Eduardo Cerqueira, Comentários à arrematação das carnes, Vol. XIX, pp. 241-247.

COMENTÁRIOS À ARREMATAÇÃO

DAS CARNES DOS AÇOUGUES DA VILA

DE ÍLHAVO E DO LUGAR DE SÁ EM 1812

EM 11 de Março de 1812, a vereação de Ílhavo, sob a presidência do juiz João da Rocha Deus, reuniu em audiência ordinária, nos Paços do Concelho, para proceder à arrematação anual das carnes dos açougues daquela vila e do lugar de Sá, que lhe estava adstrito. Haviam corrido antecedentemente os pregões do estilo. Lançou-os, uma vez mais, o oficial de porteiro, naquele lugar, a plenos pulmões, dando cumprimento ao expresso mandado da edilidade. E, satisfeito este último anúncio público, o serventuário municipal, depois de empunhar o simbólico ramo verde, proclamou em voz sonorosa, pausada e clara, as fórmulas tradicionais da arrematação, que, «mutatis mutandis», de acordo com as circunstâncias, persistiram até começos do século actual:

– Quem quiser lançar na arrematação das carnes dos açougues desta vila e lugar de Sá, pelo presente ano, que terá seu princípio em sábado de Aleluia do mesmo, e findará em outro tal dia do futuro de mil oitocentos e treze, venha dar-me o seu lanço, que se há-de arrematar a quem pelo menos o fizer, e mais útil aos povos.

Disse e repetiu, sucessivas vezes repisado, o pregão conhecido e ressabido. Um único interessado surgiu a concorrer ao fornecimento, o marchante Manuel José de Sousa, natural da freguesia de Mouriz, concelho de Paredes, distrito do Porto, mas residente em Aveiro, o qual se dispunha [Vol. XIX - N.º 76 - 1953] / 242 / a vender em Ílhavo e Sá por «menos cinco reis, do que as mesmas carnes se Rematarem na cidade», onde ainda não se efectuara a respectiva praça.

E o porteiro, de novo, verificado que não havia outro licitante, por ordem dos membros da Câmara, alteou a voz, e no tom solene e enfático que o acto requeria, bem timbradas, medidos os intervalos com rigores de metrónomo, proferiu as palavras sacramentais:

– Menos cinco reis do que em Aveiro custe me dão por cada arrátel de carne vendido nos açouges desta vila e do lugar de Sá. Afronta faço, porque mais não acho! Se mais achara, mais tomara! Dou-lhe uma!... Dou-lhe duas!... Dou-lhe três!... E uma mais pequenina! Afrontei!... E arrematei!

E então, passando às mãos do arrematante o ramo verde, deu por concluído o protocolo daquele acto público. O mais era a parte burocrática do compromisso às condições estipuladas e a assinatura do auto, que nesta ocasião foi de cruz.

Este auto proporciona motivo para alguns comentários e divagações, pois nem só a fórmula dos pregões constitui curiosidade digna de registo.

Em primeiro lugar deve anotar-se o facto de a arrematação abranger a vila de Ílhavo e o lugar de Sá, que hoje çonstitui apenas um bairro da cidade, nem sequer dos mais importantes. Mas o velho lugar, mais antigo do que a monarquia nacional, como se conclui do conhecido testamento da condessa Mumadona, do ano de 959, pertencia, com efeito, desde recuados tempos, ao concelho de Ílhavo. Segundo ROCHA MADAHIL, «a ligação de Sá e Ílhavo remonta, pelo menos, a 1354, ano em que D. Afonso IV doou os dois lugares a sua neta, a Infanta D. Maria, que casou com o Infante D. Fernando, de Aragão»(1). E só veio a ser desanexado da jurisdição administrativa ilhavense por alvará do governador civil do distrito de Aveiro, de 13 de Outubro de 1835. Em consequência desse diploma ficou pertencendo à freguesia da Vera-Cruz, de Aveiro (freguesia da Vera-Cruz de Além do Vouga, segundo os exactos termos nele empregados), «todo o tereno que se estende ao longo da Estrada e propriedades Adjacentes athe á Irmida do Senhor das Barocas, incluzivel comefando a contar-se o Concelho de Esgueira do leste da dita Irmida»; e, ao mesmo tempo, «o Concelho da Villa de Ílhavo ficava sem ingerência alguma que antes tinha na parte daquelle terreno». Assim se explica que a arrematação / 242 / pertencesse à competência da edilidade ilhavense e se efectuasse simultaneamente com a das carnes do açougue da vila.

Apuremos agora o preço pelo qual, nesse ano, se venderia a carne em Ílhavo. O arrematante comprometera-se a vendê-la por cinco reis menos, em arrátel, do que fosse fixado em Aveiro. Ora, nesta cidade a praça só veio a realizar-se três dias depois, sendo o mais diminuto o de noventa reis, de «Manuel de Souza desta cidade, que por tanto se obriga a dar o arrátel de Vaca todo o anno». Custaria, assim, em Ílhavo e Sá, oitenta e cinco reis.

Sucedeu, todavia, que, em 4 de Julho seguinte, efectuou a Câmara de Aveiro uma reunião conjunta com as pessoas da nobreza e do povo para apreciar um requerimento do referido Manuel de Sousa, solicitando autorização para subir o preço da carne. O custo do gado, desde a arrematação até àquela data, sofrera um considerável agravamento e esse facto vinha-lhe causando um grave prejuízo que o levaria à ruína, e ao seu fiador Gabriel José Fernandes, no caso de o Senado Municipal lhe não deferir o solicitado aumento. Todos «convierão uniformemente que atendendo a justifsa do pedido, pela certeza publica e constante do que allegava se lhe aumentafse dez reis em cada arratel de carne que vendese sobre os noventa reis por que a tinha arrematado; mas que isto se devia verificar por todo o tempo que continuafse a carestia do gado como actualmente sucede, e se viefse a embaratecer tornaria ao preço de noventa reis»... Ílhavo, de acordo com o que fora contratado, deve, decerto, ter acompanhado a oscilação.

Reparemos, a talho de foice, que no auto adiante transcrito se estipula que o arrematante possa matar «toda a especie de Gado Vaccum, e sendo boa carne, e gorda, à excepção de vitellas pela prohibição que há da lntendencia Geral da Policia se não devem matar». Há neste ponto uma divergência entre as condições impostas em Ílhavo e em Aveiro.

As da cidade, com maior respeito pelas determinações superiores, como se verá, incluem as vacas na proibição. E, deste modo, na área citadina a carne de vaca assim taxativamente designada num passo do auto atrás trasladado – era obrigatoriamente... de boi.

Esta deliberação tinha como causa a míngua de gado com que na região se lutava, desde 1809. Já noutro ensejo tive ocasião de referir(2) que após o desembarque em Aveiro, em 13 de Maio daquele ano, das tropas britânicas vindas para dar combate aos invasores franceses, a região ficou / 244 / quase inteiramente despovoada de gado, tanto para a alimentação das populações, como para os trabalhos agrícolas. Os campos do Vouga estiveram nessa época «com mais de metade da cultura por fazer por falta de Gados não se chegando a ver huma só junta a trabalhar».

Este facto teve duas lógicas consequências. A primeira deparou-se-nos já com a necessidade de evitar que se abatessem as vacas e vitelas e, assim, se abreviar o repovoamento do gado. A segunda foi o aumento do preço da carne, que corria por setenta e setenta e cinco reis até 1810 e chegou à exorbitância – para o tempo, evidentemente – de cento e setenta reis o arrátel, em 1813. Só veio a normalizar-se em 1816, registando-se mesmo um embaratecimento, certamente devido à abundância, já no ano de 1818, em que chegou aos cinquenta e cinco reis.

Voltemos, porém, ao auto aveirense de 1812. Nele se comina ao arrematante a multa de «cincoenta mil reis pagos de cadeia por trinta dias no cazo de dar carne que venha dos Assougues da Excelentifsima Mitra, Sá ou do Senhor das Barrocas, pela má fama de se não matarem nelles rezes boas, por não haver quem as vegie»...

Já vimos que a carne em Sá era mais barata do que na cidade e qual a razão. Ora esse facto, além de outros inconvenientes que adiante se apontado, dava motivo a um autêntico contrabando, como, aliás sucedia também com a venda do vinho. Conta o Conselheiro José Ferreira da Cunha e Sousa(3), testemunha presencial da vida aveirense dos primeiros quartéis do século XIX, que «havia ali muitas tabernas que vendiam vinho em quantidade, por ser muito mais barato do que o vendido na cidade, e isto pela razão de diferença do imposto de consumo, que em Ílhavo era muito menor. Em consequência, famílias da cidade dali se sortiam, e Sá era muito frequentado à noite e nos dias feriados por todos os devotos de Baco, sendo por isso frequentes ali as desordens e os malefícios; os empresários destas tabernas eram negociantes da cidade». Sem dificuldade se imaginarão os desacatos praticados pelos amigos das pandegazinhas baratas e pelos bebedores mais inveterados, encontrando, ali a dois passos, logo a partir do convento da Madre de Deus – onde hoje se eleva o quartel do Regimento de Cavalaria 5 – um lugar, relativamente recatado, com imunidades para os zelos policiais da «ronda» e em que o vinhito era mais acessível.

O açougue de Sá veio a ser encerrado em 1813, em consequência de uma deliberação do Corregedor da Comarca de / 245 / Aveiro, solicitada pela edilidade. E, ao que parece, uma reclamação apresentada àquele magistrado pelo respectivo arrematante, Joaquim Francisco de Carvalho não logrou deferimento. A ela se opôs vivamente a municipalidade aveirense. «Aquelle Assougue estabelecido no lugar de Sá – alegava a Câmara – era em todas as considerações prejudicial ao bem público e boa admenistração dos Assougues desta cidade, porque estando o logar de Sá na distância de huma grande legua da Villa de Ilhavo, e compondo-se de muitos (sic) poucos moradores quazi todos jornaleiros, e gente muito pobre que não gastavão carne do dito Assouge, e sendo aquelle lugar de Sá immediato desta cidade, acontecia que do estabelecimento daquelle Assougue rezultavão os maiores e mais consequentes prejuizos ao Bem commum».(4). Apontava depois os inconvenientes irrefutáveis do restabelecimento da matança em Sá. Estava «aquelle Assougue dezamparado das Autoridades competentes que o superintendessem, e por ifso os Marchantes delle cortavão não só Vacas contra as ordens do Governo – mas dentro da letra do contrato, como vimos – mas quaze sempre rezes, que por achaques, ou cansassos os donos delas passavam para o dito Assougue por preços insignificantes, tendo athe acontecido por muitas vezes o cortarem, e venderem no mesmo Rezes que havião morrido de doença, com grave damno da saude publica».

Mas, além deste gravíssimo prejuízo, pois a gente de mais escassos meios arriscava a saúde, nem sempre afectada, pelo realíssimo e constante benefício da maior modicidade de preço, outros importantes inconvenientes se registavam. Era um deles que, «podendo venderse semilhante carne e por menor preço que a do Assougue desta cidade ainda lucrando muito o Marchante, antão o Povo atrahido da deminuição do preço de cinco reis em arratel ficando-lhe à mam o dito Assougue concorrião em grande numero ao mesmo com grave prejuizo da arrematação do Arrematante desta cidade, ficando assim illudida a arrematação, que a Camara fazia, e sempre infalível a perda do Arrematante, sendo por isso que os Marchantes à arrematação dos Assougues desta cidade receião dar hum lanço racionavel».

O caso fora, de resto, já «levado à Augusta Prezença de S. A. R.» e, além disso, tinha sido entregue para esse ano a exploração dos açougues aveirenses a Manuel de Sousa, que oferecera cento e sessenta reis por arrátel, atenta a circunstância de ter cessado o funcionamento do de Sá. O facto de o requerente Carvalho se propor à última hora abastecer / 246 / a cidade de carne pelo preço estabelecido para Sá, só servia «para illudir a arrematação desta Camara e para enganar o publico, sendo os cinco reis de menos como a isca dada ao povo para obter e ganhar grandes lucros, e fazer à custa da Saude publica huma sordida negociação». Demais, tendo andado em praça os açouges da cidade, nunca aquele lançara preço inferior a cento e oitenta reis. Era mais uma ardilosa artimanha do finório, armado em benemérito para mascarar a tramoia.

A carne de Sá era absolutamente indesejável. Condenavam-na «in limine». Nunca a matança tinha conveniente fiscalização, pois os almotacés de Ílhavo viviam a demasiada distância para se disporem a vigiá-la, e naquele lugar existia apenas um juiz da vintena, «que também servia de Almotafsé, homem da ínfima plebe, a que o Marchante do tal Assougue com hum copo de vinho em cada talho – e por preço mais módico, como já sabemos – dispunha a seu favor, sendo estes Juizes e Almotafses de caracter de hirem de companhia com os Marchantes beber á taberna como todos sabem, e tem visto.»...

Deste nefasto açougue viu-se, então, segundo tudo nos faz crer, liberta a cidade. O da Mitra, que começara a funcionar em 1788, «no sitio de baixo do Jardim do Paço» – quer dizer, cerca do lugar onde está o Banco Regional e que pouca confiança inspirava também, foi encerrado pelas mesmas alturas; ou pouco depois, passando as rezes a ser abatidas no matadouro municipal.

O marchante Manuel Francisco de Carvalho, já nosso conhecido e, pelos vistos, homem obstinado e repontão, apesar de notificado formalmente da deliberação municipal que mandava cessar o funcionamento desse açougue, teimou em utilizá-lo. Custou-lhe a «pouca reverência aos mandatos deste Senado» – como dizia a vereação – uns dois dias de cadeia. E a lição deve ter-lhe aproveitado, pois para ser reposto em liberdade, logo abateu a arrogante fanfarronice, comprometendo-se, solene e humilhadamente, mansinho como um cordeiro, a acatar a determinação camarária.


AUTO DE ARREMATAÇÃO DAS CARNES DOS AÇOUGUES DA VILA DE ÍLHAVO E DO LUGAR DE SÁ DO ANO DE 1812

Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil outo centos e doze anos, e aos onze de Março do dito anno nesta Villa de Ilhavo, e Casas da Camara della, em audiencia de Veriação, que fazião o Juiz João da Rocha Deos, Veriadores Manoel Nunes Caramonete, João Migueis e João dos Santos Patoillo, e o Procurador do Concelho Luiz Nunes Vizinho, comigo Escrivão, que servirão o anno proximo passado de mil oito cento e actualmente / 247 / servem, ahí acordarão; que visto ser tempo de se Rematarem as carnes tanto do Assougue desta villa, como do lugar de Sá por andarem annexos; e terem-se já mandado lançar publicos pregoens por huma, e outra parte, como hera do costume para que quem quizesse dar o seu lanço o viesse fazer no dia de hoje a esta mesma villa e casa da Camara; devião proceder à mesma Rematação: E logo mandarão ao Official de Porteiro Francisco Jozé lancasse novos pregoens e publicasse, que quizesse lançar na Rematação das carnes dos Assougues, assim desta villa, como do lugar de Sá, viesse dar o seu lanço, que se Remataria digo se lhe tomaria e remataria a quem por menos o fizesse, e mais util e accomodado fosse ao Publico; e satisfazendo o dito Official a este mandato, pegou de hum ramo verde na mão, e em alta, e inteligivel vós principiou dizendo, quem quizer lançar na Rematação das carnes dos Assougues desta Villa, e lugar de Sá pelo presente anno, que terá seu principio em Sabado de AlIeluia do mesmo, e findar em outro tal dia do futuro de mil oito centos e treze, venha dar-me o seu lanço que se ha de Rematar aquem pelo menos o fizer, e mais util aos Povos. E andando com este pregão por largo espaço de tempo, lançou Manoel José de Souza da freguesia de Mouris menos cinco reis, do que as mesmas carnes se Remattarem na cidade de Aveiro, visto inda se não terem lá rematado; e ainda mesmo cazo na dita Camara de Aveiro se não rematte, e fique por Administração, tão bem se sugeita a vendella pelo mesmo preço de menos sinco reis, conforme se vender na dita cidade; sugeitando-se em tudo conforme as condiçoens do contracto que se fizer na referida cidade, e ás condemnaçoens que esta Camara quizer impor-lhe, faltando elle remattante a alguma: E por não haver mais lanço algum mandarão elle Juiz, Veriadores, e Procurador ao Official de Porteiro referido afrontasse, e Rematasse; o que elle Cumprindo, dice, que menos sinco reis lhe davão por cada arratel de carne vendido nos preditos dois Assougues que afronta faço, porque mais não acho, se mais achava mais tomara, dou-lhe huma, dou-lhe duas, dou-lhe tres e huma mais pequenina, afrontei, e Remattei; e entregando o ramo ao predito Remattante Manoel José de Souza, que como dito fica aceitou, e se sugeitou as referidas condiçoens, matando de toda a especie de Gado Vaccum e sendo boa carne, e gorda, à excepção de vitellas pela prohibição que há da Intendencia Geral da Policia se não devem matar; e a tudo se obrigou a prestar fiador abonado pela Camara, e aprovado, á primeira Conferencia sub pena de não lhe ter esta remattação effeito e elle Remattante pagar todo o prejuizo que cauzar á sua custa; e de como assim o aceitou, e se sujeitou, assinou com elle Juiz, e mais corpo de Camara, e com as testemunhas Bernardo Celestino de Carvalho, e Pedro Rodrigues desta Villa, com o Official de Porteiro, e comigo Jose Ferreira da Cunha, Escrivão da Camara, que o escrevi. (aa) Rocha Deos – Joze Ferr.ª da Cunha Caramonete – Migueis – Patoilo – Vezinho – Manuel De + Joze de Souza Bernardo Celestino de Carvalho – Pedro Rodriguees – Franc.º De + Joze Off.al

(Cópia do sr. professor Manuel Nunes Ramos).

EDUARDO CERQUEIRA

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(1) Forais do Distrito de Aveiro – O Foral de Ílhavo, Arquivo do Distrito de Aveiro, vol. lV, pág. 183.

(2) Aspectos e modificações do Rossio; Arquivo do Distrito de Aveiro, vol. XV, pág. 273. 

(3) − Memória de Aveiro no Século XIX, Arquivo do Distrito de Aveiro, vol. VI, pág. 263.

(4) Termo de vereação da Câmara de Aveiro, de 2 de Junho de 1813. 

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