EM 11 de Março de 1812, a vereação de
Ílhavo, sob a
presidência do juiz João da Rocha Deus, reuniu em
audiência ordinária, nos Paços do Concelho, para proceder à arrematação
anual das carnes dos açougues
daquela vila e do lugar de Sá, que lhe estava adstrito. Haviam
corrido antecedentemente os pregões do estilo. Lançou-os,
uma vez mais, o oficial de porteiro, naquele lugar, a plenos
pulmões, dando cumprimento ao expresso mandado da edilidade. E, satisfeito este último anúncio público, o serventuário
municipal, depois de empunhar o simbólico ramo
verde, proclamou em voz sonorosa, pausada e clara, as fórmulas tradicionais da arrematação, que, «mutatis mutandis», de acordo
com as circunstâncias, persistiram até começos do século actual:
– Quem quiser lançar na arrematação das carnes dos
açougues desta vila e lugar de Sá, pelo presente ano, que terá
seu princípio em sábado de Aleluia do mesmo, e findará em
outro tal dia do futuro de mil oitocentos e treze, venha dar-me
o seu lanço, que se há-de arrematar a quem pelo menos o fizer, e mais
útil aos povos.
Disse e repetiu, sucessivas vezes repisado, o pregão conhecido e
ressabido. Um único interessado surgiu a concorrer ao fornecimento, o
marchante Manuel José de Sousa, natural da freguesia de Mouriz, concelho
de Paredes, distrito do Porto, mas residente em Aveiro, o qual se
dispunha
[Vol. XIX - N.º 76 - 1953]
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a vender em Ílhavo e Sá por «menos cinco reis, do que as mesmas carnes
se Rematarem na cidade», onde ainda não se efectuara a respectiva praça.
E o porteiro, de novo, verificado que não havia outro licitante, por
ordem dos membros da Câmara, alteou a voz, e no tom solene e enfático
que o acto requeria, bem timbradas, medidos os intervalos com rigores de
metrónomo, proferiu as palavras sacramentais:
– Menos cinco reis do que em Aveiro custe me dão por
cada arrátel de
carne vendido nos açouges desta vila e do lugar de Sá. Afronta faço,
porque mais não acho! Se mais
achara, mais tomara! Dou-lhe uma!... Dou-lhe duas!... Dou-lhe três!...
E uma mais pequenina! Afrontei!... E arrematei!
E então, passando às mãos do arrematante o ramo verde, deu por concluído
o protocolo daquele acto público. O mais era a parte burocrática do
compromisso às condições estipuladas e a assinatura do auto, que nesta
ocasião foi de cruz.
Este auto proporciona motivo para alguns comentários e divagações, pois
nem só a fórmula dos pregões constitui curiosidade digna de registo.
Em primeiro lugar deve anotar-se o facto de a arrematação abranger a vila de
Ílhavo e o lugar de Sá, que hoje
çonstitui apenas um bairro da cidade, nem sequer dos mais importantes.
Mas o velho lugar, mais antigo do que a monarquia nacional, como se
conclui do conhecido testamento da condessa Mumadona, do ano de 959,
pertencia, com efeito,
desde recuados tempos, ao concelho de Ílhavo. Segundo
ROCHA MADAHIL, «a ligação de Sá e Ílhavo remonta, pelo
menos, a 1354, ano em que D. Afonso IV doou os dois lugares a sua neta,
a Infanta D. Maria, que casou com o Infante D. Fernando, de Aragão»(1).
E só veio a ser desanexado da jurisdição administrativa ilhavense por
alvará do governador civil do distrito de Aveiro, de 13 de Outubro de
1835. Em consequência desse diploma ficou pertencendo à freguesia da
Vera-Cruz, de Aveiro (freguesia da Vera-Cruz de Além do Vouga, segundo
os exactos termos nele empregados), «todo o tereno que se estende ao
longo da Estrada e propriedades Adjacentes athe á Irmida do Senhor das
Barocas, incluzivel comefando a contar-se o Concelho de Esgueira do leste
da dita Irmida»; e, ao mesmo tempo, «o Concelho da Villa de Ílhavo
ficava sem ingerência alguma que antes tinha na parte daquelle terreno». Assim se explica que a arrematação
/ 242 / pertencesse à competência da edilidade ilhavense e se efectuasse
simultaneamente com a das carnes do açougue da vila.
Apuremos agora o preço pelo qual, nesse ano, se venderia a carne em
Ílhavo. O arrematante comprometera-se a vendê-la por cinco reis menos,
em arrátel, do que fosse fixado em Aveiro. Ora, nesta cidade a praça só
veio a realizar-se três dias depois, sendo o mais diminuto o de noventa
reis, de «Manuel de Souza desta cidade, que por tanto se obriga a dar o
arrátel de Vaca todo o anno». Custaria, assim, em Ílhavo e Sá, oitenta e
cinco reis.
Sucedeu, todavia, que, em 4 de Julho seguinte, efectuou a Câmara de Aveiro uma reunião conjunta com as pessoas da nobreza e do povo para
apreciar um requerimento do referido Manuel de Sousa, solicitando
autorização para subir o preço da carne. O custo do gado, desde a
arrematação até àquela data, sofrera um considerável agravamento e esse
facto vinha-lhe causando um grave prejuízo que o levaria à ruína, e ao
seu fiador Gabriel José Fernandes, no caso de o Senado Municipal lhe não
deferir o solicitado aumento. Todos «convierão uniformemente que
atendendo a justifsa do pedido, pela certeza publica e constante do que
allegava se lhe aumentafse dez reis em cada arratel de carne que vendese sobre os
noventa reis por que a tinha arrematado; mas que isto se devia
verificar por todo o tempo que continuafse a carestia
do gado como actualmente sucede, e se viefse a embaratecer tornaria ao
preço de noventa reis»... Ílhavo, de acordo com o que fora
contratado, deve, decerto, ter acompanhado a oscilação.
Reparemos, a talho de foice, que no auto adiante transcrito se estipula
que o arrematante possa matar «toda a especie de Gado Vaccum, e sendo
boa carne, e gorda, à excepção de vitellas pela prohibição que há da
lntendencia Geral da Policia se não devem matar». Há neste ponto uma divergência entre as condições impostas em
Ílhavo e em Aveiro.
As da cidade, com maior respeito pelas determinações superiores, como se
verá, incluem as vacas na proibição. E, deste
modo, na área citadina a carne de vaca assim taxativamente
designada num passo do auto atrás trasladado – era obrigatoriamente...
de boi.
Esta deliberação tinha como causa a míngua de gado com que na região se
lutava, desde 1809. Já noutro ensejo tive ocasião de referir(2) que
após o desembarque em Aveiro, em 13 de Maio daquele ano, das tropas
britânicas vindas para dar combate aos invasores franceses, a região
ficou
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quase inteiramente despovoada de gado, tanto para a alimentação das populações, como para os trabalhos agrícolas. Os campos do
Vouga estiveram nessa época «com mais de metade da cultura por fazer por
falta de Gados não se chegando a ver huma só junta a trabalhar».
Este facto teve duas lógicas consequências. A primeira deparou-se-nos
já com a necessidade de evitar que se abatessem as vacas e vitelas e, assim, se abreviar o repovoamento do gado.
A segunda foi o aumento do preço da carne, que corria por setenta e
setenta e cinco reis até 1810 e chegou à exorbitância – para o tempo,
evidentemente – de cento e
setenta reis o arrátel, em 1813. Só veio a normalizar-se em 1816,
registando-se mesmo um embaratecimento, certamente devido à abundância,
já no ano de 1818, em que chegou aos cinquenta e cinco reis.
Voltemos, porém, ao auto aveirense de 1812. Nele se comina ao
arrematante a multa de «cincoenta mil reis pagos de cadeia por trinta
dias no cazo de dar carne que venha dos Assougues da Excelentifsima
Mitra, Sá ou do Senhor das Barrocas, pela má fama de se não matarem
nelles rezes boas, por não haver quem as vegie»...
Já vimos que a carne em Sá era mais barata do que na cidade e qual a
razão. Ora esse facto, além de outros inconvenientes que adiante se
apontado, dava motivo a um autêntico contrabando, como, aliás sucedia
também com a venda do vinho. Conta o Conselheiro José Ferreira da Cunha
e Sousa(3), testemunha presencial da vida aveirense dos primeiros
quartéis do século XIX, que «havia ali muitas
tabernas que vendiam vinho em quantidade, por ser muito
mais barato do que o vendido na cidade, e isto pela razão de diferença
do imposto de consumo, que em Ílhavo era muito menor. Em consequência,
famílias da cidade dali se sortiam, e Sá era muito frequentado à noite e
nos dias feriados por todos os devotos de Baco, sendo por isso
frequentes ali as desordens e os malefícios; os empresários destas
tabernas eram negociantes da cidade». Sem dificuldade se imaginarão os
desacatos praticados pelos amigos das pandegazinhas baratas e pelos
bebedores mais inveterados, encontrando, ali a dois passos, logo a
partir do convento da Madre de Deus – onde hoje se eleva o quartel do
Regimento de Cavalaria 5 – um lugar, relativamente recatado, com imunidades
para os zelos policiais da «ronda» e em que o vinhito era mais
acessível.
O açougue de Sá veio a ser encerrado em 1813, em consequência de uma deliberação do Corregedor da
Comarca de
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Aveiro, solicitada pela edilidade. E, ao que parece, uma reclamação
apresentada àquele magistrado pelo respectivo arrematante, Joaquim
Francisco de Carvalho não logrou deferimento. A ela se opôs vivamente a
municipalidade aveirense. «Aquelle Assougue estabelecido no lugar de Sá
– alegava a Câmara – era em todas as considerações prejudicial ao bem
público e boa admenistração dos Assougues desta cidade, porque estando o
logar de Sá na distância de huma grande legua da Villa de Ilhavo, e
compondo-se de muitos (sic) poucos moradores quazi todos jornaleiros, e
gente muito pobre que não gastavão carne do dito Assouge, e sendo
aquelle lugar de Sá immediato desta cidade, acontecia que do
estabelecimento daquelle Assougue rezultavão os maiores e mais
consequentes prejuizos ao Bem commum».(4). Apontava depois os
inconvenientes irrefutáveis do restabelecimento da matança em Sá. Estava
«aquelle Assougue dezamparado das Autoridades competentes que o
superintendessem, e por ifso os Marchantes delle cortavão não só Vacas
contra as ordens do Governo – mas dentro da letra
do contrato, como vimos – mas quaze sempre rezes, que por achaques, ou
cansassos os donos delas passavam para o dito Assougue por preços
insignificantes, tendo athe acontecido por muitas vezes o cortarem, e
venderem no mesmo Rezes que havião morrido de doença, com grave damno da
saude
publica».
Mas, além deste gravíssimo prejuízo, pois a gente de mais escassos meios arriscava a saúde, nem sempre afectada, pelo realíssimo
e constante benefício da maior modicidade de preço, outros importantes
inconvenientes se registavam. Era um deles que, «podendo venderse
semilhante carne e por menor preço que a do Assougue desta cidade ainda
lucrando muito o Marchante, antão o Povo atrahido da deminuição do preço
de cinco reis em arratel ficando-lhe à mam o dito Assougue concorrião em
grande numero ao mesmo com grave prejuizo da arrematação do Arrematante
desta cidade, ficando assim illudida a arrematação, que a Camara fazia,
e sempre infalível a perda do Arrematante, sendo por isso que os
Marchantes à arrematação dos Assougues desta cidade receião dar hum
lanço racionavel».
O caso fora, de resto, já «levado à Augusta Prezença de S. A. R.» e,
além disso, tinha sido entregue para esse ano a exploração dos açougues
aveirenses a Manuel de Sousa, que oferecera cento e sessenta reis por arrátel, atenta a circunstância de ter cessado o funcionamento do de
Sá. O facto
de o requerente Carvalho se propor à última hora abastecer
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a cidade de carne pelo preço estabelecido para Sá, só servia «para illudir a arrematação desta Camara e para enganar o publico, sendo os
cinco reis de menos como a isca dada ao povo para obter e ganhar grandes
lucros, e fazer à custa da Saude publica huma sordida negociação».
Demais, tendo andado em praça os açouges da cidade, nunca aquele lançara
preço inferior a cento e oitenta reis. Era mais uma ardilosa artimanha
do finório, armado em benemérito para mascarar a tramoia.
A carne de Sá era absolutamente indesejável. Condenavam-na «in
limine». Nunca a matança tinha conveniente
fiscalização, pois os almotacés de Ílhavo viviam a demasiada distância para se disporem a vigiá-la, e naquele lugar
existia apenas um juiz da vintena, «que também servia de Almotafsé,
homem da ínfima plebe, a que o Marchante do tal Assougue com hum copo
de vinho em cada talho – e por
preço mais módico, como já sabemos – dispunha a seu favor, sendo estes Juizes e Almotafses de caracter de hirem de companhia com os Marchantes
beber á taberna como todos sabem,
e tem visto.»...
Deste nefasto açougue viu-se, então, segundo tudo nos faz crer, liberta
a cidade. O da Mitra, que começara a funcionar em 1788, «no sitio de
baixo do Jardim do Paço» –
quer dizer, cerca do lugar onde está o Banco Regional e que pouca
confiança inspirava também, foi encerrado pelas mesmas alturas; ou pouco
depois, passando as rezes a ser abatidas no matadouro municipal.
O marchante Manuel Francisco de Carvalho, já nosso conhecido e, pelos
vistos, homem obstinado e repontão, apesar de notificado formalmente da
deliberação municipal que mandava cessar o funcionamento desse açougue,
teimou em utilizá-lo. Custou-lhe a «pouca reverência aos mandatos
deste Senado» – como dizia a vereação – uns dois dias de cadeia. E a
lição deve ter-lhe aproveitado, pois para ser reposto em liberdade, logo
abateu a arrogante fanfarronice, comprometendo-se, solene e humilhadamente, mansinho como um cordeiro, a acatar a determinação
camarária.
AUTO DE ARREMATAÇÃO DAS CARNES
DOS AÇOUGUES DA VILA DE ÍLHAVO
E DO LUGAR DE SÁ DO ANO DE 1812
Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil outo centos e
doze anos, e aos onze de Março do dito anno nesta Villa de Ilhavo, e
Casas da Camara della, em audiencia de Veriação, que fazião o Juiz João da Rocha Deos, Veriadores Manoel Nunes Caramonete, João Migueis e
João dos Santos Patoillo, e o Procurador do Concelho Luiz Nunes Vizinho,
comigo
Escrivão, que servirão o anno proximo passado de mil oito cento e
actualmente
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247 / servem, ahí acordarão; que visto ser tempo de se Rematarem as carnes tanto do Assougue desta villa, como do lugar de Sá por andarem
annexos; e terem-se já mandado lançar publicos pregoens por huma, e
outra parte, como hera do costume para que quem quizesse dar o seu lanço
o viesse fazer no dia de hoje a esta mesma villa e casa da Camara;
devião proceder à mesma Rematação: E logo mandarão ao Official de
Porteiro Francisco Jozé lancasse novos pregoens e publicasse, que
quizesse lançar na Rematação das carnes dos Assougues, assim desta
villa, como do lugar de Sá, viesse dar o seu lanço, que se Remataria
digo se lhe tomaria e remataria a quem por menos o fizesse, e mais util e
accomodado fosse ao Publico; e satisfazendo o dito Official a este
mandato, pegou de hum ramo verde na mão, e em alta, e inteligivel
vós principiou dizendo, quem quizer lançar na Rematação das carnes
dos Assougues desta Villa, e lugar de Sá pelo presente anno, que terá
seu principio em Sabado de AlIeluia do mesmo, e findar em outro tal dia
do futuro de mil oito centos e treze, venha dar-me o seu lanço que se ha
de Rematar aquem pelo menos o fizer, e mais util aos Povos. E andando
com este pregão por largo espaço de tempo, lançou Manoel
José de Souza da freguesia de Mouris menos cinco reis, do que as mesmas
carnes se Remattarem na cidade de Aveiro, visto inda se não
terem lá rematado; e ainda mesmo cazo na dita Camara de Aveiro se não
rematte, e fique por Administração, tão bem se sugeita a vendella pelo
mesmo preço de menos sinco reis, conforme se vender na dita cidade;
sugeitando-se em tudo conforme as condiçoens do contracto que se fizer
na referida cidade, e ás condemnaçoens que esta Camara quizer
impor-lhe, faltando
elle remattante a alguma: E por não haver mais lanço algum mandarão elle
Juiz, Veriadores, e Procurador ao Official de Porteiro referido
afrontasse, e Rematasse; o que elle Cumprindo, dice, que menos sinco
reis lhe davão por cada arratel de carne vendido nos preditos dois
Assougues que afronta faço, porque mais não acho, se mais achava mais
tomara, dou-lhe huma, dou-lhe duas, dou-lhe tres e huma mais
pequenina, afrontei, e Remattei; e entregando o ramo ao predito
Remattante Manoel José de Souza, que como
dito fica aceitou, e se sugeitou as referidas condiçoens, matando de
toda
a especie de Gado Vaccum e sendo boa carne, e gorda, à excepção de vitellas
pela prohibição que há da Intendencia Geral da Policia se
não devem matar; e a tudo se obrigou a prestar fiador abonado pela Camara, e aprovado, á primeira Conferencia sub pena de não lhe ter
esta
remattação effeito e elle Remattante pagar todo o prejuizo que cauzar á
sua custa; e de como assim o aceitou, e se sujeitou, assinou com elle
Juiz, e mais corpo de Camara, e com as testemunhas Bernardo Celestino
de Carvalho, e Pedro Rodrigues desta Villa, com o Official de Porteiro,
e comigo Jose Ferreira da Cunha, Escrivão da Camara, que o escrevi. (aa)
Rocha Deos – Joze
Ferr.ª da Cunha Caramonete – Migueis – Patoilo – Vezinho – Manuel De +
Joze de Souza Bernardo Celestino de Carvalho – Pedro Rodriguees –
Franc.º De + Joze Off.al
(Cópia do sr. professor Manuel Nunes Ramos).
EDUARDO CERQUEIRA |