No meu tempo, havia dois tipos de rapazes: os
meninos e os garotos. Os meninos brincavam em casa deles ou dos
amigos, com jogos de tabuleiro, por exemplo, o “Assalto ao
Castelo”, o “Jogo da Glória” e o “Monopólio” ou brinquedos caros
comprados nas lojas da Avenida. Os garotos jogavam na rua à
cabra cega, à macaca, a saltar o eixo e à corda, ao agarrar, à
bandeira, ao esconder, ao esconder calote, à malha, que podia
ser de pedra ou de ferro, ao pataco, usando moedas antigas, ao
berlinde, havia de vidro, mas os melhores eram os metálicos de
que eram possuidores os que tinham familiares a trabalhar em
oficinas de automóveis, ao pião, na maior parte das vezes eram
monas (piões com grandes e fortes bicos cónicos que causavam
estragos nos outros, quando lhes acertavam), à bilharda, espécie
de “baseball”, ao futebol e, às vezes, à porrada. Esta listagem
não se pretende exaustiva e dela poderiam constar as corridas de
sacos, as lutas de tracção à corda e outras actividades lúdicas
menos frequentes. No que respeita à malha, ao pataco e ao
berlinde, não se jogava de borla e as moedas utilizadas eram ou
bilhetes de caminho-de-ferro (o mais valioso era o de ida e
volta a Lisboa) ou botões (o valor dependia do tamanho, do
número de buracos e dos enfeites, pelo que os mais caros eram os
de casaco comprido de senhora).
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Jogo tradicional do pião. Fotografia de autoria
desconhecida. |
Os garotos jogavam, também, jogos de guerra, em
função dos filmes que passassem nas “matinées” dominicais,
capítulo este que abordarei mais adiante, mas a maior parte do
seu armamento era fabricada pelos próprios. Para a espada,
bastava uma ripa ou uma cana, se possível da Índia, muitas vezes
surripiada do canavial do Parque; normalmente, amarrava-se, de
um dos lados e de través, um pequeno bocado de pau ou cana para
proteger a mão e, quando não havia essa guarda, enrolava-se o
lenço na mão, para a proteger de alguma espadeirada.
Pistolas havia-as de várias espécies: as
melhores, mas muito raras, dado o seu preço, eram metálicas e de
fulminantes; a seguir, as de barro preto, compradas na Feira de
Março; quem não tinha nenhuma destas, utilizava um pau que
formasse um ângulo mais ou menos recto; nestes dois últimos
casos davam-se tiros vocais; à falta de melhor, a mão fazia de
pistola, sendo o dedo indicador o cano e o tiro um estalo dado
com o dedo médio e o polegar. Os arcos e flechas
confeccionavam-se com varetas de guarda-chuva ou raios de
bicicleta e cordéis. Usavam-se, também, tubos de sopro
lança-projécteis, para atirar não só bagas, mas também
alfinetes. Havia fisgas para meninos e garotos. As primeiras
tinham um cabo de madeira envernizada, dois cordões elásticos e
um receptáculo em cabedal para o projéctil; eram utilizadas nos
jardins ou quintais dos possuidores. As segundas faziam-se com
um pequeno galho de árvore resistente em forma de forquilha,
dois elásticos, normalmente cortados de câmaras-de-ar de
bicicleta, e um bocado de um tecido rijo para a pedra; eram
feitas pelos próprios, familiares ou amigos. Os garotos não
usavam a fisga como arma nos seus jogos de guerra, pois tinham
noção, mais ou menos consciente, do seu grau de perigosidade.
Serviam-se dela para atirar aos pássaros, às vezes, no Parque,
às escondidas do senhor Adriano, que era o guarda, ou para tiro
ao alvo. Eu tive também uma com o cabo feito com parte de um
selim de bicicleta e, quando fiz o 2.º ano do Liceu, os meus
pais ofereceram-me uma espingarda pressão de ar, Diana modelo
25, com cano estriado, que só usava no quintal dos meus
padrinhos e nas férias de Setembro, passadas na aldeia dos meus
avós paternos.
No que respeita às comunicações, os garotos já dispunham de
telefones portáteis, constituídos por duas caixas de fósforos
unidas por uma linha ou um cordel. Nos mais sofisticados, as
caixas de fósforos eram substituídas por tampas metálicas de
latas da graxa dos sapatos. As mensagens enviavam-se através de
vibrações transmitidas com um dedo ao fio de ligação bem
esticado e, para nós, eram perfeitamente entendíveis. No sector
dos transportes, os meninos montavam cavalos de papelão com
quatro rodas, que tinham de ser puxados com uma corda, ou
pedalavam em triciclos ou automóveis. Os garotos cavalgavam um
pau com um fio amarrado a fazer de rédeas, empurravam carros de
mão encostados ao ombro (um pau de vassoura com roda de madeira
numa extremidade e uma curta travessa para apoiar as mãos, a que
se chamava o guiador) ou desciam ladeiras em carros de rodas (um
estrado com quatro pequenas rodas, podendo as duas da frente,
nos topo de gama, serem móveis para se poderem dar curvas.
Existiam grandes arcos de madeira para os meninos e metálicos de
vários diâmetros para os garotos, que, muitas vezes, faziam,
também, rodar, à falta de melhor, aros de bicicleta.
No que concerne aos “drones”, já se fabricavam
vários modelos. Para os mais pequenos e destinados a voos curtos
e a baixa altitude, bastava uma folha de papel; procedendo-se a
várias dobragens ou a simples vincos, fazia-se, respectivamente,
um avião de passageiros ou um asa delta. Já os maiores, com os
quais se pretendia atingir grandes e duradouras altitudes,
construía-se uma estrutura com canas, a qual era revestida de
papel de cores, acrescentando-se-lhe uma cauda feita com um
longo fio, ornado com laçarotes policromos do mesmo papel. Os
dois modelos eram conhecidos pelos nomes de Papagaio e Estrela.
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Jogo tradicional do berlinde. Fotografia de autoria
desconhecida. |
Eu fiz parte das duas categorias de rapazes. Até
ir para a Escola Primária, com sete anos feitos, fui menino e só
saía de casa acompanhado por uma pessoa de família. E tive
brinquedos dados pelo Menino Jesus, nessa altura ainda não havia
Pai Natal. Os mais caros – um grande cavalo de papelão, um
automóvel de pedais e um triciclo, em que os meus filhos
chegaram a pedalar – apareceram na chaminé dos meus padrinhos
(era um Menino Jesus com vencimento de capitão, posto do marido
da minha madrinha e a quem sempre chamei padrinho, enquanto que,
à época, o meu pai ainda só era sargento). Depois comecei por
vir brincar com os garotos da zona para defronte de casa, de
seguida para o vizinho Largo das 5 Bicas, e mais tarde consegui
autorização para ir até ao Parque. Por fim, o meu limite passou
de territorial a temporal e era assinalado pelo toque de
recolher do Regimento de Infantaria 10.
Já na minha fase de garoto, brinquei em casa de dois
condiscípulos e amigos. Um deles era meu primo afastado, o André
Ala dos Reis, que poderia ter vindo a atingir um lugar de grande
relevo no contexto da cultura aveirense se não tivesse morrido
prematuramente. Fazia-nos projecções de cinema com uma maquineta
rudimentar e com fotogramas que arranjava no Teatro Aveirense.
Um pequeno parêntese para explicar, aos mais novos, como era
possível arranjar esses fotogramas. Durante as sessões
cinematográficas, era frequente a película partir-se e o
projeccionista tinha que cortar alguns fotogramas, que iam para
o lixo, a fim de proceder à colagem. Assistíamos, também, a um
cinema mais artesanal: o projector era uma caixa de sapatos, com
um buraco rectangular num dos topos a fazer de ecrã; a bobine,
um casquilho de um novelo de linhas; o filme, a banda desenhada
de um jornal diário, cujos episódios eram colados,
sequencialmente, uns aos outros; a locução era feita pelo
anfitrião. Lembro-me do “Mecano”, precursor do “Lego”, com que
brincávamos e que me encantava. Confesso que, mau grado todos os
esforços e promessas que fiz, nunca consegui que nenhum dos meus
dois Meninos Jesus me oferecesse um. Às vezes, jogávamos à
espada, com armas curtas de madeira e escudos de papelão feitos
pelo André, no jardim que dava para a Rua Gustavo Ferreira Pinto
Basto. Mas, na maior parte dos casos, as nossas brincadeiras
eram mais próprias de meninos.
O outro condiscípulo veio a ser célebre, e não só a nível
nacional, porquanto foi guarda-redes de várias selecções
nacionais de hóquei em patins e campeão da Europa nos anos 50.
Uma dessas equipas tinha o 5 inicial constituído por quatro
jogadores do SNECI de Lourenço Marques e um defesa do Benfica
(Moreira, Casimiro, Adrião, Velasco e Bouçós). O Alberto Moreira
era filho do capitão Ribeiro da Cunha, que, quando regressou de
Macau, onde foi comandante da PSP durante a Segunda Grande
Guerra, e, até partir para nova comissão de serviço em
Moçambique, residiu durante uns três anos numa casa, que ainda
existe, ao cimo da ladeira do hospital (esteve lá a CERCI
durante muito tempo). À data, tinha mais três filhos, dos quais
dois já morreram e um mora em Eixo.
O meu amigo, por ser o mais novo, era conhecido
por “Bebé Cunha”. Reside na Costa de Caparica. Na sua casa,
jogávamos dois jogos de mesa, o “Mahjong” e o Monopólio”, mas a
maior parte das brincadeiras eram do género, como agora se diz,
radical. Cito alguns exemplos. Descer as escadas dentro de uma
bacia de esmalte, dando a curva do patamar com a ajuda de uma
pesada na parede. Jogar à espada com armas autênticas sacadas às
escondidas, pelo “Bebé Cunha”, da sala de armas do pai, no
terreno vizinho, onde é hoje a zona ajardinada da Baixa de Santo
António. E algumas cortavam mesmo a sério, pelo menos as canas.
Felizmente, nunca nenhum dos participantes, e éramos vários, se
aleijou e, quando o dono soube, acabaram-se os combates. Chegou
a ser programada uma guerra à pedrada: construíram-se as
trincheiras de uma das quais fazia parte a grande caixa de
madeira de um projector de cinema; mas, já não sei por que
razão, talvez os adultos tivessem sabido, dado que o campo de
batalha era do lado de trás da casa, as hostilidades não foram
abertas.
Vou terminar este capítulo dando a conhecer que o
“Bebé Cunha” me proporcionou os meios e a ocasião para eu ter
batido, quase de certeza, um mínimo mundial, acontecimento que a
seguir descrevo. Ele tinha uns patins daqueles de adaptar aos
sapatos e, um dia, fomos com o Martins – que viria a ser o
melhor hoquista aveirense de todos os tempos – para o vizinho e
saudoso ringue do Parque, para o “Bebé Cunha” nos ensinar a
patinar. O Martins calçou os patins, deu dois ou três passos,
caiu, levantou-se e assim continuou durante um bocado sem nunca
se aleijar. A seguir eu adaptei os patins e, mal me comecei a
pôr em pé, escorreguei para a frente, bati com a nuca no chão,
vi tudo a andar à roda, sentei-me atarantado no cimento, tirei
os patins e jurei que nunca mais me poria em cima de tal
geringonça, jura essa que cumpri até hoje, mau grado me ter
equipado, muitas vezes, no balneário onde estava o material do
hóquei dos Galitos, com os patins a olharem para mim, a
desafiarem-me para uma experiência.
Seguidamente, ocupar-me-ei das diversões, começando pelo
futebol. Os meninos, que tinham familiares que iam à bola,
acompanhavam-nos e assistiam aos jogos, junto deles, na maior
parte dos casos, sentados na bancada. Os garotos, que tivessem
pessoas na família ou adultos amigos que fossem ver o Beira-Mar,
iam com eles. Os outros, entre os quais eu me incluía, iam para
junto das portas e, quando viam um homem conhecido ou
desconhecido sem vir acompanhado por uma criança, dirigiam-se a
ele e pediam-lhe: “Meu senhor, leve-me consigo, por favor”. Se o
pedido fosse aceite, e era, normalmente, davam-lhe a mão ou
agarravam-lhe o braço e os porteiros deixavam-nos entrar, apesar
de nos conhecerem de ginjeira. Íamos para o peão, para o lado do
ataque do Beira-Beira, ao intervalo mudávamos, fazer claque e
aprender, com os mais velhos, a ser “bons desportistas” ou,
melhor dizendo, fanáticos adeptos do clube da casa. Assim, os
nossos nunca estavam “offside”, os outros estavam sempre fora de
jogo; os jogadores do Beiramarzinho eram uns mouros de pancada e
os adversários uns sarrafeiros; a bola vinha sempre bater na mão
dos aveirenses, enquanto os visitantes metiam, propositadamente,
a mão à bola.
Aprendíamos, também, a chamar nomes aos inimigos
e, especialmente, aos árbitros que eram considerados como
pertencentes não só a uma quadrilha, já que eram todos uns
ladrões, mas também uma irmandade, porque eram filhos da mesma
mãe. E é dotados só com estes conhecimentos e princípios básicos
que muitos dos desportistas de bancada e TV do futebol têm vindo
não só a analisar os jogos, mas também a proclamar que a verdade
desportiva deve ser, intransigentemente, defendida. Desde que o
seu clube ganhe, acrescento eu.
No final do jogo, por vezes, ainda vínhamos pôr
em prática as habilidades dos nossos ídolos, Zé de Pinho,
Maximiano, Petrak e muitos outros. Nas 5 Bicas dispúnhamos de
três campos. Se fôssemos poucos, jogávamos mesmo no Largo, para
a mesma baliza: o portão da garagem do senhor Lopes, que já
desapareceu. Se desse para duas equipas, íamos para a rua do
Quartel; os automóveis eram raríssimos, carros de bois, aos
domingos, não havia, e, se aparecesse alguma bicicleta, até dava
jeito para proteger a bola durante um contra-ataque rápido, que
agora se chama transição. Os encontros internacionais, contra as
Pombinhas ou a Sé, disputavam-se na Travessa das Olarias, actual
Travessa de São Martinho, onde o trânsito era praticamente
inexistente. Eu fui sempre um aselha com os pés – joguei
basquete e andebol –, mas tinha uma vantagem: os meus pés
calçados metiam respeito aos muitos que jogavam descalços, ou
porque não tinham sapatos ou, então, não os queriam estragar e
sofrer as consequências quando chegassem a casa.
A nossa outra diversão de fim-de-semana era o cinema, onde os
meninos iam acompanhados por familiares, ao lado dos quais se
sentavam nos lugares correspondentes aos respectivos bilhetes,
enquanto que os garotos entravam aplicando a supracitada técnica
do “Meu senhor, leve-me consigo, por favor”, indo ocupar as
primeiras filas da plateia.
Eu, ao contrário do que me acontecia no futebol,
não precisava de recorrer a este pedido, na medida em que o
marido da minha madrinha, no que respeitava ao Teatro Aveirense,
recebia, às vezes, uns bilhetes, porque tinha uma ligação ao
Socorro Social. Foi lá que vi a “Branca de Neve e os Sete Anões”
e o meu primeiro filme a cores – “O Terror dos Sete Mares”.
Mais tarde, no Cine-Teatro Avenida, inaugurado no
fim de Janeiro de 1949, com o filme “Não há rapazes maus”, a que
assisti com a minha mãe e a minha madrinha, o meu padrinho
conhecia um bilheteiro (quem nos diria que eu me viria a casar
com uma sobrinha dele) que me proporcionava a entrada. A
garotada fazia claque pelos seus heróis, avisando-os dos perigos
(“Tarzan, olha o crocodilo debaixo de água atrás de ti”, “Errol
Flynn, tem cuidado que o gajo está atrás da porta”). E aplaudia
com gritos e salvas de palmas quando o Rei dos Macacos (Johnny
Weissmuller) dominava a fera ou um “cowboy” (John Wayne, Gary
Cooper, Randolph Scott) sacava dos “colts”, por vezes, pareciam
metralhadoras, e mandava ter com o Manitu uma data daqueles
peles vermelhas selvagens que teimavam em querer continuar a
caçar bisontes nas terras onde os seus antepassados viviam há
séculos, impedindo que os colonos caras pálidas, nascidos na
Inglaterra, na Irlanda, na Escócia, na França e noutros países,
as ocupassem para lá implantar a civilização europeia que todos
haveria de fazer prósperos e felizes.
Quando, nos anos 60, 70, começaram a aparecer os
filmes pró-índio, já eu me sentava nas filas para adultos da
plateia, ou seja, falando sem artifícios de linguagem, já
possuía conhecimentos que me permitiam ver a grande Epopeia
Americana e outras similares de uma forma crítica, logo,
diferente, em que, muitas vezes, os valores se invertiam em
relação aos do passado. Voltando aos anos 40, após este salto
temporal e consequentes considerações que não se enquadram com o
tema deste escrito, mas que não considero descabidas ou
inoportunas. Se estivéssemos de férias ou se tivéssemos tempo,
na semana após os filmes, os nossos jogos de acção baseavam-se
no tipo de história que tínhamos visto: polícias e ladrões, capa
e espada ou “cowboys”. Os locais ou eram as nossas ruas ou, para
a malta das 5 Bicas, quando convivia com miudagem doutros
bairros, a Selva, onde é hoje o Fórum, e a Quinta do Cadoro que
tinha ocupado a zona do actual Bairro da Misericórdia, no
Cabouco, e era assim chamada, por ter pertencido ao Barão de
Cadoro, bisavô do poeta Manuel Alegre.
Vou terminar mais este capítulo das minhas memórias,
referindo-me a um assunto que, ultimamente, tem vindo a ser
tratado pelos meios de comunicação. Quando estava a congeminar
este escrito, vinham-me à memória as imagens dos meus antigos
companheiros. E notei que havia muito poucas crianças gordas, a
quem, sem maldade, apelidávamos de buchas. E isto porque – não é
só a minha opinião, é consabido – para além do contexto
económico e social não ser nada propício, ao contrário do que
acontece hoje, à obesidade nesta classe etária, muito
especialmente no que respeitava aos garotos, havia uma outra
razão muito importante para que não houvesse problemas com
excesso de peso: nós tínhamos uma vida muitíssimo mais activa.
1
de Dezembro de 2019
Diamantino Dias |