CAGARÉUS E CAGARETES

No passado dia 6 de Setembro, a SIC terminou o noticiário das 20H00 com uns largos e interessantes minutos sobre o típico Bairro da Beira-Mar, que foi pena terem coincidido com a transmissão do Suíça-Portugal, de má memória, coincidência que impediu muita gente de assistir à excelente publicidade que foi feita da nossa terra.

Lamentavelmente, esta peça terminou com um marnoto – que eu não conheço, pois não é do tempo em que eu contactava os trabalhadores das salinas, para colher elementos com os quais viria a elaborar o meu “Glossário das Marinhas de Sal da Ria de Aveiro” –, explicando de forma convicta, mas errada, porque é que se chama “Cagaréus” aos habitantes daquela zona da cidade.

Segundo ele, os “cagaréus” seriam assim apodados, porquanto utilizavam o cagarete dos barcos moliceiros como sanita. Ora esta afirmação, que é aceite como correcta por muito boa gente, incluindo alguns “cagaréus”, carece de um mínimo de fundamento, pelas razões que a seguir discrimino.

1ª – O cagarete é um pequeno compartimento fechado, situado por detrás da entremesa (tampa que serve de assento ao arrais, quando pilota o barco), na parte mais estreita e elevada da ré, e nele se guardava o sal, o peixe ou a carne salgada, para consumo dos tripulantes, o qual hoje não existe nas caricaturas de moliceiros que navegam nos canais da cidade, porque é por esse espaço que passa parte do motor.

2ª – A ser verdadeira aquela teoria, porque motivo quereriam os moliceiros guardar as suas fezes, numa caixa fechada, por vezes vezes durante uma semana, pois era frequente saírem de casa à segunda-feira e só voltarem ao domingo?

3ª – Se a finalidade fosse utilizá-las como adubo, seria muito mais fácil juntá-las ao moliço, esse fertilizante de eleição que transformou os paupérrimos solos arenosos da beira-ria de antanho, em ubérrimos terrenos agrícolas.

4ª – E, já agora, uma razão de ordem aromática: o pobre do arrais, que até era, habitualmente, o dono do barco, quando em viagem, teria, durante longas horas, que suportar os eflúvios mefíticos, provindos de uma fonte, onde encostava as costas.

5ª – Perguntará o leitor menos informado sobre a vida aquícola: “Mas, então, se os moliceiros andavam uma semana na Ria e não dispunham de instalações sanitárias a bordo, como é que eles resolviam as suas necessidades fisiológicas?” Responderei, para terminar estas considerações de ordem latrino-linguística: como fizeram, durante séculos e até há muito pouco tempo, todas as pessoas, a bordo de todas as embarcações, de todos os rios, lagos, lagunas e mares de todos os continentes: sentados na borda e com o posterior virado para o exterior.

No caso dos moliceiros, o arrais e o moço tinham, porém, uma vantagem sobre os tripulantes dos restantes barcos, já que dispunham de papel higiénico: o moliço, como comprovou um oportuno documento fotográfico da autoria de Pedro Vilhena.

E, fazendo um “mini-zoom” crono-geográfico, era assim nas caravelas, nos bacalhoeiros, nas traineiras, nos moliceiros, nos mercantéis e nas bateiras.

Disse-me um amigo que andou embarcado em bacalhoeiros à vela, que, quando o mar estava agitado, a sua retrete “ad hoc” preferida era no local em que as enxárcias se fixam ao casco, porquanto não só podia agarrar-se aos cabos, para não ir à poça, mas também, baixando-se um pouco, deixava que a surriada servisse de bidé.

Mas, normalmente, qualquer ponto da borda era – e é – utilizado para o efeito, o que contraria a hipótese que filia a alcunha de “cagaréu”, na expressão “o que caga à ré”, que eu nunca ouvi a não ser aos defensores dessa teoria – e contactei, durante muito tempo, com muita gente que trabalhava em todo tipo de barcos típicos da nossa Ria –, não querendo, todavia, com estas palavras, contestar, peremptoriamente, tal possibilidade genética.

No que respeita ao moliceiro, com a embarcação vazia e sem falcas (pranchas que se colocavam no bordo para aumentar a sua altura (pontal), mas nunca, quando se apanhava moliço de arrasto), qualquer ponto do bordo servia para o efeito – e eu testemunhei-o, mais do que uma vez –; com a embarcação carregada, teria de ser nas zonas livres de carga: na zona das painas (estrados junto do castelo da proa) ou na do paneiro (estrado situado à ré), sendo este local menos cómodo do que o outro, porquanto o bordo tem, aí, uma inclinação bastante pronunciada.

6ª – Para terminar este capítulo, direi que o moliceiro não era uma embarcação típica da cidade de Aveiro, logo muito pouco utilizado pelos “cagaréus” que transportavam mercadorias nos mercantéis – quando era sal, o barco passava a chamar-se saleiro – e iam para as marinhas e para a pesca, nas bateiras e à caça de caçadeira.

Os estaleiros dos moliceiros situavam-se nos concelhos da Murtosa e de Estarreja. As praias de moliço eram, também, nos preditos concelhos, em Ovar e em Ílhavo, fora do centro da Ria, logo, onde a água era calma, pouco profunda, um tanto ou quanto salobra, portanto, propícia ao crescimento do moliço (nome dado à vegetação submersa da Ria, sem distinção das várias espécies).

Assim, os moliceiros só vinham a Aveiro para vender o produto do seu trabalho, que descarregavam nas malhadas, onde era vendido aos agricultores locais, ou por ocasiões festivas. A constatação deste facto desagradará a muitos aveirenses, mas não mais do que a mim, (e seja perdoada a seguinte imodéstia a um “Ceboleiro” já oitentão, mas se eu não me gabar, quem é que o fará...) que já fiz palestras, escrevi um livro, dei entrevistas na rádio e na TV e fui autor de um filme para a RTP sobre estes barcos, que foram um dos grandes amores da minha vida.

Quer queiramos quer não, o “ex-libris” lagunar da cidade de Aveiro eram as marinhas de sal. Mas os moliceiros, carregados por cima do bordo, de vela desfraldada, eram tão bonitos!

Gostaria de aproveitar a ocasião para expor a minha teoria sobre a alcunha de que se orgulha a gente do Bairro da Beira-Mar: os “cagaréus”. Mas como o texto já vai longo, ficará para uma próxima vez, se a Redacção do “Diário de Aveiro” me conceder um pouco mais de espaço.

A Redacção do “Diário de Aveiro” teve a amabilidade de me conceder mais umas linhas, que eu aproveito, então, para expor a minha teoria, que ontem anunciei, sobre a alcunha da gente do Bairro da Beira-Mar: os “cagaréus”.

Um dia, quando andava no 1º Ano do Liceu, contei ao meu avô materno, António dos Reis, que um colega meu, residente no Rossio, tinha ficado amuado comigo, por causa de uma brincadeira com que eu não o tinha querido ofender. O meu avô disse-me: “Põe-te a pau Tino, com essa rapaziada, porque já o meu avô dizia que as pessoas da Beira Mar são uns vidrinhos, uns cacaréus, não se pode brincar com eles, porque levam tudo a mal.”

Sempre procurei seguir os conselhos das pessoas idosas, quando os mesmos me pareciam sensatos – por exemplo, o seguinte, do meu professor de Geometria Descritiva: “Evitem três figuras geométricas: triângulos amorosos, círculos viciosos e bestas quadradas” –, mas não tomei este em atenção, pela razão que adiante explicitarei, pelo que, felizmente, não só tive e continuo a ter bons amigos “cagaréus”, mas também até me casei com uma Moreira, daquela zona.

Anos mais tarde, quando estudante de Filologia Românica, aprendi a existência de um fenómeno fonético, chamado Sonorização, que explica que o som p se transforma, por vezes, em b, o t em  d e o  c em g.

Lembrei-me, então, dos “cacaréus” do meu avô e exclamei, eufemisticamente, o meu “EUREKA”, porquanto verifiquei que tinha encontrado a tão procurada origem do nome “cagaréu”: as pessoas da Beira Mar utilizavam a alcunha “ceboleiro” de forma depreciativa, quando falavam dos habitantes da minha freguesia, por quem não morriam de amores, porque, há muitos anos, a Feira das Cebolas, se tinha realizado na Glória – no meu tempo esse mercado já tinha lugar “in territorio cagarense”, na rua João Mendonça – e o pessoal da minha tribo retribuía essa prova de afecto, apodando os beiramarenses de “cacaréus”. A linguagem oral, ao longo dos tempos, tinha-se encarregado de sonorizar o c intervocálico e a antiga forma “cacaréus” tinha evoluído para “cagaréus”.

Perguntará o leitor mais desconfiado: “Então se fizeste essa descoberta há já umas dezenas de anos, porque é que só agora a divulgas?” A resposta é simples: é que acabei de a inventar, enquanto estava a congeminar este texto.

Começa pelo facto do meu avô materno, “cagaréu” de gema, ter falecido duas dúzias anos antes de eu ter nascido. E, tal como a personagem queirosiana de “A Relíquia”, Teodorico Raposo, que não teve nem a coragem, nem o despudor, para afirmar à tia Patrocínio que a camisa de dormir da luveira Mary, de Alexandria, tinha pertencido a Santa Maria Madalena, golpe de asa esse que lhe permitiria vir a herdar a fortuna, que tinha sido do comendador G. Godinho, também eu não tenho a lata – porque para tal não fui formatado – de manter a historieta inicial, que dificilmente seria desmentida.


Mudando de registo e falando a sério.

1. A palavra “cacaréu” existe – (de caco) m. Caco; traste velho.

In Dicionário Complementar da Língua Portuguesa de Augusto Moreno, da Editora Educação Nacional, edição de 1948, pág. 242.

2. O vocábulo “cacaréus”, também – s. m. pl. (de caco)

In Dicionário Prático Ilustrado Lello, edição de 1977, pág. 186.

3. A rivalidade entre “cagaréus” e “ceboleiros” – hoje praticamente inexistente, até porque há muita gente a residir em Aveiro, provinda de outras terras, que nem conhece essas alcunhas – era muito acentuada. Repare-se nas relações entre os Bombeiros Velhos e os Novos (as corridas a ver quem chegava primeiro aos incêndios, para não falar das mangueiradas sem querer, mas que acertavam em cheio), na acusação da Confraria do Senhor dos Passos da Glória de que a imagem lhe tinha sido roubada pelos confrades da Vera Cruz e, para terminar, nos jogos de Andebol, nos anos 50, Galitos x Beira-Mar, de que eu conheci o ambiente quentinho antes, durante e após, pois jogava pelos primeiros, cuja sede se situava na rua da antiga Freguesia da Glória que, ainda, ostenta o seu nome.

3. A sonorização do som c em g continuará a poder produzir-se, enquanto houver falantes da Língua Portuguesa, independentemente dos possíveis acordos ortográficos de que ela venha a ser vítima.

4. Conclusão: cacaréu evoluiu para cagaréu, “quod erat demonstrandum”.

“E esta, hem!”, como diria Fernando Pessa. Apesar de se auto-intitular “cagaréu”, F. Pessa não o era, porquanto nasceu em Sá, numa casa junto do antigo Quartel de Cavalaria 5, onde o pai era oficial médico.

12 e 13 de Setembro de 2016

Diamantino Dias

 

15-09-2016