Há tempos, recebi uma mensagem,
com a qual se pretendia publicitar Aveiro, mas que, tendo sido
feita por alguém que só tinha um conhecimento googliano
desta cidade dos canais, acabava por não ser mais do que um
grande amontoado de disparates. Respondi ao “e-mail”, informando
o remetente de alguns dos erros mais flagrantes, um dos quais
era o seguinte: localizava o Parque Municipal na Rua Luís
Cipriano – para quem não sabe, é uma travessa entre a Rua dos
Combatentes da Grande Guerra e a Rua do Batalhão de Caçadores 10
–, e, para que ninguém se enganasse, pormenorizava que o número
da porta de entrada era o 21. Nessa mensagem, que eliminei no
computador depois de enviada, eu fazia retoricamente a seguinte
pergunta: “Então o Parque tem porta?!”
Desconfio que, entretanto, devo
ter clicado inadvertidamente no “Neurónio-Arquivo”, porquanto,
há dias, quando ia a passar na Avenida Araújo e Silva e olhei
para a entrada do Parque, automaticamente, o meu computador
neuronal entrou no “Modo Pesquisa”, mostrando-me o “Ficheiro
Parque”. De imediato, veio-me à ideia que se a supracitada
pergunta tivesse sido feita há poucos anos, só não teria tido um
sim como resposta, porque as portas eram, então, mais do que
uma, porquanto o Parque era totalmente fechado. Do lado da
Avenida Artur Ravara, o muro era igual ao existente na Avenida
Araújo e Silva e, ao fundo das ladeiras, havia um grande portão
com a mesma estrutura do que o que está na Avenida Araújo e
Silva. Ao cimo das escadarias, que ligam o Jardim ao Parque,
havia uns pequenos portões metálicos. O recinto fechava ao pôr
do sol, sendo as pessoas avisadas do encerramento, pelo som de
uma sineta, tocada pelo guarda, o senhor Adriano.
A partir desse momento, o Parque
tinha dois tipos de frequentadores: os legais e os ilegais. Os
primeiros eram os que praticavam desportos no ringue(1) ou os que
lá iam assistir a espectáculos desportivos, culturais ou
recreativos. Os segundos podem ser divididos em várias
categorias e as suas actividades constituem a matéria deste
artigo.
Assistentes no ringue de
patinagem do parque Infante D. Pedro, em Aveiro, num jogo dos
Galitos em 1954.
Ver «Clube dos Galitos» em «Memórias de Aveiro» do espaço «Aveiro
e Cultura».
Pescadores à linha
Nos anos 40/50, o lago era um grande viveiro de
pequenos peixes de água doce, predominando os pimpões, e havia
quem pescasse estes últimos, com dois intuitos: uns, para os
porem nas suas casas, em aquários; outros, para os venderem a
pessoas que tinham também esse desejo. Os apetrechos de pesca
eram muito elementares: um fio (antes de ter aparecido a
sediela), quando havia estropo, era feito com um fio eléctrico
fininho, uma rolha a fazer de bóia e um alfinete grande dobrado,
em vez do anzol, para que o ferimento na boca do peixe fosse o
menor possível; a isca era uma bola de miolo de pão. Até terem
aparecido os sacos de plástico, pelo meio da década de
cinquenta, transportava-se o peixe dentro de baldes. Esta pesca
podia praticar-se também durante o dia, na zona, pouco
frequentada, entre as casotas dos patos e a Ponte de Pau, mas
tinha que ser em trabalho de equipa, porque se o guarda se
aproximasse do local, o pescador tinha que ser avisado, para ter
tempo de esconder o material nos arbustos ou fugir.
Pescadores à sertela
O fundo lodoso e a água turva e pouco profunda
constituíam um “habitat” perfeito para as enguias e havia quem
as pescasse, utilizando esta arte, que eu passo a descrever,
para quem não a conhece. Utiliza-se uma cana da Índia ou uma
vara fininha e, numa das pontas, fixa-se um novelo de minhocas,
cosidas umas às outras com um fio. É também necessário um
guarda-chuva. O pescador pega na vara e mete-a na água, de
maneira que as minhocas fiquem a roçar no fundo, fazendo-as
mover devagarinho; quando sente, na mão, as vibrações que lhe
indicam que uma enguia está morder numa minhoca, pode seguir uma
de duas técnicas: vai levantando a vara muito lentamente,
deixando a enguia morder na isca (a mamar, segundo ouvir
dizer a um profissional), e, quando chega à superfície, levanta
a vara o mais rapidamente possível e sacode o peixe para dentro
do guarda-chuva que previamente foi colocado na água, com o cabo
virado para cima; ou, mal sente o peixe a picar, levanta a vara
de repente. Na Ria, em vez do guarda-chuva, usa-se também um
cesto ou, então, os pescadores sentam-se na borda da bateira,
por forma a aproximá-la o máximo possível da água, e as enguias
são sacudidas para dentro do barco; em vez de minhocas,
utilizam-se também caranguejos de larga. Voltando ao Parque.
Esta pesca podia ser feita da margem do Lago, à noite, mas, por
incrível que pareça, eu vi, uma vez, durante o dia, uns fulanos,
num dos pequenos barcos que se alugavam para passeios, a pescar
à sertela debaixo da antiga Ponte de Pau.
Caça
À noite, o arvoredo do Parque constituía um
enorme dormitório para milhares de pássaros. E desde que o Homem
habita a Terra, onde há caça, há caçadores. As armas mais
utilizadas eram as fisgas. E não era preciso fazer grande
pontaria, porque os pássaros eram quase tantos como as folhas.
Mas depois de uma fisgada, quer se acertasse ou não, a árvore
despovoava-se e era necessário passar para outra. Todavia,
árvores era coisa que não faltava no Parque. Outra arma
utilizada era a espingarda de pressão de ar que era também
usada, se bem que por outro escalão etário e social, para matar
pardais, em plena Avenida Dr. Lourenço Peixinho, perto da
Estação da CP, na zona onde se podia estacionar os automóveis no
passeio central, debaixo das árvores. Como lá pernoitava também
muita passarada, bastava pôr o cano de fora da janela e disparar
para o ar. Regressando ao Parque. Quando, em meados dos anos 50,
o ringue foi iluminado e passou a ser utilizado à noite, para a
prática do hóquei, do basquetebol e do andebol, a actividade
cinegética deixou de ter expressão, até porque o guarda do
Parque estava presente, ao serviço do Clube dos Galitos, e a
caça, ao contrário da pesca, provocava um certo estardalhaço,
provocado não só pela rapaziada a andar de um lado para o outro,
mas também pelas revoadas dos pássaros a fugirem.
Larápios de canas
Dantes, para pescar não era preciso ter licença,
mas era necessário ter cana e da Índia. Acontecia que o único
canavial de bambus que eu conhecia, e conheço, em Aveiro, está
plantado no Parque. Assim, como nem toda a gente tinha dinheiro
para ir à “Casa Varela”, na Rua Direita, comprar o apetrecho em
causa, o mesmo tinha que ser construído pelo interessado. Mas,
para o fazer, era preciso ter-se a cana; daí que havia quem, à
noite, munido de um instrumento de corte, um pequeno serrote era
o melhor, porque as canas são muito rijas, fosse ao Parque e
cortasse uma cana que era limpa da ramaria no local. Em casa,
punha-a a secar num lugar escuro (para não rachar) e liso (para
que ficasse direita), e, uns meses depois, envernizava-a,
aplicava-lhe os passadores e uma ponteira e inventava uma peça
em arame ou madeira para enrolar a linha, porque carretos eram
coisa que ainda cá não existia. Cheguei a ver carretos das fitas
das antigas máquinas de escrever, com uma manivela de arame
acoplada, adaptados a essa função.
Passeios de Barco
Como já referi, havia barcos de aluguer
e havia, também, quem preferisse efectuar esses
passeios de borla, ao luar, mesmo
sabendo
que, às vezes, poderiam acabar mal. Por exemplo, como já contei
neste jornal, depois de um jantar de Finalistas do Liceu,
um grupo, de que eu fazia parte, resolveu ir andar de barco e
acabou na Esquadra a pedir a libertação de um dos membros que
não tinha fugido da polícia que o guarda do Parque tinha
chamado.
Aspecto do lago com barcos no
parque Infante D. Pedro, em Aveiro, num postal fotográfico da
década de 1950, in «Aveiro e Cultura».
Os Corajosos
Nos anos 70/80, havia jovens, que para provar a
sua valentia e que não tinham medo do escuro, saíam do Jardim,
sozinhos, e iam depositar um objecto no portão do Estádio Mário
Duarte. No meu tempo de rapaz, essa prova era muito mais
exigente e consistia em “Ir dar o beijo à Morte”. O candidato
tinha que ir ao Cemitério Central, ao bater da meia-noite, no
relógio da torre do edifício dos Paços do Concelho, beijar a
grande estátua de bronze da Morte que está no Mausoléu dos
Bispos de Aveiro. O acto era testemunhado pelos outros malucos
que assistiam à cerimónia do local chamado Selva, onde, hoje, é
o Fórum Aveiro.
E com esta lembrança macabra dou
por terminado este capítulo das minhas recordações.
19 de Março de 2021
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(1)
- Ringue: palavra de origem inglesa, designa uma zona de formato
quadrado ou rectangular onde se praticam desportos: ténis,
patinagem, hóquei, etc. Havia miúdos que trocavam o g por um q e
diziam «rinque». |