Soares da Graça, Jornada da Rainha Santa à Galiza em 1325, Vol. XVI, pp. 75-80.

A JORNADA DA RAINHA SANTA

À GALIZA NO ANO DE 1325

SUA PASSAGEM POR TERRAS

DO DISTRITO DE AVEIRO

A DEVOTA romagem que a Rainha D. Isabel de Aragão fez à Catedral de São Tiago de Compostela, logo após a morte do rei D. Dinis, com o piedoso intento de lhe sufragar a alma, vem referida nos seus mais antigos biógrafos. E, volvidos seis séculos, ainda agora tal acontecimento se recorda na tradição popular de várias terras por onde a Rainha Santa então passou, não só em face de templos que foram levantados em sua honra, mas ainda pela narrativa de curiosas lendas que o povo foi moldando e ajeitando a seu gosto, retocando-as, em alguns casos, com pinceladas de fantasia e marcado sabor de ingenuidade, que, de resto, as revestem às vezes de certo pitoresco, não lhes destruindo o fundo real em que sempre assentam.

Com base nessas lendas, que religiosamente se foram guardando e transmitindo de geração em geração até nossos dias, e à vista de ermidas, simples nichos votivos, imagens e outros elementos com tal facto relacionados, podia tentar-se a reconstituição do itinerário feito pela virtuosa esposa do nosso Rei trovador, estudo que teria invulgar interesse; mas como tudo isso levaria muito longe, e nos faltam dados precisos quanto a algumas regiões, ocupar-nos-emos por agora, e tão somente, do percurso feito pela virtuosa Rainha desde Águeda, onde a sua passagem ficou assinalada por um acto de bondade, em que era tão fértil o seu coração magnânimo − e que consistiu na dádiva, ao hospital da nossa terra, de um pedaço de campo da largura ocupada pelo séquito real que / 76 / a acompanhava quando o atravessou(1) − até limites da Bairrada, junto do rio Cértoma, de cujas margens ela se aproximou para ali beber água.

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Sabemos bem que não traremos, com estas notas, qualquer facto novo para a biografia da Rainha Santa, já há muito traçada pela pena de escritores insignes, de todos os tempos; mas se isto é assim, não é menos verdade que iremos desenvolver um passo da sua vida: o caminho que S. Isabel percorreu por terras destas redondezas, quando foi na sua peregrinação de Fé e de Saudade a terras de Espanha, levar oferendas valiosas, e rezar ao Apóstolo das Gentes pelo eterno descanso do Rei que, tanto amara, e que morreu confiante. − como expressara no, seu testamento − de que ela faria para isso tudo aquilo que pudesse(2).

Do que foi essa piedosa jornada, como manifestação de respeito e carinho à bondosa Rainha a quem o povo já venerava como Santa, dão-nos conta os mais antigos cronistas; e, até aos modernos escritores não cessou, nem sequer mesmo esmoreceu, o coro de louvores erguido em honra de Santa Isabel. A fama das singulares virtudes que dia a dia praticava, quer a dentro dos seus Paços, junto a Santa Clara, em Coimbra, ou mesmo fora deles, visitando e tratando doentes nos seus humildes tugúrios; ou repartindo esmolas pelos pobres que logo dela se acercavam, mal a viam à saída dos templos ou com ela se cruzavam no caminho − dourou por tal forma o seu nome, que o tempo, implacável destruidor de tanta coisa bela, não conseguiu até hoje empanar o brilho dessa auréola, que ainda em nossos dias se reflecte em tão luminosa projecção; as últimas festas realizadas em Coimbra, homenageando a sua veneranda Padroeira, são disso testemunho eloquente, insofismável. E isso mesmo eu tive ocasião de verificar não há muito ainda em Águeda, num festival de caridade que por iniciativa da Câmara Municipal, Escola Central de Sargentos e Direcção do Hospital Conde de Sucena, teve lugar naquela vila na noite de 22 de Outubro do ano findo, e em que se representou, pela primeira vez, perante milhares de pessoas que ali acorreram de terras muito distantes, e no meio do mais impressionante silêncio, / 78 / o AUTO DA RAINHA SANTA, que eu escrevera havia já anos, decalcado na formosa lenda da sua passagem por aqui(3).

Deixa-nos avaliar a repercussão que o facto teria nessas já tão recuadas eras a passagem da LENDA que a tal acontecimento se refere nestes expressivos termos: As GENTES DAS COMARCAS PER HV VINHA SAHIÃO DE SA PROPRIA VONTADE AOS CAMINHOS E LVGARES PER HV PASSAVA POR A VEEREM POR A BONDADE QVE DELA OVVIAM DIZER(4).

Há muito que o povo tinha consagrado no seu coração a caridosa Rainha, pela fama, que até ele ia chegando, das suas preclaras virtudes; e assim, ao saber-se o caminho que tomara, de toda a parte chegava gente para a ver e saudar, pedindo-lhe também o seu generoso valimento. Bem tudo isso traduziu um abalizado e conhecido autor, quando escreveu: A SUA JORNADA FOI UMA CONTINUA OVAÇÃO CORRENDO AO SEU ENCONTRO OS POVOS POR ONDE PASSAVA SOFREGOS DE CONTEMPLAR A FUTURA SANTA(5).

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Foi ao saudoso e ilustre escritor, nosso conterrâneo, já falecido, CONDE DA BORRALHA, que se ficou devendo a descoberta do documento onde se acha registada a graciosa lenda da passagem da Rainha Santa por Águeda, e que está inserta no Tombo antigo do Hospital. Merece esse velho assento, que um anónimo do século XVIII, decerto pessoa que lidava com 'os livros do arquivo − teve o louvável cuidado de exarar, perpetuando assim uma das mais formosas tradições da nossa terra, ser conhecido de toda a gente que tem pelo seu Passado o devido culto: arquivemo-lo, por isso, também aqui, na parte em que se refere à terra doada à velha albergaria local, onde, já desde tão remotas eras, os pobres viandantes que por estes sítios transitavam, encontraram sempre pão e agasalho. Foi a leitura deste tão interessante documento, que me levou a escrever o Auto da Rainha Santa, corporizando deste modo a lenda, que sendo ignorada das gerações / 80 / presentes, o valioso estudo atrás citado veio avivar, impondo-se-nos agora o dever de não mais a deixar cair no esquecimento.

Reza assim a parte do assento que se refere ao terreno dado pela Rainha Santa:

...«esta terra está na Várzia de Recardaens pegada ao comaro do Capitão João Tauares da ponte arrenda a o Hospital pello preco que lhe parecã (?) parte do Norte com o rio e do Sul com a estrada que vem do Sardam p.ª Recardaens e tem dizima a Deus e foi dada pella Raynha Sãta ao Hospital da Largura do coche em que vinha de S. Thiago pela estrada do Cruzeiro de Paredes por ser naquelle tempo melhor, e passando pela estrada das Larangeiras defronte do dito Hospital no tempo do estio em direitura ao campo limpo ja dos fructos ate a estrada da Corga.»(6)

(Continua na pág. 118 − ►►►)

SOARES DA GRAÇA
 

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(1)Esta terra esteve muito tempo na posse da Misericórdia, e media 170 varas de comprimento por 5,5 de largura.

(2)Vid. o erudito estudo Evolução ao Culto de D. Isabel de Aragão pelo Prof. Doutor ANTÓNIO DE VASCONCELOS. 

(3)Vejam-se os jornais da época e, designadamente, os locais: «Soberania do Povo», «Independência d'Águeda» e «Grémio da Lavoura», este inserindo uma interessante crónica descritiva da audiência dada pela Rainha Santa às autoridades e figuras que foram saudá-la, escrita pelo nosso conterrâneo e erudito escritor JOAQUIM DE SOUSA BAPTISTA. Nos jornais do Porto «Primeiro de Janeiro», «Comércio do Porto» e «Jornal de Notícias», largas referências foram feitas a este festival e ao auto, assim como na imprensa diária de Lisboa, por intermédio dos seus dedicados correspondentes. 

(4)Evolução do Culto, ob. já cit.  

(5)Vid. FIGANIERE, Memórias das Rainhas de Portugal.  

(6)Veja-se o belo estudo do C. DA BORRALHA sobre o Hospital de Águeda, in Arquivo de Aveiro, vol. XVIII, 1939.

− Outras lendas correm em diferentes terras do País, alusivas à passagem, por elas, da Rainha Santa, A Norte de Águeda, há uma, corrente em Arrifana de Santa Maria, segundo a qual a mãe de uma ceguinha lhe pediu a cura de sua filha, que, tocada pelas mãos da Santa Rainha, alcançou a vista. Diz a mesma lenda que nessa ocasião Santa Isabel estava numa casa que servia de estalagem, e comendo uma laranja, caiu no chão uma pevide, da qual nasceu uma laranjeira em cujos frutos se divisavam as quinas das armas de Portugal. Vid. o Dicionário Geográfico do P.e LUÍS CARDOSO, ed. 1747 e Vida de Santa Isabel, de FERNANDO C. LACERDA, ed. 1735.

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