A
DEVOTA romagem que a Rainha D. Isabel de Aragão fez à Catedral de São
Tiago de Compostela, logo após a morte do rei D. Dinis, com o piedoso intento de lhe
sufragar a alma, vem referida nos seus mais antigos
biógrafos. E, volvidos seis séculos, ainda agora tal acontecimento se recorda na tradição popular de várias terras por onde a
Rainha Santa então passou, não só em face de templos que foram levantados em sua honra, mas ainda pela
narrativa de curiosas lendas que o povo foi moldando e ajeitando a seu
gosto, retocando-as, em alguns casos, com pinceladas de fantasia e
marcado sabor de ingenuidade, que, de resto, as revestem às vezes de certo pitoresco, não lhes
destruindo
o fundo real em que sempre assentam.
Com base nessas lendas, que religiosamente se foram
guardando e transmitindo de geração em geração até nossos
dias, e à vista de ermidas, simples nichos votivos, imagens e outros
elementos com tal facto relacionados, podia tentar-se a reconstituição
do itinerário feito pela virtuosa esposa do nosso Rei trovador, estudo
que teria invulgar interesse; mas
como tudo isso levaria muito longe, e nos faltam dados precisos quanto a
algumas regiões, ocupar-nos-emos por agora, e tão somente, do percurso
feito pela virtuosa Rainha desde Águeda, onde a sua passagem ficou
assinalada por um acto de bondade, em que era tão fértil o seu coração
magnânimo − e que consistiu na dádiva, ao hospital da nossa terra, de um
pedaço de campo da largura ocupada pelo séquito real que
/ 76 / a acompanhava quando
o atravessou(1)
− até limites da Bairrada, junto
do rio Cértoma, de cujas margens ela se aproximou para ali beber água.
*
* *
Sabemos bem que não traremos, com estas notas, qualquer facto novo
para a biografia da Rainha Santa, já há muito traçada pela pena de
escritores insignes, de todos os tempos; mas se isto é assim, não é
menos verdade que iremos desenvolver um passo da sua vida: o caminho que
S. Isabel percorreu por terras destas redondezas, quando foi na sua
peregrinação de Fé e de Saudade a terras de Espanha, levar oferendas
valiosas, e rezar ao Apóstolo das Gentes pelo eterno descanso do Rei
que, tanto amara, e que morreu confiante. − como expressara no, seu
testamento − de que ela faria para isso tudo aquilo que
pudesse(2).
|
Do que foi essa piedosa
jornada, como manifestação de respeito e
carinho à bondosa Rainha a quem o povo já venerava como Santa, dão-nos
conta os mais antigos cronistas; e, até aos modernos escritores não
cessou, nem sequer mesmo esmoreceu, o coro de louvores erguido em honra
de Santa Isabel. A fama das singulares virtudes que dia a dia praticava,
quer a dentro dos seus Paços, junto a Santa Clara, em
Coimbra, ou mesmo fora deles, visitando e tratando doentes nos seus
humildes tugúrios; ou repartindo esmolas pelos pobres que logo dela se
acercavam, mal a viam à saída dos templos ou com ela se cruzavam no
caminho − dourou por tal forma o seu nome, que o tempo, implacável
destruidor de tanta coisa bela, não conseguiu até hoje empanar o brilho
dessa auréola, que ainda em nossos dias se reflecte em tão luminosa
projecção; as últimas festas realizadas em Coimbra, homenageando a sua
veneranda Padroeira, são disso testemunho eloquente, insofismável. E
isso mesmo eu tive ocasião de verificar não há muito ainda em Águeda, num
festival de caridade que por iniciativa da Câmara Municipal, Escola
Central de Sargentos e Direcção do Hospital Conde de Sucena, teve lugar
naquela vila na noite de 22 de Outubro do ano findo, e em que se
representou, pela primeira vez, perante milhares de pessoas que ali acorreram de terras muito distantes, e no meio do mais impressionante
silêncio,
/
78 /
o AUTO DA RAINHA SANTA, que eu escrevera havia já anos, decalcado na
formosa lenda da sua passagem por aqui(3).
Deixa-nos avaliar a repercussão que o facto teria nessas já tão recuadas
eras a passagem da LENDA que a tal acontecimento se refere nestes
expressivos termos: As GENTES DAS COMARCAS PER HV VINHA SAHIÃO DE SA
PROPRIA VONTADE AOS CAMINHOS E LVGARES PER HV PASSAVA POR A
VEEREM POR A
BONDADE QVE DELA OVVIAM DIZER(4).
Há muito que o povo tinha consagrado no seu coração a caridosa Rainha,
pela fama, que até ele ia chegando, das
suas preclaras virtudes; e assim, ao saber-se o caminho que tomara, de
toda a parte chegava gente para a ver e saudar, pedindo-lhe também o seu
generoso valimento. Bem tudo isso traduziu um abalizado e conhecido
autor, quando escreveu: A SUA JORNADA FOI UMA CONTINUA OVAÇÃO CORRENDO
AO SEU ENCONTRO OS POVOS POR ONDE PASSAVA SOFREGOS DE CONTEMPLAR A
FUTURA SANTA(5).
*
* *
|
Foi ao saudoso e ilustre escritor, nosso conterrâneo, já falecido, CONDE
DA BORRALHA, que se ficou devendo a descoberta do documento onde se
acha registada a graciosa lenda
da passagem da Rainha Santa por Águeda, e que está inserta
no Tombo antigo do Hospital. Merece esse velho assento,
que um anónimo do século XVIII, decerto pessoa que lidava
com 'os livros do arquivo − teve o louvável cuidado de exarar,
perpetuando assim uma das mais formosas tradições da nossa terra, ser
conhecido de toda a gente que tem pelo seu Passado o devido culto:
arquivemo-lo, por isso, também aqui,
na parte em que se refere à terra doada à velha albergaria
local, onde, já desde tão remotas eras, os pobres viandantes que por
estes sítios transitavam, encontraram sempre pão e agasalho. Foi a
leitura deste tão interessante documento, que me levou a escrever o
Auto da Rainha Santa, corporizando deste modo
a lenda, que sendo ignorada das gerações
/
80 /
presentes, o valioso estudo atrás citado veio avivar, impondo-se-nos
agora o dever de não mais a deixar cair no esquecimento.
Reza assim a parte do assento que se refere ao terreno
dado pela Rainha Santa:
...«esta terra está na Várzia de Recardaens pegada
ao comaro do Capitão João Tauares da ponte arrenda a o Hospital pello
preco que lhe parecã (?) parte do Norte com o rio e do Sul com a estrada
que vem do Sardam p.ª Recardaens e tem dizima a Deus e foi dada pella
Raynha Sãta ao Hospital da Largura do coche em que vinha de S. Thiago
pela estrada do Cruzeiro de Paredes por ser naquelle tempo melhor, e
passando pela estrada das Larangeiras defronte do dito Hospital no tempo
do estio em direitura ao campo
limpo ja dos fructos ate a estrada da Corga.»(6)
(Continua na pág. 118 −
►►►)
SOARES DA GRAÇA
|
(1)
− Esta terra esteve
muito tempo na posse da Misericórdia, e
media 170 varas de comprimento por 5,5 de largura.
(2)
−
Vid. o erudito estudo Evolução ao Culto de D. Isabel de Aragão
pelo Prof. Doutor ANTÓNIO DE VASCONCELOS.
(3)
− Vejam-se os jornais da época
e, designadamente, os locais:
«Soberania do Povo», «Independência d'Águeda» e «Grémio da Lavoura»,
este inserindo uma interessante crónica descritiva da audiência dada
pela Rainha Santa às autoridades e figuras que foram saudá-la, escrita pelo
nosso conterrâneo e erudito escritor JOAQUIM DE SOUSA BAPTISTA. Nos
jornais do Porto «Primeiro de Janeiro», «Comércio do Porto» e «Jornal de
Notícias», largas referências foram feitas a este festival e ao auto,
assim como na imprensa diária de Lisboa, por intermédio dos seus
dedicados correspondentes.
(4)
− Evolução do Culto,
ob. já cit.
(5)
− Vid. FIGANIERE, Memórias das Rainhas de Portugal.
(6)
− Veja-se o belo estudo do C. DA BORRALHA sobre o Hospital de
Águeda, in Arquivo de Aveiro, vol. XVIII, 1939.
− Outras lendas correm em diferentes terras do País, alusivas à passagem, por
elas, da Rainha Santa, A Norte de Águeda, há uma,
corrente em Arrifana de Santa Maria, segundo a qual a mãe de uma
ceguinha lhe pediu a cura de sua filha, que, tocada pelas mãos da Santa
Rainha, alcançou a vista. Diz a mesma lenda que nessa ocasião Santa
Isabel estava numa casa que servia de estalagem, e comendo uma laranja,
caiu no chão uma pevide, da qual nasceu uma laranjeira em cujos frutos
se divisavam as quinas das armas de Portugal. Vid. o Dicionário
Geográfico do P.e LUÍS CARDOSO, ed. 1747 e Vida de Santa Isabel, de
FERNANDO C. LACERDA, ed. 1735.
|