Há já muitos anos, quando me deito e faço-o
sempre tarde, depois da uma, passo em revista o dia anterior, o
que me leva a navegar um pouco no Rio Memória. Acontece, porém,
que, esporadicamente, esse breve percurso se alonga, pelo que
tanto posso vir a vogar tranquilamente em águas calmas de
planície, entre largas e verdejantes margens, recordando
acontecimentos agradáveis, como, quando me encontro em troços
estreitos e escarpados de montanha, ter que padejar
esforçadamente, no meio de correntes violentas, para descer
rápidos e evitar os escolhos que tive de enfrentar, por vezes,
virando e sofrendo algumas avarias no casco, mas sem nunca ter
naufragado.
Aconteceu-me, há poucas noites, durante uma
dessas viagens anormalmente longas, ter olhado para o painel de
bordo e verificar que já ia a meio caminho da nascente, pois
estava a reviver algo acontecido nos longínquos anos setenta. E
tendo considerado que esse meandro do meu Rio Memória era
interessante, decidi descrevê-lo e fazer dele tema de uma das
minhas crónicas neste jornal.
Quando o capitão Luís António Moreira Tavares era
Presidente da Comissão Municipal de Turismo, foi deliberado
realizar um filme publicitário, em que Aveiro aparecesse não só
como a capital de uma Ria, onde os seus visitantes poderiam
efectuar agradáveis passeios, através de canais sulcados por
barcos moliceiros, entre marinhas de sal, visitar os poucos, mas
valiosos, monumentos citadinos e apreciar as caldeiradas de
enguias e os ovos-moles, mas também como uma cidade, a partir da
qual os turistas, que se instalassem na sua hotelaria, soubessem
que tinham acesso a pertíssimas e excelentes praias atlânticas
e, entrando no capítulo que agora me interessa, a uma vizinha
zona de baixa montanha com riquíssimas potencialidades, por
exemplo, no que respeita aos aspectos paisagístico,
gastronómico, enológico e, até, às chamadas actividades de
animação.
Nesta conformidade, fui incumbido, não só de
prestar ajuda a quem viesse a rodar o filme, mas também de
sugerir um guião, do qual constava o assunto que gerou este
texto: a pesca à truta à pluma. A minha ideia era
alargar o “nicho de mercado pescadores”, porquanto, no que
respeita à água salgada, quem se instalasse em Aveiro tinha dois
óptimos e conhecidos pesqueiros, a dois passos: a Ria e a costa
atlântica. Assim, ficar-se-ia a saber que, na vizinha bacia do
baixo Vouga, se poderia também pescar à truta, o que, segundo me
diziam na altura, era um desporto com muitos praticantes, tendo
alguns deles disponibilidades financeiras acima da média.
Tentei saber se havia algum pescador de truta à
pluma, em Aveiro, foi-me indicada uma pessoa muito conhecida,
como sendo um grande especialista e fui falar com ele, para o
convidar a participar no filme. Agradeceu-me o convite, que não
aceitou, mas disse-me que poderia sugerir alguém muito melhor do
que ele, aquele que tinha sido o seu mestre, pescador de renome
internacional que até já tinha sido convidado, mais do que uma
vez, para acompanhar o Generalíssimo Franco, em pescarias no
país vizinho. Disse-me mais, que, por feliz acaso, esse senhor
se encontrava hospedado perto de Aveiro, exactamente, para
pescar trutas, num dos rios da região e que, se eu quisesse,
poderia tentar que ele me recebesse e informá-lo da minha
pretensão. Aceitei, os contactos foram estabelecidos e tiveram
êxito e, no dia aprazado, o capitão Luís António, eu e o Dr.
Hélder Mendes, à época, realizador da RTP, mas que, com a
máquina na mão, era um artista, cujos méritos foram reconhecidos
em vários concursos internacionais, comparecemos, à hora
aprazada, para formalizar o convite, no estabelecimento
hoteleiro, onde estava hospedado o reputado pescador.
Após umas brevíssimas apresentações, em que
ficámos a saber o que já era do nosso conhecimento – era médico
e dedicava todo o seu tempo livre, à sua paixão, a pesca –,
começou por nos mostrar, no seu quarto, o material: canas
curtas, com pequenos carretos, linhas que, curiosamente, não
eram sintéticas, mas em fio que tinha a particularidade de, no
extremo, ter uma boa extensão que ia adelgaçando até à ponta,
onde se amarrava directamente o anzol, pois não havia estropo
sintético, pretendendo-se, assim, tornar a linha o menos visível
possível ao peixe; o mais interessante eram as plumas, feitas
por ele, das quais vimos uma grande quantidade e variedade, na
medida em que era necessário que elas imitassem, os insectos
existentes nos vários cursos de água, e eles variavam de local
para local.
De seguida, já instalados na sala, começou a
contar-nos as suas proezas piscatórias. Mas ele não era só um
pescador de truta à pluma, pescava tudo que nadasse e tivesse
guelras e fazia-o em quantidades astronómicas. Desertificava
ribeiras, rios e lagos de achigãs, carpas, lúcios e sáveis;
depauperava pesqueiros marítimos e dizimava cardumes de
corvinas, douradas, robalos, safios e sargos; descobria peixes,
onde ninguém imaginava que os houvesse. E tudo isto, em todo o
País, incluindo a Madeira. E foi-nos narrando as suas proezas
piscatórias por forma detalhada.
A determinado momento, mudou de continente e
tornou-se caçador, em Moçambique, começando a matar tudo o que
fosse animal de quatro patas: antílopes, búfalos, leopardos,
etc., culminando com uma proeza cinegética que, no meu modesto
entender, deveria ter sido inscrita no “Livro Guinness dos
Recordes”: um “doble às leoas” que eu, de seguida, descreverei
de forma breve, mas fiel.
O nosso caçador ia num “jeep” sem tejadilho, ao
lado do condutor, rolando lentamente, quando se apercebeu que a
viatura era seguida, a alguma distância, do lado esquerdo, por
uma leoa. Empunhou a espingarda. A leoa começou a aproximar-se e
a aumentar a velocidade e, de súbito, atacou, dando um salto tão
grande e tão alto que o tiro certeiro a atingiu no vazio, e ela,
contorcendo-se no ar, para tentar morder, na barriga, o sítio
onde tinha entrado a bala, foi cair do outro lado da viatura.
Logo de seguida, surgiu outra leoa, possivelmente irmã da
primeira, que tentou vingar a morte da companheira, atacando da
mesma forma e tendo igual fim.
Chegado a este ponto, o pescador-caçador
interrompeu a oratória ou para tomar alento para prosseguir ou
para apreciar o efeito que a descrição dos seus feitos estava a
provocar no auditório.
Então, o capitão Luís António, inesperadamente, e
com uma cara muito séria disse:
– Pois eu, senhor doutor, a última vez que fui
à pesca, apanhei 4.000 toneladas....
O Dr. Hélder Mendes, que não o conhecia e julgava
que capitão era patente militar, pensou que se tratava de uma
piada e deu uma gargalhada; e eu, que já há uma data de tempos
estava a fazer um enorme esforço para não me rir, não me contive
mais e acompanhei-o.
O orador olhou para nós, de cenho franzido,
denotando um profundo ressentimento, parecendo estar a pensar: “Então
eu recebo estes fulanos, amavelmente, presto-lhes todos os
esclarecimentos, e eles agradecem-me com uma piada parva e rindo
como se estivessem a gozar comigo!”
Salvou a situação o capitão Luís António que
terminou por dizer o que queria comunicar, quando foi
interrompido:
– Não sei por que se
estão a rir, porque eu não disse nenhuma piada e muito menos
mentira. Sou oficial náutico, comandei navios bacalhoeiros,
durante muitos anos e, no último em que fui ao bacalhau,
capitaneava o arrastão “Lutador”. A época correu muito bem e
pescámos 4.000 toneladas de peixe que, depois de limpo e
processado, produziu 1.350 toneladas, capacidade máxima do
navio, descarregadas na Gafanha.
O equívoco foi esclarecido, eu e o Dr. Hélder
Mendes apresentámos umas justificações e desculpas mais ou menos
credíveis, porém, o ambiente não voltou a ser o mesmo, tendo as
nossas gargalhadas provocado uma consequência mais gravosa: por
mais que pedíssemos, não conseguimos convencer o senhor a
participar no filme, pescando uma truta à pluma. Todavia,
comprometeu-se a convencer o pescador, que eu já tinha
convidado, a prestar essa colaboração e conseguiu que ele o
viesse a fazer.
Este texto já vai longo, mas vou aproveitar a
oportunidade para dizer algo sobre o predito filme que demorou à
volta de dois a anos a rodar não só porque o Dr. Hélder Mendes
só trabalhava nele, quando para tal tinha disponibilidades de
tempo, dado que, como já referi, era funcionário da RTP, mas
também porque havia acontecimentos e actividades, cujas datas
era necessário respeitar, por exemplo, o Carnaval de Ovar, as
Comemorações da Batalha do Buçaco, o São Paio da Torreira, a
época da apanha do moliço, o período da safra do sal, a época da
pesca à truta, os meses de praia, etc.
Assim que recebemos o filme, o Presidente da
Câmara, Dr. Artur Moreira, resolveu que fosse projectado para a
Vereação, à noite, no Salão Cultural do Edifício Fernando
Távora, hoje, denominado Atlas. No final da sessão, ouviram-se
alguns comentários mais ou menos encomiásticos, excepto o
último, da autoria de um dos vereadores que disse tratar-se de
“um trabalho de amadores e de má qualidade”.
Fiquei pior que uma barata, até porque também lá
estava trabalho meu e eu até já tinha prestado igual colaboração
a cineastas de vários países, por exemplo, para a BBC. Quase que
não dormi. No outro dia, de manhã cedo, telefonei de minha casa
– ainda não havia telemóveis –, para o Dr. Hélder Mendes e
contei-lhe o que se tinha passado. Perguntou-me: – «O homem
sabe alguma coisa de cinema? Se não sabe, não ligue.»
Uns tempos depois, enviámos o filme para o
“Festival do Filme do Mediterrâneo e da Costa Atlântica”. Creio
que era assim que se chamava e Portugal era vendido, nalguns
mercados, como um destino mediterrânico. Havia cinco prémios em
disputa, porém, os membros do júri tinham instruções no sentido
de que nenhum filme poderia ganhar mais do que um. E então não é
que o nosso “trabalho de amadores e de má qualidade”, quando
foram abertos os envelopes, tinha sido considerado o melhor por
todos os jurados! Para serem cumpridas as regras, acabou por ter
só um, que eu já não me recordo qual foi.
Se cada um falasse do que sabe...
20 de Fevereiro de
2023
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