sido um dos maiores músicos portugueses do século XX, mas também pelo admirável trabalho de recolha da música popular portuguesa em que colaborou com o etnólogo corso Michel Giacometti, o qual culminou com a edição do "Cancioneiro Popular Português. 

Quem me diria que essa insignificante bobine, que sempre guardei em minha casa pela razão atrás exposta, mesmo sabendo que no caso de ela vir a ser debitada à Câmara eu estaria a cometer uma ilegalidade, me viria a proporcionar, tantos anos depois, não só um inusitado regresso ao passado, mas também motivo para um artigo de jornal!

Aveiro, 10 de Dezembro de 2019

Diamantino Dias

 

09-01-2020