OLHANDO retrospectivamente até aos
meus tempos de gaiato, raros pontos de Aveiro, compreendidos no âmbito
do meu circunscrito «mundo» explorado, me merecem tão íntima simpatia e
me proporcionam tão vivazes e saudosas evocações como o Rossio. Vasto
campo
das minhas experiências e aventuras de tenteante descobridor das
virtualidades pessoais em germe, dos primeiros contactos reveladores
com as reacções alheias e das iniciais contrariedades de um dealbar de
vida, a urdir e a forjar com algum vislumbre de iniciativa, impulso e
responsabilidade próprios, foi a aberta e virilizante arena das minhas
disputas fraternas com os parceiros de brinquedos. Lá me despertaram,
novas e incitantes, as emulações, provei o travo da derrota e o gosto de
vencer, comecei a temperar no viver de relação o ânimo
amornecido no mimado aconchego do ambiente familiar, cimentei as primeiras
amizades.
No Rossio travei as minhas batalhas de lídimo «cagaréu», ripostando à
pedrada, por sobre o fosso do Canal Central, às provocações inocentes
dos antagonistas «ceboleiros»; desarvorei em corrimaças desordenadas,
repetidas até soltar pela boca ofegante os bofes exauridos, na guerra
das «nações», na «bandeira» ou na «barra»; ensaiei os meus incertos
pontapés, no alvorecer da investida definitiva do futebol, o jogo
avassalador que, decorrido um quarto de século, absorveria as
preferências e os entusiasmos das multidões, na sua perpétua, na sua
insaciável gula circense. Para esse palco desatravancado, franco às
traquinices do rapazio, ilha de liberdade nos
/
269 /
domínios da burguesa compostura austeramente vigiada pela férula
policial, transplantei com um grupo de camaradas constantes − já reduzido nestes cinco lustres
com algumas baixas
irremissíveis − as apaixonantes lutas de polícias e ladrões com que as
emotivas fitas em séries estimulavam a nossa avidez de pelejas, algumas
vezes menos incruentas do que as nossas intenções deixariam prever. A
nossa propensão de gosto para os fictícios perigos teatralizados
inspirava-se na intrepidez dos heróis da tela, avolumava-se nas
imaginações desproporcionadamente férteis em comparação com as exíguas
possibilidades efectivas dos protagonistas de palmo e meio, e por todo o
largo desenrolavam-se as cenas mais puerilmente terríveis, de mistério
fictício, de canibalesca crueldade fingida, de arrojada abnegação
convencional.
No Rossio, tirante o período da «Feira de Março», tão pródiga de
encantos e atractivos, era, aliás, o campo de largas fronteiras, ao
mesmo tempo isento de aperreações e ao alcance dos zelos paternais, onde
se consentia libérrima independência aos impulsos espontâneos do
irrequietismo dos filhos famílias. Era o parque infantil, sem
limitações regulamentares além das aceites pelo mútuo consenso e a geral
compreensão das conveniências da comunidade, numa época em que as
crianças não haviam merecido aos adultos a instituição de recintos
adequadamente apetrechados ao seu divertimento e exercício, mas elas
mesmas, com o próprio engenho e inventiva, com inesgotável imaginação
criadora, com o
recurso das suas intactas potencialidades, supriam sobejamente a
falta. Sobejamente, digamos, porque bastavam às suas necessidades e
planos de acção e, não raro, ultrapassavam o comedimento que aos adultos
se afigura de acatar. Travessuras de toda a casta − travessuras que não
maldades − corriam extensa gama, desde a simples variante dos jogos
tradicionais, orientada em sentido de mais irrequieta vivacidade, até às partidas mais ou menos audazes, mais ou menos
irreverentes, a qualquer morador das redondezas a quem pressentíssemos o «pelo» mais sensível e propício a eriçar com alguma
gaifona apalhaçada ou algum dichote atrevido.
O Rossio que então conheci, e tão nítido revive na minha memória. pouco
difere do actual, apenas mais limpo de ervas e cardos, mais
regularizado, emoldurado num renque de palmeiras − sucessoras mais
afortunadas de umas pobres árvores sem viço que sucessivas vereações e
as «festas da árvore» tão injustamente esquecidas e lançadas ao
ridículo, não lograram fazer vingar − e mais liberto das travessuras do rapazio. Pouco
mudou desde então. Mas nem sempre foi o mesmo.
Sem retroceder a recuadas eras geológicas, ou sequer ao menos a épocas
históricas muito longínquas, pode asseverar-se categoricamente, sem receio de desmentido de qualquer
/ 269 / espécie, que o Rossio de
Aveiro − tal como o direito romano, na
expressão picaresca que ganhou voga − começou por não existir... Bastará
remontar aos primeiros séculos da nacionalidade para, numa
reconstituição da topografia aveirense, não só verosímil mas de evidente
probabilidade, se notar a sua ausência. Mal começava então a definir-se
a expansão do pequeno povoado de salineiros e pescadores que haveria
de constituir o burgo comercial-marítimo, activo e próspero, da época
quinhentista. Terreno baixo, aluvionar, se não permanentemente
submerso, ao menos alagado nas marés altas, este trecho da povoação
lagunar só lentamente adquiriria a feição de campo e logradoiro mais ou
menos aproveitável e desaproveitado que ainda hoje lhe encontramos.
MARQUES GOMES, fundado em documentos que teve ainda a felicidade de
poder compulsar no caótico e desacautelado
arquivo municipal de há cinquenta anos, deixou a afirmação
de que não existiam na primeira metade do século XV o largo do Cojo −
chamado Praça da Princesa Amélia à data em que escreveu, e hoje quase inteiramente desaparecido sob numerosas
construções −, em grande parte a rua de José Estêvão, e as dos
Mercadores, do Tenente Resende, de João Mendonça e de Clemente de
Morais, a Praça do dr. Joaquim de Melo Freitas, o Rossio, a Praça do
Peixe e toda a restante parte baixa da freguesia de Vera-Cruz. Nessa
zona estariam então situados «os estaleiros, onde se construíam as naus,
caravelas e barcas e mais navios destinados à pesca do Banco da Terra Nova e às viagens de longo curso,
ou o ancoradouro dos pequenos batéis de barra dentro»(1).
A conjectura do benemérito e erudito escritor aveirense, baseada
certamente em fontes pouco explícitas que o induziriam em erro, carece,
segundo creio, de exactidão. Não a controverterei no todo, pois não
disponho de elementos que o permitam e antes se me afigura de aceitar
nas suas linhas gerais, mas julgo-a errónea quanto ao Rossio. Este
começou,
sem dúvida, por não existir... Mas não exageremos: já existia em
princípios do século XV e, provavelmente, nos
finais da centúria anterior. Assim se conclui das disposições
testamentárias de Afonso Domingues de Aveiro, o velho, varão de
avultados bens, cujos restos mortais jazem na capela de Santo
Ildefonso, que instituiu na Igreja de Santiago, em
Coimbra. Este abastado aveirense, que figurou corno procurador nas
cortes onde o mestre de Avis foi aclamado rei, vinculou, com efeito, às
capelas que mandou erigir na referida igreja, além de outros bens, «à
marinha do Resio».
/
271 /
O testamento de Afonso Domingues, datado de 7 de Abril de 1417,
prescreve textualmente: «Item a marinha do Resio como
iaz a vjnha do
ospital e a coirella da molher do Pousam»(2). Se havia marinha do
Resio, existia indubitavelmente o Resio, que a
identificava. Poderá objectar-se, com fundamento nas diferenças de grafia que
Resio e Rossio
representariam, porventura, locais distintos. Não me parece de admitir a
consistência de qualquer reparo formulado com essa intenção dubitativa.
A marinha do Rossio persistiu até há menos de um século, como adiante se
documentará, no local onde hoje se erguem os prédios do bairro de João
Afonso de Aveiro. Demais, segundo mostra JÚLIO DE CASTILHO(3), nas
páginas que dedica ao Rossio de Lisboa, antigamente escrevia-se ora ressio, ora
rescio ou recio. Entre outros documentos cita o contrato de
composição entre D. Diniz e o alcaide e alvazis de Lisboa, de 7 de
Agosto de 1323, o qual menciona «os outros ressios da villa», e a
Ordenação de D. Afonso V, que refere «as terras e herdades
que soyam a seer lauradas e semeadas e que som convinhavees pera dar pam e outros fruytos per que se os povos ham de manteer,
som desemparadas em ressios, sem prol e com grande damno
do povo».
Igualmente o autor da Estatística de Lisboa de 1552(4), aludindo à
fundação do Hospital de Todos os Santos, escreve de idêntica forma:
«e vendo (D. João III) como aquella parte do Ressio estava despejada e
sitio bom para fazer tal obra como está edificada». O «Livro do
Lançamento» da Câmara de Lisboa, referente ao ano de 1563, por seu
turno menciona o Arco
do Recio.
No estudo a que procede sobre a etimologia da palavra, o distinto
ulissipógrafo JÚLIO DE CASTILHO chega às seguintes conclusões, que julgo
interessante para aqui transcrever: «1.º A palavra ressio, ou recio, era
adjectivo e significava baldio: terreno ressio; 2.º Por abreviação, o
povo substituiu o substantivo, e entrou a dizer em vez de terreno ressio,
apenas ressio; assim sucedeu, por exemplo, ao vocábulo largo;
campo
largo, terreno largo, espaço largo, terreiro largo, simplificou-se em
largo, subentendendo-se um substantivo qualquer; 3.º Transformado em
rossio, e aplicado propriamente aos logradoiros junto das povoações,
fixou-se esta palavra com o sentido restrito de terreno aplicado a
certos fins».
/
272 /
De uma respeitada autoridade em matéria linguística(5) recolhi e julgo
útil citar estas passagens: ... «muitos lisboetas proferem
naturalmente o o de Rossio quase como um e surdo. É certo que se ouve
Russio, mas também é certíssimo que Ressio igualmente se ouve. Ora
essa tendência glótica fortalece a hipótese de o vocábulo actual Rossio
e o ressio (que teve, aliás, variantes) se relacionarem com o latim
residium (Cf. Cortesão)».
Resio − decerto lido como
ressio − seria apenas mais uma variante
ortográfica do mesmo vocábulo e não deveria designar local diferente do
nosso Rossio actual, pois entre os topónimos que em vários anos tenho
apontado não encontro mais do que uma só referência a outro logradoiro
público que merecesse essa qualificação − o Rossio do Duque, depois
Rossio das Carmelitas, mais tarde Terreiro das Carmelitas
e hoje, embora correspondente apenas a uma parte, Praça
do Marquês de Pombal(6).
É evidente, porém, que o Resio
de Afonso Domingues era outro muito distinto, pois naquele ponto não se
conceberia a existência de uma marinha de sal.
Mais ao diante surgiria uma nova forma ainda
− o Roxio. Quando, em 3 de Julho de 1580, durante as lutas que o Prior do Crato
sustentou a favor das suas pretensões à coroa, se estabeleceram as
disposições a tomar para a defesa de Aveiro, estatuiu-se(7): «§ q. farã hum forte de terra no roxio da villa para os espingardeiros
defenderem e desembarcarem»...
E este, sem sombra de dúvida, era o nosso Rossio.
No ponto de vista militar, acrescente-se desde já, não ficaria por este
facto o aproveitamento do espaçoso largo. Foi escolhido, no período das
invasões napoleónicas, para
acampamento de uma parcela das tropas inglesas,
desembarcadas em
Aveiro a 13 de Maio de 1809(8). Nas festas comemorativas das datas
nacionais mais solenes, depois de 1820,
para lá era conduzida uma peça de artilharia, e às vezes duas, para dar
as salvas do estilo, enquanto o batalhão de caçadores 10 e o batalhão
de milícias efectuavam evoluções ou formavam em parada. Até há uns três
lustres, aliás, serviu para campo de instrução de recrutas das unidades
aquarteladas na cidade.
/ 273 /
[Vol.
XV - N.º 60 - 1949]
A propósito do desembarque de tropas britânicas, e ainda que sem relação
com o assunto capital destas notas, ocorre-me chamar a atenção para os pesadíssimos sacrifícios que a guerra
custou então à gente das redondezas de Aveiro. Tudo se some pelas fauces insaciáveis desse monstro temeroso e indesejável; tudo se
desorganiza, e é devastado e absorvido, mesmo quando se trata de ocorrer
à subsistência de aliados. Metade dos férteis campos da região, sujeita
a profundas depredações das suas reservas e do seu potencial alimentar,
e porque o gado desaparecera inteiramente, consumido nas fartas rações
dos filhos de Albion, ficara inculta. O problema tomou aguda gravidade e
houve de fazer-se o repovoamento pecuário, insuflando estimulo à lavoura
e dando-lhe solenes garantias − talvez mais platónicas do que
concretizadas, mas, em todo o caso, expressas garantias. Demonstra-o uma
deliberação camarária, da qual passo a transcrever um elucidativo
trecho:
«Outro sim determinarão que visto ter sido necesario para o Auxilio
pronto das Tropas Britanicas e Nacionais tirar aos lavradores os gados
com que fabricavão as Terras; e estarem estas com mais de metade da sua
cultura por fazer por falta de Gados não se chegando a ver huma só junta
a trabalhar se fizesse saber por pregoens nesta cidade, e seu destrito
que esta nececidade estava acabada, e que os labradores podião pasar a
comprar novos gados para concluir as lavouras na certeza de que este
Senado e o seu Prezidente averião toda a atenção a esta tão importante e
publica nececidade unico meio de evitar a falta de vivres para ao diante
e mesmo a deminuição que a falta de lavouras viria a fazer nas Rendas
Reais, publicas, e Ecleziasticas.»(9)
Encerrado o parêntese em que nos distraiu esta digressão, volvamos ao
Rossio. Ignoro em que data começaria a
utilizar-se como logradoiro público. Creio, porém, que, conforme escrevi
noutro ensejo(10), desde a sua criação lá se efectuou a Feira de Março.
A ser verdadeira esta hipótese, como é minha convicção, e sabido que o
velho mercado anual aveirense se realizava já no reinado de D. Duarte, a
opinião de MARQUES GOMES, atrás apontada, seria desmentida por mais este
motivo. Esta discordância, claro está, não implica que atribua correspondência da área actual do Rossio com o largo então existente.
Bem ao contrário, o
meu intento é esboçar a sua evolução, embora o considere
/ 274 /
mais provecto do que deixa supor o prestimoso historiógrafo das
antiguidades locais.
Nos princípios do século XVI apresentar-se-ia o vasto campo,
presumivelmente, regularizado numa considerável extensão, pois o
pelourinho da vila, segundo se crê, foi erecto pouco depois de D. Manuel
ter concedido a Aveiro o foral novo, que é datado de 4 de Agosto de
1515. Este pelourinho − o único que a meu ver na cidade existiu, pois
não encontro memória daquele que SILVA LEAL(11) julga ter
havido no adro da igreja de S. Miguel − ficava situado à entrada do
largo, em frente da actual rua de Trindade Coelho, a qual, como se sabe,
foi denominada, por alturas do século XVII, rua de Veneza, e nos tempos
da monarquia liberal, e até há pouco no uso das pessoas mais idosas,
se chamou rua da Rainha. O sr. Luís CHAVES classifica-o entre os
pelourinhos de «coluça»(12) e ao contrário de MARQUES GOMES que o
descreve em «forma de coluna torcida, ornada de lavores, imitando assim
o estilo gótico»(13), pretende que seria não decorado e liso o fuste da
coluna. Alicerça a sua asserção num «desenho de reconstituição
conjectural», que aliás lhe não inspira inteira confiança, executado por
João Baptista Duarte Moreira, através de informações de algumas pessoas
que ainda conheceram o vetusto símbolo
da jurisdição municipal da velha vila de Aveiro. Quanto aos pormenores,
salvaguardadas as reservas com que deve apreciar-se uma reconstituição
efectuada naquelas inseguras circunstâncias, poderá fazer-se ideia pelo
desenho que reproduzo de Os Pelourinhos daquele consciencioso e operoso
escritor.
/ 275 /
O pelourinho aveirense foi demolido em 1834, segundo
as afirmações
concordantes de MARQUES GOMES e de JOSÉ FERREIRA DA CUNHA E SOUSA(14),
que era já adulto quando o destruíram, mas, infelizmente, dele nos legou
uma notícia extremamente sucinta. Nela documenta com um testemunho
incontestável o seu bom estado de conservação, o que apenas valerá como
uma nova e flagrante demonstração da animosidade votada geralmente pelos
homens do liberalismo
aos pelourinhos, nos quais encontravam materializada uma pretensa
injúria aos ideais de fraternidade humana por que haviam lutado e
sofrido. A malquerença dos aveirenses seria agravada com a repulsiva
lembrança, ainda muito viva, de o pelourinho ter sido o local indicado
para a colocação dos postes em que se expuseram as cabeças de dois
justiçados liberais − Francisco Silvério de Carvalho Magalhães Serrão
e Clemente de Morais Sarmento. O sentimento ferido por uma
contraproducente barbaridade haveria concorrido, certamente, para,
invertidos os rumos da política nacional, se descarregar a reivindicta
no inofensivo e insensível monumento.
Também no Rossio se ergueu a
forca.
Lá se realizou a última das execuções registadas na cidade, com o
enforcamento do Cospe Fora, condenado à pena de morte como autor do
assassinato de um tio, que era conhecido pela alcunha de António das Más
Horas. E, ao que parece, tristemente findou a pena capital em Aveiro,
com um erro judiciário. Qualquer dissídio surgiu entre ambos, nesses
tempos inquietos em que ainda andavam exacerbados os rancores entre
liberais e absolutistas. De permeio intrometeu-se a perfídia do capitão
Joaquim − Joaquim António Coelho de Almeida − miguelista odiento que na
desinteligência entre os dois parentes vislumbrou um ensejo para se
desembaraçar de dois adversários de ideal. Insinuou insidiosamente no
fraco espírito do Cospe Fora que o tio o deserdaria. Explorando-lhe a
cupidez, teceu, paciente e perseverante, com meditado cálculo, a teia
malfazeja. Uma manhã, o António das Más Horas, teve a última das suas
horas más. Apareceu morto à machadada, na casa do sobrinho, com quem,
apesar das desavenças, continuara a viver. As suspeitas, quase tão
claras como evidências, levaram à forca o Cospe Fora, se bem que ele se
mantivesse na mais contumaz negativa até ao último momento. Muitos anos
mais tarde o capitão Joaquim enlouqueceu. Assaltado por visões
torturantes, roído de
/
276 /
remorsos, vivia na obsessão do trágico fim do Cospe Fora. E pedia
perdão, contrito e aterrado: − «Estás inocente − bradava −
Quem mandou
matar o António das Más Horas,
fui eu»(15).
No século XVII, provavelmente no ano de 1607(16), edificou-se
no Rossio
a capela de S. João, modesto templo desprovido de qualquer interesse
arquitectónico e de recheio artístico digno de nota. Nas Informações
Paroquiais de 1721(17), atribui-se-lhe, sem rigores de data que obriguem
a revisão, uma maior antiguidade e, bem assim, a invocação de S. Pedro
Gonçalves, padroeiro dos pescadores. Enumerando as capelas existentes na
freguesia de Nossa Senhora da Apresentação indicava, com efeito, o padre
cura MANUEL SIMÕES MANSO
...«hũa com o titollo de S.
P.º goncaluez no Sitio, do Roxio desta V.ª
de Aur.º a qual for Eréta pelIos homenz Maritimoz e pescadores e hé Izenta hé Sogeita a S. João de Latrão em Roma tem Juiz priuativo
foy
Ereta no tempo do conde de Pennaguião alcayde mor
q. foy da çid.e do Porto Cuia tradição tenho de hũa Sn.ra q. me ueyo a
maõ da Sn.ra da Alegria a qual não tinha prinçipio nem fim e por tradiçaõ
Se prezume Ser Ereta á çento e Seçenta annos pouco menos.»
Como de S. João se tornou conhecida, porém, e assim
lhe chamava já CRISTÓVÃO DE PINHO QUEIMADO, em 1687. Com essa designação
permaneceu até ao corrente século. Passou o nome do Santo Percursor a
andar ligado ao do largo − Rossio de S. João, para distinguir,
porventura, do Rossio das Carmelitas − e o mesmo desafogado campo a ser
escolhido para os esplendorosos festejos anuais em honra, digamos, do seu patrono. Realizavam-se outrora, segundo o testemunho daquele
memorialista aveirense do século de seiscentos, «luzidas cavalhadas, onde
apareciam e ainda agora aparecem os mais ricos telizes primorosamente
bordados com bordaduras de ouro e prata, e sedas de várias cores e
veludos ricos de terciopelo, com as suas armas brasonadas e divisadas,
trajando (os nobres de Aveiro e Esgueira) os seus mais ricos vestidos
de gala e plumas; e depois de praticarem com a maior destreza e a mais
brilhante mestria diferentes jogos de cavalaria, correm a sina pela
vila, e acabada esta vistosa função
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277 /
seguem à estacada dos touros». Celebrações aristocráticas, movimentadas
e espectaculares, habitualmente rematadas por «mui vistosos jogos de
artifício com figuras como de bonifrates, de mui engenhosas invenções»,
foram decaindo com o tempo, desertaram depois do lugar tradicional, e
reduzem-se hoje a umas funçanatas pelintras em torno de qualquer
taberna, servindo de isco publicitário para a venda de qualquer rascante
manhoso.
Nesta capela de S. João − registe-se desde já essa recordação macabra
−
estiveram depositados os cadáveres, mutilados e nus, dos Craveiros, das
Quintãs. Eram malquistos da gente do lugar, estes Craveiros, talvez
valentões e prepotentes, e, além do mais, miguelistas inflamados. Numa
ocasião, o povo amotinou-se contra os seus desmandos. As
tropas − tropas liberais, na altura − marcharam para os capturar. Bateram-se destemidamente, sustentando duas ou três investidas das
forças. Por fim, foram colhidos de surpresa, vilmente denunciados por um
compadre, em casa de quem se haviam refugiado numa noite tempestuosa. Tentaram ainda resistir, mas a chuva humedecera-lhes os cartuchos e
destruíra todas as possibilidades de enfrentarem os atacantes. Traídos
pela vilania do hospedeiro, indefesos perante a sanha implacável dos
liberais fortemente armados, sucumbiram cruelmente varados a tiro.
Conta-se que, quando já os cadáveres se encontravam na capela de S.
João, um liberal exaltado «enterrou um punhal no corpo nu de um dos
Craveiros e o levou à boca para beber as gotas de sangue que lhe caíssem
sobre a língua»(18). A estes excessos arrepiantes levavam nessa
época os
ódios políticos.
Voltemos, porém, propriamente ao Rossio. O sítio do
Pelourinho, que atrás localizei, foi destinado durante largo
tempo ao
mercado local do peixe. Um acórdão da Câmara transferiu-o, a
partir de 20 de Maio de 1816, para o «caizinho» − correspondente mais
ou menos à margem norte do canal que hoje serve a Praça do Peixe − e
estabeleceu «que no esteiro do mesmo sitio do caizinho portafsem os
barcos do peixe e fardinha (então, como agora, uma coisa era peixe e
outra muito diferente a sardinha... e, porventura, o bacalhau!) não se
permitindo de forma alguma qualquer pescaria no Cais (esta designação
reservava-se honorificamente ao cais daquele a que chamamos o Canal
Central) e roxio com a pena de quinhentos reis a cada pescadeira que
vender peixe fora do dito sitio do caizinho, e aos barqueiros e
Mercanteis que se acharem fora do sitio do caizinho dois mil reis»(19).
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278 /
Também desde antigos tempos esteve instalado naquele largo um
matadouro
público. Em Março de 1817, o guarda-mor de saúde expôs ponderadamente à municipalidade os prejuízos que adviriam para a cidade, no ponto de
vista sanitário, de se conservar o açougue naquele local. Pensava a
edilidade em adaptar a esse fim um prédio contíguo ao que vinha servindo
há muito para a matança do gado. Uma nova
construção equivaleria a estabelecê-lo, num ponto que àquele
funcionário se afigurava contra-indicado, com um carácter de
perduração que não havia a recear no pardieiro arruinado
do açougue velho. Os médicos Luís Cipriano e José Pereira da Cunha,
consultados sobre o problema, formularam um parecer diferente, de mais
transigente elasticidade. Não dispondo a Câmara, para tal objecto, de
ponto mais adequado na parte sul da cidade, poderia aquele utilizar-se,
desde que se respeitassem as convenientes regras higiénicas, e até achavam o lugar bastante
«apto para a limpeza, pela proximidade
das águas e pela facilidade de inspecção dos Almotacés». O município,
escudado na abalizada opinião dos conceituados facultativos, mandou,
pois, construir o novo matadouro, com carácter provisório − o provisório
tão de gosto nacional, as mais dás vezes de duração longamente estirada.
Para uma estimativa sem excessivas preocupações de exactidão e pormenor,
far-se-á uma satisfatória ideia das condições, mínimas embora, ao tempo
exigidas para uma instalação desta natureza, pelos seguintes termos, que
textualmente reproduzo da respectiva deliberação camarária(20):
...«cuja caza nova determinarão tivefse de um pavimento de Nascente a
Poente sefsenta palmos, e de Norte a Sul se regulafse pela largura do
Matadouro velho ahi proximo, com altura suficiente para se dependurarem
nas
alquitraves as rezes, com hum alicerce de pedra, e cal levantado á
superficie da terra dois palmos, e de outros
dois palmos de largura, sendo dahi para sima pregado,
digo, para sima de madeira pregada á cavilha, como os Palheiros do mar,
com telhado, e o pavimento calcado e argamassado com um boraco para a
parte do Esteiro, por onde saiao as aguas quando se lavar, com huma
porta voltada para o sul de grades com largura suficiente.»
E não esqueceu a vereação, postas estas regras para a
construção a fazer, as recomendações dos médicos, prescrevendo
taxativamente as normas de limpeza a observar pelo arrendatário e
marchantes, e estipulando a multa de seis mil
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279 /
reis «por qualquer vez que deixarem ou de tirar para fora os
estrumes ou de lavar a caza das reliquias». Relíquias, entende-se aqui, obviamente, no sentido de sobejos ou resíduos,
que, se outras fossem, não haveria, decerto, necessidade de
as mandar limpar. Não seria precisa a lembrança, quanto mais uma
determinação coerciva!... E já que estamos com a mão na massa,
recorde-se que a casa do matadouro velho, atrás referido, pertencia à
confraria do Santíssimo Sacramento da freguesia de Nossa Senhora da
Apresentação, ainda
então existente.
No mesmo ano de 1817, mercê de uma concessão alcançada por provisão de
17 de Junho de 1788, estabeleceu a Câmara uma
feira mensal, no dia 7, a
realizar no Rossio, escolhendo, no entanto, o Cojo para o negócio de
gados e o Alboi para o das madeiras. Esta feira pouca concorrência
atraiu, apesar de ter sido cometido ao procurador do concelho
e ao alcaide o encargo de «tomar conta do Povo deste Termo
que comparecefse e do que faltafse, para depois em conferencia da Camara serem condenados». Condenados os
faltosos,
evidentemente, pois, a interpretar-se doutro modo, a deliberação
municipal equivaleria a... prender por ter cão
e por não o ter! O novo mercado, falho de vitalidade desde
a nascença, foi decaindo progressivamente. Doze anos mais
tarde procurou o município insuflar-lhe revigorador alento,
transferindo-o para o dia 30, pois confiava em que os feirantes
do mercado realizado na véspera, na Palhaça, se tentassem
a parar e viessem reanimá-lo. As louváveis intenções da
vereação malograram-se outra vez, pois em 1831 ela própria,
respondendo a uma representação da Câmara de Esgueira,
em que esta solicitava ao soberano se não efectuasse a feira
da cidade no mês de Setembro, visto coincidir com um mercado desde
tempos imemoriais realizado na sua vila, confessava pungentemente o estado de definhamento a que declinara. Não
causaria prejuízo algum à dos vizinhos esgueirenses «athe
por ser hum Feirote ahonde apenas se vende pano de linho que se não
costuma vender no mercado dos suplicantes».
E o «feirote», de proporções cada vez mais reduzidas, acabou
por extinguir-se. Não foi mais feliz a tentativa anos depois
promovida por Francisco António do Vale Guimarães na malhada dos Santos
Mártires e, falhada ainda essa, a Associação Comercial, em Março de
1899, «demonstrando as vantagens da creação de um mercado mensal em
Aveiro, para
artigos que não constituam o negócio habitual e diário do
concelho, pede, a bem dos interesses locais» que a Câmara tome essa
providência. A edilidade(21), reconhecendo o interesse
/
280 / da sugestão, deliberou realmenfe estabelecer esse mercado
em 25 de cada mês, e precisamente no Rossia, salvo em Março. Nesse mês, em consequência da feira anual, deslocar-se-ia para as ruas da Alfândega e
das Barcas, e para os Santos Mártires, já mais a desamão. Esse mercado.
principiou logo em 25 de Abril, mas transferir-se-ia, passados anos,
para o dia 28, em que persistiu até hoje, embora há muito arredado do
Rossio. Neste local fixou-se todavia, haverá uma vintena, a
«feira das cebolas», cuja duração se prolonga por toda
a segunda quinzena de Setembro. Fora antecedentemente na antiga praça do Comércio, local em
que, por sua privilegiada situação cêntrica e conspícua hierarquia
citadina, se considerou destoante e degradante expor à venda as plebeias
rimas de cambos e réstias. De futuro terá um lugar mais de harmonia com
a sua feição: o largo do Cojo, contíguo ao novo mercado municipal.
Assim decidiu a Câmara Municipal, avisadamente, nos começos do corrente
ano.
Antes de atingida a metade do século passado
[séc. XIX], a municipalidade começou
a dispensar certas atenções e pequenos cuidados ao arranjo e decência
do Rossio. Os bons burgueses da Praça e dos Balcões estendiam até lá os
seus pausados e graves passeios, a desmoer alguma refeição mais pesada,
a dilatar ao fresco ar salino os pulmões mirrados no ambiente confinado
e soturno das bafientas baiucas, a discorrer ponderadamente sobre algum
insólito acontecimento
local, ou qualquer palpitante novidade, fresca de apenas
poucas dias, da alta, longínqua e mírifica capital do reino. Gente de
relevo e algum contemplativo vate romântico vadiava os ócios, nos fins
das tardes estivais, até ao miradouro da ponte de S. João, buscando o
refrigério das brisas marinhas e enlevando os olhos na plácida
paisagem lagunar − ampla, chã, apaziguadora.
|
A sua própria experiência
pessoal de assíduos frequentadores do espaçoso
campo, conduziu os zelosos vereadores
a considerar o assunto atentamente. Assim, numa das «Posturas para regular a polícia e bom regimen da Cidade de
Aveiro»,
aprovadas em sessão municipal de 13 de Maio
de 1843, foi incluída uma ousada, uma desempoeirada determinação,
proibindo... «apanhar minhoca, cabando a terra no Rossio». Sobejamente se justificava, aliás, a edificante
providência municipal, até por uma razão a que hoje chamaríamos de
natureza turística. O estabelecimento da época com requisitos de higiene
e conforto satisfatórios para receber, sem desprimor para os brios do
bairrismo aveirense,
hóspedes de elevada condição, nacionais e estrangeiros, encontrava-se
exactamente no nosso largo. O Príncipe LICHNOWSKY, descrevendo a sua
passagem por Aveiro,
/ 282 / fornece esta esclarecedora informação(22): ...«paramos junto a uma
hospedaria, onde fomos recebidos, chamada a Estalagem da Felícia, na
praça que fica fora da cidade e defronte ao cais». Ora esta estalagem
ficava no ponto onde presentemente se encontra a residência da família
Pessoa. Mesquinha coisa seria, na verdade, consentir um espectáculo tão
retrógrado e desagradável como o apanhar minhocas, aos olhares
indiscretos dos eventuais visitantes...
O velho logradoiro dentro em breve sofreria uma profunda e valorizadora
modificação. A cidade começara a beneficiar de diversos
melhoramentos, a partir, sobretudo, da
profícua administração de Domingos Carrancho. Umas obras determinam
outras; uma aspiração realizada é a mola que outra vem impelir. Estava
arrumado, pelo menos no papel, o magno assunto das minhocas... Seguir-se-ia avante. A poente do Rossio, impedindo a
sua desejada expansão e regularização, permanecia a
marinha de Afonso
Domingues,
o velho − o leitor chamar-lhe-ia, certamente, «o rico» se
tivesse ocasião de avaliar à soma excepcional de bens que
deixou mencionada em testamento. O município, examinando a conveniência de expropriar a estorvante salina, obstáculo
permanente à ampliação do largo − atravancado,
demais, pela desgraciosa capela de S. João − decidiu reunir
extraordinariamente em 13 de Agosto de 1851, para tratar da resolução
do importante problema urbanístico. Com a edilidade, que não quis
acarretar sobre seus próprios ombros
apenas com a responsabilidade de tão grave deliberação, foram chamados a
pronunciar-se e a emitir o seu experimentado e judicioso parecer os
cidadãos do concelho «que costumavam servir na governança delle». O
presidente da Câmara, António de Sá Barreto de Eça Figueiredo e Noronha,
expôs os fins da convocação, observando que há muito unanimemente se
reconhecia a vantagem de ser adquirida pelo município a marinha em
questão, a fim de o respectivo terreno ser incorporado no campo do
Rossio, tornando-o mais amplo e regular, conferindo-lhe melhores
requisitos de sanidade e aformoseando-o. A aconselhar a compra, surgia
naquele momento uma oportuna e favorável circunstância: proceder-se
então à limpeza dos lodos do canal, até às Pirâmides, e poderem
aproveitar-se no aterro da marinha, desonerando, assim, a Câmara de um
avultado encargo. Os
cofres municipais, porém, na sua tradicional e aperreante penúria,
ainda mesmo aliviados da despesa com os aterros, não dispunham do
quantitativo necessário para efectivar a
/
283 /
transacção. E por esse motivo, ocorrera-lhe alienar um
faqueiro, dois cálices e uma patena de prata «próprios do município, tanto por ser trastes inuteis,
atendendo-se a que
já se não carefse delles para o fim a que heram destinados,
como tão bem para se evitar que em alguma ocazião eretica
dezaparefsão». Não será fácil descobrir agora a que falta de
ortodoxia quereria referir-se o cauto presidente da municipalidade, mas não aludiria, decerto, às «heresias» do género
praticadas pelas tropas napoleónicas no tempo das invasões. Porventura recearia antes que algum luso compatriota, menos
aferrado a escrupulizar nos momentos de tentação, se deixasse imbuir
pelo espírito de macaquear o gaulês rapinante.
Sem discrepância de que nos pudesse chegar algum eco
remoto, pouco provável, aliás, em assunto que reuniria
gregos e troianos num uniforme sufrágio, a iniciativa do
presidente foi aprovada e, acto contínuo, deliberou-se cumprir as formalidades necessárias para negociar a compra da
marinha. Assim o documenta a seguinte transcrição integral da
Acta da Secção Extraordinária de
13 de Agosto de 1851
«Anno do Nascimento de Nofso
Senhor Jezus Christo de mil oito centos e
sinquenta e hum e aos treze dias do mes de Agosto do dito anno nesta
cidade de Aveiro e cazas da Camara Municipal da mesma onde se achavão
prezentes o Prezidente, Fiscal e Vereadores abaixo asignados em vereação extraordinaria que fazião, sendo tão bem prezentes os
Cidadaos deste concelho que costumão servir na governança delle, com vocados pela Camara para serem consultados sobre o objecto desta secção,
e
egoalmente abaixo afsignados ahi declarando-a elle Presidente aberta, pafsou a fazer uma breue exposiçaõ do fim da prezente
Reonião que he o seguinte, a saber: −
Que sendo de muito tempo reconhecida por todos os abitantes desta Cidade
a conveniencia de se adquirir por parte do Município a marinha
denominada − Rocia −
sita junto do campo do Rocio, para ser o tereno dela
onido e imcorporado no mesmo campo afim de o tornar maior e mais
regular, com inquestionavel vantagem para o aformoziamento da Cidade e
para a saude publica de seus abitantes; havia prezentemente hum motivo
que fazia dezejar se pasase sem demora a efectuar a compra
desta propriadade, qual hera poder-se entulhar a marinha com a lama ou lodo extrahida do cais athe as piramadas
que se acha ao longo do mesmo cais, e que pelo Governo
Civil vai ser dali removida podendo sello para a Marinha
/ 284 /
de que se trata, a qual por esta forma ficava entulhada sem a Camara
fazer despeza e ao mesmo tempo vinha a despeza feita pela repartição das
obras publicas do Distrito a ser muito menor do que sera a ter de
removerse a sobre dita lama para qualquer outro lucal, que. não seja a
mensionada Marinha. Que por estas e outras razões a Camara não exzitaria
em fazer a compra aludida se em cofre tivefse os fundos precizos; mas
que não os tendo e havendose lembrado de vender para este fim, hum
faqueiro, dous calis e hua patena de prata proprios do Municipio, tanto
por ser trastes inuteis atendendo-se a que já se não carefse delles para
o fim a que heram destinados, como tão bem para se evitar que em alguma
ocazião eretica dezaparefsão; entendera toda avia dever consultar as
pessoas ou Cidadaos abaixo afsignados e que prezentes se achavão sobre
se afsentavam ou não em que se vendefsem estes objectos para o seu
preduto servir de ajuda a compra de que se trata. Entrando em discofsão
esta porposta, falando sobre o objecto della varios dos que se achavão
prezentes por todos foi aprovada, comjuntamente com
esta Camara. Em virtude do que deliberou e mandou esta dita Camara que
esta Secção fosse por copia remetida ao Excelentissimo Governador do
Distrito para ser submetida a aprovação do Concelho de Distrito, nos
termos do artigo cento e vinte e quatro do Codigo Administrativo e que
sendo aprovado ficafse desde ja authorizada a Camara para vender os
ditos objectos de prata so depois do contracto pactuado da mensionada
marinha fazendo entrar no cofre o produto daquella venda e de contrair
um emprestimo com o juro legal para contratar a compra da mesma marinha
pelo melhor modo possivel, que he o seu verdadeiro valor, ou a um
cento, sendo necefsario, o preço legal da expropriação. E de tudo para
constar mandarão labrar a prezente acta que vão asignar depois de lhe ser lida por mim
Jose Venancio da Silva Guimaraens Escrivão da Camara
que o Escrevi. Noronha, Presid.e; Mesquita, Fiscal; Simões, Santos. João
de Mello Freitas; João Ant.ºo de Moraes, Antonio Pereira da Cunha, Jose
Antonio GIz
Lomba, Francisco Joze de Oliveira Queiroz, Serafim Ant.º de Castro, Pedro José da Naya, Bento
Aug.to de Moraes Sarmento,
Luiz Cypriano Coelho de Mag.es, Bento José Rodrigues Xavier de
Magalhães, Joze Antonio de Rezende, João Mara Regalla.»
Estranhar-se-á, porventura, que a Câmara contasse entre
os seus bens, não diremos já a patena e os dois cálices, pois
/
285 /
sem esforço se lhe encontrará reais motivos de utilidade,
recordando que ao municipio competia organizar as festividades de Corpus Christi e Santa Joana Princesa, mas um
imprevisto e quase desconcertante faqueiro. Julgo conveniente elucidar que na ala norte dos Paços do Concelho se
reservavam algumas dependências à chamada «Aposentadoria». Nela se alojou, por exemplo, o marechal Beresford,
nos dias 29 e 30 de Maio de 1819, numa visita de inspecção
ao regimento de milícias de Aveiro.
E já que vem a talho de foice acrescente-se que a cidade
caprichou em acolher o categorizado hóspede com a máxima
pompa e largueza. As despesas suportadas pelo município para receber
com honras excepcionais senão com magnificência, a quem exercia no país um autêntico consulado
− e,
plausivelmente, mais por obrigação protocolar do que por
espontâneo impulso de simpatia − ascenderam à vultuosa
soma de 219.870 reis. Por menos de dois tantos comprava-se nesses bons tempos, como se viu, uma rendosa marinha
de sal!
A existência do faqueiro de prata entre os bens do concelho, despropositada na aparência em relação aos costumes
dos nossos dias, fica, assim, justificada. Mas, porque vamos
em maré de diversões, juntemos mais uma conta ao rosário. Divagação
atrai divagação, não porventura, com o matemático rigor da lei newtoniana, mas decerto com a persistente
teimosia da cereja arrancada a um emaranhado de cerejas.
Não tardaremos, todavia, a retomar o caminho recto, findo
um novo devaneio pelas arcas e armários das arrecadações
municipais. De lá foram retiradas todas as peças de prata,
em 2 de Março de 1850, para o ourives da especialidade José Maria
Ribeiro proceder à respectiva pesagem e avaliação. E
(23)
...«por elle dito José Maria Ribeiro foram efectivamente pezados os
seguintes objectos: Primeiro. Dous
pares de castifsais grandes pezando nove marcos e quinze
oitavas a preço de sem reis a outava Importão em sinquenta e nove mil sem reis. Segundo. Hum par de
castifsais mais pequenos pezando tres marcos e quatorze
oitavas a preço de sem reis a oitava importão em vinte
e tres mil e oito centos reis. Terceiro. Duas Barquinhas
com suas espevitadeiras pezando dois marcos menos seis
oitavas importão doze mil e duzentos reis. Quarto.
Huma duzia de garfos e outra de colheres de sopa
pezando sete marcos e meio e trinta e hua oitavas e meia
importando sinquenta e hum mil sento e sincoenta. −
/
286 /
Quinto. Doze facas pezando seus cabos digo Facas calculando-se valer
cada huma mil e quatrocentos importão todas quatorze mil digo todas
dezafseis mil oito centos. Seista − Huma colher de sopa pezando secenta
e tres oitavas importa em seis mil e tresentos. Setima − Hum trinxador e faca
de trinxar pezando quarenta oitavas importa quatro mil reis. Oitava.
Huma duzia de colheres do Xa pezando quarenta oito oitavas importa
quatro mil e oito centos. Nona. Dous calis e hua patena pezando tres marcos e vinte e huma oitavas que importa vinte e hum mil e
trezentos. Defsimo. Huma escrevaninha com todas as suas pertenças
pezando honze marcos sincuenta tres oitavas e meia importa setenta e
seis mil sete centos e sincuenta. E não havendo mais objectos de prata
pertencentes a esta Camara se deu este acto por findo cujas declaracoens
vai afsignar o referido ourives
Jose Maria Ribeiro.»
Não era um tesouro, mas, vamos indo, não
poderia considerar-se um valor desprezível. Talvez algum leitor curioso repute de
algum interesse calcular ao certo, pelas unidades de peso hoje em uso,
o montante de todas aquelas peças de prata. Para prevenir a hipótese e
poupar-lhe trabalho, aqui lhe deixo as equivalências, a título de
reparação pelo estopante esforço de me ter acompanhado neste arrolar de
ninharias até esta altura. Oitava chamava-se ao peso correspondente a um
oitavo de onça; onça era um oitavo de marco; e este, usado especialmente
para pesar oiro e prata, representava, por seu turno, metade de um
arrátel. Ora o arrátel, sabe-o o leitor tão bem como eu, equivale a 459
gramas, e o marco, como acima se verifica, tinha 64 oitavas. Não
chegaria, portanto, contando com os cabos das facas, cujo peso não foi
mencionado, a um resultado muito distante dos dez quilos de prata.
Encerre-se, porém, a acidental digressão, para regressar à
compra da
marinha Rossia, de que nos desviámos. Feche-se o parêntese.
O Conselho de Distrito, conforme lhe fora solicitado, concedeu
autorização à Câmara para proceder à venda do faqueiro, dos dois cálices
e da patena de prata e à aquisição
da marinha. Efectuadas, em seguida, diversas negociações para obter um
preço compatível com as possibilidades financeiras do município, os
proprietários da Rossia propuseram
a transacção pela quantia de quatrocentos mil reis, a pronto pagamento.
Este preço, aliás, não era considerado excessivo, atendendo ao
rendimento da propriedade e ao facto de haver quem se dispusesse a
comprá-la por essa importância. Foi convidado a comparecer na sala das
sessões o principal proprietário da marinha, Ricardo da Maia Romão, na
intenção
/
287 /
de procurar movê-lo a uma diminuição do preço proposto,
mas resultaram infrutíferos todos os esforços feitos nesse
sentido. O recurso à expropriação pareceu contra-indicado pela
morosidade e dispêndio que acarretava e, por esses
motivos,(24)
...«foi deliberado que se efetuafse a compra nos termos e nas condiçoens expendidas e que para fazer fafse a esta despeza
votavão o preduto do faqueiro, cuja venda
já estava deliberada, e poderá calcular-se em cento e quatro mil reis (afinal, um tanto mais do que o valor da
avaliação); mais o preduto de um sino quebrado que foi vendido pela
quantia de vinte e seis mil trezentos e
setenta e sinco; mais o preduto dos fragmentos de hum
altar vendido por doze mil reis; e para o resto que falta
será este pago pelos predutos da receita do Orçamento
da Camara; e que no caso desta quantia fazer falta para
as despezas para que está votada, sera prehenchida pelo
Excefso da receita que necefsariamente ha de haver
muito breve, proveniente do Real imposto sobre o
Vinho Excefso mais que provavel em comsecoencia da
maior abondancia da profsima colheita, que não podia
calcular-se na epoca em que se fez o Orçamento. No
cazo, porem, que tal aumento se não verifique a Camara
quando necefsario for, votará os meios necefsarios.»
Efectuou-se, assim, a compra. Somente não pôde a
municipalidade aceitar a cláusula do pronto pagamento.
Nem mesmo a cobrança do imposto sobre o vinho viria a
atingir as previsões optimistas que um ano de fartura fizera
pressupor. Daí resultou apenas no ano imediato se acabarem de liquidar os encargos da compra. O orçamento
para 1852-1853 incluía ainda a verba de 49.000 reis com a
seguinte rubrica: «Para acabar de pagar a marinha Roxia»;
e, numa chamada, esclarecia: «E a Marinha junto ao Campo
do Rocio de S. João, cuja compra pactuou a Camara transacta». Foi orçada uma outra verba de 33.600 reis
«para siza
da mesma Escriptura, e conselhos de família necefsarios para
se vender a parte della (marinha) que pertence a orfaoos».
Uma nota elucidativa. acrescentava que «alguns dos donos
da referida marinha são orfaons e por ifso não podem alienar
sem consentimenio do Conselho de familia que hade ser pago
por esta Camara, a qual com o interessado o requereo».
A aquisição efectuou-se, pois, com todas as formalidades.
E calcular-se-ia que a Câmara, solícita e empenhada no
/ 288 / aformoseamento do largo, se lançaria à obra com afã, sem quebra de
entusiasmo nem solução de continuidade. Vai certa diferença entre o querer e o poder. Estirados anos demorou o aterro da
marinha − ainda estava por terminar em fins
de 1875 − apesar do aproveitamento das lamas resultantes da limpeza do
canal, que animou a abreviar a sua aquisição. Caminhava-se devagar
nesses invejáveis tempos, ronceiros e calmos.
Numa memória já atrás citada, devida à pena de quem ainda conheceu a
marinha em plena laboração, encontramos
confirmada essa longa demora e algumas informações que permitem uma
reconstituição mais exacta do local(25): «Levou anos a aterrar; e
enquanto se ia aterrando, pela Repartição de Obras Públicas foi aterrada
a parte do esteiro da mesma
Praça (do Peixe) compreendida entre o ponto onde ele hoje finda e as
proximidades da casa da alquilaria que naquele tempo pertencia a um
negociante por nome José Lourenço Pereira Branco... Cumpre notar que o
esteiro da Praça do Peixe só tinha cortinas de pedra pelo lado nascente,
e que pelo lado do poente era ladeado por um muro de torrão e lama que
servia principalmente para fechar a marinha e que partia próximo da
quina da sobredita casa, em direcção ao esteiro de S. Roque, seguindo
depois até à ponte, de modo que quem quisesse ir da Praça do Peixe à
ponte tinha de dar a volta pelo Rossio.»
O aterramento da marinha determinou a construção do cais do lado poente,
e a seguir que se traçasse a rua da praça para a ponte. Aí edificaram os
primeiros prédios António Pereira Júnior, um amplo armazém, e Francisco
António do
Vale Guimarães, umas casas de habitação. Mas, aparte estas edificações,
o largo, só lentamente ampliado, permaneceu como pouco mais de um chão
raso, desobstruído, ou, como dizia com mais propriedade e vigor o
cronista do século de quinhentos na Estatística de Lisboa, quase
inteiramente «despejado» na sua parte nova. No mês de Janeiro de 1865,
porém, o dr. Bento de Magalhães apresentou um requerimento à Câmara
salientando a falta de casas com que especialmente se debatia a classe piscatória. No respectivo bairro, o mais
denso e o mais genuinamente aveirense, havia moradias de capacidade
manifestamente diminuta, onde se aglomeravam famílias numerosas em lamentáveis condições. Sugeria, por
isso, que o mesmo bairro fosse acrescentado com a construção de novas
habitações no terreno 'municipal alcançado à custa da marinha Rossia.
/ 289 /
[Vol. XV -
n.º 60 - 1949]
A Câmara reconheceu a falta de casas com que particularmente era
afectada a classe piscatória. O terreno da marinha, pela proximidade do
respectivo bairro, pareceu-lhe, de facto, o mais adequado para alargá-lo.
Não só fora esse um dos fins que a municipalidade visara ao comprar o
mesmo terreno, mas também não podia menosprezar o facto de resultarem da
abertura de novas ruas e do erguer de novas edificações, o aumento da
cidade e, paralelamente, o dos réditos camarários. Deliberou, por
conseguinte, «que se mandasse sem demora proceder ao estudo do terreno
da marinha − Rocia −, e ao traçado das ruas que elle comportar, sem prejuiso do uso publico e
aformoseamento da cidade, e que a parte destinada para edificações se dê
de aforamento em hasta publica em glebas iguais; procedendo para tais
aforamentos às competentes authorisações e formalidades legais, e sendo
aquelles traçados e planos previamente examinados pela Camara»(26).
Entretanto, o município, julgando necessário ao desafrontamento do
Rossio expropriar e demolir um arruinado barracão que Manuel José Mendes
Leite possuíra junto ao cais e pouco antes vendera a António Pereira
Júnior, decidiu que se procedesse à aquisição desse inestético armazém,
«fazendo-se constar ao possuidor, inquilino da mesma municipalidade, que
ela resolve advi-lo em beneficio publico, pagando-lhe o preço porque o
tiver vendido»(27). Adquiriu-o, na verdade, pela quantia de 48.000
reis, satisfeita a pronto, e promoveu a imediata demolição e a venda em
hasta pública dos materiais aproveitáveis.
Em Setembro de 1869 foi apresentado à Câmara um requerimento de José
Leite Ribeiro, solicitando, pela primeira vez, a edificação com carácter
permanente, no largo recentemente ampliado, de uma
praça de toiros. Não
encontrei elementos que permitam concluir se a petição foi ou não
deferida. Antes, porém, da construção da praça de «pedra e cal» que
pertenceu a José Joaquim de Oliveira Vinagre − ainda na memória de
muitos aveirenses de hoje − realizaram-se no Rossio sensacionais
corridas. De duas delas, desempenhadas por curiosos em benefício do
Asilo de José Estêvão, conforme a qualificação dos cartazes
anunciadores, em 16 e 19 de Setembro de 1875, tenho notícia.
Dirigiu-as o marquês de Castelo Melhor, figurando como cavaleiros o
marquês de Belas, José Ferreira Pinto de Avilez e Gaspar de Castro e
Lemos. Foram bandarilheiros Domingos António Pereira, Diogo e Rafael de
Pina Manique, o visconde da
Graça e Pedro António de Bitencourt Raposo, e moços de /
290 /
forcado D. Alexandre Saldanha da Gama, António de Velez Caldeira, Alfredo Tinoco da Silva, Eduardo e Inácio Rebelo de Andrade,
Fernando da Silva Pereira, Rafael Lopes da Mota e João Meleças. Como
«andarilhos» mencionava o programa Alberto Catalá e Alberto Leite
Ribeiro. Os touros eram de José da Mota Gaspar e os preços os seguintes:
camarotes, 6.000 reis; sombra, 700 reis; sol, 300 reis.
As «monas» foram oferecidas pelas senhoras da sociedade aveirense: D.
Carlota Albora de Quiroga, D. Sofia Ferreira de Castro, D. Maria Bárbara
Rangel de Quadros e Garcia, D. Emília Tíneo do Amaral Osório, D. Rita
de Miranda Coelho de Magalhães, D. Eduarda Augusta do Amaral Osório, D.
Doroteia Coelho de Magalhães, D. Laura e D. Fernanda do Amaral Osório e Catalá. Enfim, uma tourada de aristocratas e uma luzida festa mundana
com fins beneficentes, que reuniu os mais distintos elementos da alta
roda local.
A praça do José Joaquim Vinagre só veio a construir-se
em 1876, e perdurou durante quase um quarto de século. Observe-se, no
entanto, que não foi unânime a edilidade ao permitir a construção. O
vice-presidente, Jerónimo Fernandes da Silva, assinou vencido. Suponho
que o não movessem na sua oposição quaisquer razões de animosidade às
touradas, mas antes o desejo de conservar o Rossio desafrontado. Essa
razão havia de impor-se mais tarde à decisão dos vereadores. Perante a
necessidade de alargar e regularizar o local da «Feira de Março», então
no período de máximo esplendor, em Fevereiro de 1900 o município pediu
autorização ao governo para adquirir aquela edificação por um conto e
duzentos mil reis, quantia acordada com o respectivo proprietário. A escritura de compra lavrou-se cerca
de três meses mais tarde e os materiais provenientes da demolição foram,
como habitualmente, arrematados em hasta pública.
Um ano depois, Domingos João
dos Reis requereu
licença para construir uma praça de madeira e, embora o seu pedido não
fosse dessa vez deferido, acabou por alcançar o seu intento. Nessa
praça, e noutra de menores dimensões que se lhe sucedeu, organizaram-se
numerosas touradas e garraiadas, até que as inclinações do público
começaram a orientar-se em diferentes sentidos e a «afición»
tauromáquica se reduziu até quase extinguir-se. Os touros em Aveiro não passam hoje de
uma recordação para uma pequena parcela da população e de uma saudade
para alguns raros dos antigos amadores. Recordarei, entre todas, apenas
uma tourada promovida em 30 de Agosto de 1908 pelo
Clube Mário Duarte.
Merece ser assinalada pela circunstância especial de nela ter
participado a «cuadrilla de niños sevillanos», com os dois
/ 291 /
jovens e esperançosos «diestros» Limeño e Gallito, o último
dos quais viria a consagrar-se como o maior toureiro do seu tempo. Nos
anais tauromáquicos da cidade a passagem do famoso espada marca uma data
de relevância, um culminante acontecimento da perdida tradição toureira.
|
Da esquerda para a direita - 1.º plano: Firmino Picado, João Joaquim
Gonçalves, Aparício Miranda e Raul Ferreira de Matos; 2.º plano: Lino
Marques, Francisco Ferreira da Encarnação, Alberto Azevedo, Gallito, EI
Chicorrito e Limeña; 3.º plano: Luís da Naia, Mário Moreira, cavaleiro
(do Porto). N. N. (espanhol apoderado dos «Niños Sevillanos». Jerónimo
Peixinho, Bernardo Meireles (do Porto); António Rocha, Adolfo Meireles
(do Porto). Alberto Fernandes (de Espinho), J. Gomes de Sousa é um
auxiliar espanhol; 4.º plano: António Couceiro, Antenor F. de Matos,
Abel Costa e A. Pinho Soares.
|
Lançado um relance às praças de toiros, prossigamos no nosso esboço das
transformações do Rossio. O aterro da velha marinha, como já disse,
prolongou-se por tempos
quase inconcebíveis para quem se habituou às celeridades modernas, numa
demora que conduziria a insatisfação e indignação dos impacientes de
hoje nem calculo a que clamorosas reacções. Tardou pelo menos um quarto
de século a completar-se, e só perto de cinco lustros volvidos sobre a
compra da Rossia se resolveu decisivamente aproveitar para
edificações a área obtida. Na sessão camarária de 2 de
Dezembro de 1875, Agostinho Pinheiro, então presidente do
/ 292 /
município, apresentou ao exame da vereação uma proposta, na qual opinava
que
«achando-se quasi aterrado o largo do Rocio, e a marinha contigua,
que dele faz parte, era conveniente aforar em volta da Praça do Peixe,
até à Ponte de S. Gonçalo uma facha (sic) de terreno, para edificações
urbanas, com o que não só ficava aformoseado e abrigado o largo, mas
tambem se alargava o terreno do bairro das pescadeiras, onde a população
se achava excessivamente aglomerada;
Que em consequência disto mandara confeccionar o plano que se achava
presente, em que se via qual era o terreno destinado a edificações e o
prospecto que elas deviam ter, afim de que os foreiros fossem obrigados
a construir segundo o mesmo plano.
Passando a Câmara a deliberar a esse respeito, resolveu o seguinte: 1.º
Que a planta do terreno para aforar fosse remetida ao Ex.mo Governador
Civil do Distrito para o submeter ao Conselho de Distrito pedindo-lhe a
devida autorização para o aforamento; 2.º Que fosse mandado avaliar o
terreno que na planta se acha designado para edificações, sendo a
avaliação feita por cada lanço de terreno que na mesma planta estava
marcado, e que para esse fim nomeava como louvados João da
Maia Romão, condutor da Repartição das Obras Públicas; Júlio Alvarenga,
condutor da Repartição de Engenharia Distrital, e para desempate António
Ferreira de Araujo e Silva, Engenheiro da Repartição das Obras Públicas,
assistindo à referida avaliação o Presidente desta Câmara Municipal; 3.º Que avaliado o dito terreno e autorizado o aforamento,
se passassem editais para ser posto em hasta pública e adjudicado em conformidade com a lei; 4.º Que os arrematantes seriam obrigados a
construir pelos alçados aprovados, e juntos à planta, no praso de um ano
da data da arrematação; 5.º Que desta acta se extraisse cópia para
conjuntamente com a planta ser enviada ao Governador Civil.»
A arrematação foi autorizada por acórdão do Conselho
de Distrito, datado de 9 do mesmo mês, e, a 30, a municipalidade
aprovou o auto de louvação, que atribuía os valores de 300 reis ao
metro quadrado do terreno compreendido entre o princípio do cais e o
final do segundo quarteirão, isto é, na área próxima da Praça do Peixe;
240 reis ao terreno dos dois quarteirões a partir da volta para o
Rossio; e, finalmente, 200 reis ao dos últimos quarteirões, os mais
próximos da ponte de S. Gonçalo. Logo em princípios de Janeiro seguinte
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se procedeu às primeiras arrematações, verificando-se a repetição destas
nos anos subsequentes. Entre os arrematantes,
para não me alongar, citarei apenas alguns mais conhecidos, como
Agostinho Pinheiro, Miguel Ferreira de Araújo Soares, João Maria
Pereira. Campos, Manuel Homem de C. Cristo, Anselmo Ferreira, José
António Pereira da Cruz, Rufino de
Sousa Lopes e Ângelo da Rosa Lima.
Ignoro se existirá ainda o plano de edificações do Rossio
− ainda então
estava por criar o termo urbanização − elaborado em 1875. Não pude,
por conseguinte, analisá-lo. Possuía, porém, uma particularidade que
merece referência. A planta aprovada estabelecia que na rua do Cais −
segundo suponho o actual cais dos Mercanteis − todos os prédios tivessem
primeiro andar, e fossem térreos os da rua da Ponte de S. Gonçalo −
certamente o hoje chamado cais das Falcoeiras − e, provavelmente, os das
artérias paralelas a esta. Tão imponderada determinação daria o
inverosímil resultado de obrigar os proprietários que pretendessem
edificar prédios com uma face para a rua do Cais e outra para qualquer
das restantes a uma concepção arquitectónica de altas transcendências de
imaginação, salvo se fosse consentido simular com a parede apenas o
andar exigido para a artéria reputada mais importante. Seria, de outro
modo, um autêntico quebra-cabeças, mais intrincado que o problema da
quadratura do círculo, achar a solução para esta desconcertada exigência
municipal. E nessa dificuldade, que parece não ter despertado à primeira
vista a argúcia crítica dos munícipes, permanente e
implacavelmente disposta ao disfrute dos deslizes camarários, só cinco
anos passados atentou o vice-presidente da
municipalidade José Antunes de Azevedo, o qual apresentou o caso em
sessão(28) e lhe propôs, com a
anuência dos vereadores, a correcção necessária.
Sucederam-se então as construções e, pouco a pouco, o bairro de João
Afonso − designação que se deve a uma proposta apresentada ao município
pelo dr. Elias Fernandes Pereira na sessão de 10 de Fevereiro de 1887 −
acabou por ficar cheio de prédios, embora modestos, quer para habitações
quer para armazéns, e por tomar a disposição topográfica ainda hoje
mantida. Apenas no aspecto arquitectónico das moradias, algumas das
quais altearam um pavimento, ou beneficiaram e azulejaram as fachadas,
há a assinalar pequenas alterações.
Entretanto, surgiram as bicicletas.
Aveiro, com as suas características
de terra sem acidentes, rapidamente se interessou pelo novo veículo de
fácil utilização numa região
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plana, e o adoptou como meio de transporte acessível e cómodo. No ponto
de vista desportivo, um movimento de entusiasmo pelo velocipedismo
impeliu a gente moça e fez estabelecer uma modesta
pista de corridas no Rossio
− pomposamente designada como velódromo. Aí foram alvo dos aplausos
do público e colheram os louros da fama e da glória como «azes do pedal»,
entre outros, Mário Duarte, José de Orey e o dr. Lourenço Peixinho.
Mais tarde, por volta de 1922, aquele que havia de ser o «desporto-rei»
− o futebol, absorvente e dominador
− quando conquistou o indisputável
primado dos gostos das massas desportivas,
no Rossio instalou,
temporariamente,
os seus arraiais. O Sport Clube Beira-Mar, que progrediria até cotar-se
como uma das mais representativas colectividades aveirenses, nasceu de
um grupo de rapazes do bairro, arrastados pelo apaixonante jogo e que
no desatravancado largo acharam o recinto adequado e franco para a
prática da modalidade preferida. Aí se disputaram ardorosos prélios para
a conquista dos primeiros troféus instituídos em torneios
futebolísticos, e pela primeira vez jogou um grupo de categoria e
nomeada − «Os Belenenses». Revestiu foros de grande acontecimento a
visita do afamado grupo lisboeta; a pontos de justificar a dispensa dos
alunos do liceu à última aula da tarde. Era o prestígio da novidade, num
tempo de saudosas facilidades...
O
bairro do Rossio, servido desde as últimas
décadas
do século passado pelo chafariz da Praça do Peixe, possuiu durante certo
tempo um «lavadouro» público. A sua existência é ainda hoje atestada
pela manutenção desse nome
numa rua e numa travessa(29), traçadas na área da antiga marinha.
Vejamos, enfim, a derradeira modificação de tomo sofrida
pelo amplo logradoiro. Um memorialista, a cujas informações já neste
trabalho desvalioso tenho recorrido(30), preconizando em 1908 o desafrontamento do Rossio, aconselhava a demolição
definitiva da praça de toiros ainda então existente, e acrescentava:
«Outro tanto diria da capela de S. João, se não ofendesse com isso a
devoção de muitos que o levariam a mal, como acto de impiedade. É,
porém, certo que
esta capela, não se recomendando como monumento de arquitectura, nem
pelas suas belezas externas ou internas, servindo apenas para umas
festividades que ali se fazem anualmente à custa dos devotos, já foi
causa de que o canal
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que vem da Ria para o centro da cidade não viesse em recta desde as
pirâmides»... Embora pondo de remissa esta última
informação, que julgo não merecer inteira confiança e pouco importa ao
caso, consideremos o remate deste insuspeito e autorizado depoimento
pessoal: «Naquele estado é triste que se conserve, pois desfeia a
cidade, principalmente a quem vem do mar (do lado do mar,
compreende-se), e sem inspirar a devoção a que tem jus, não tem outra
coisa que o recomende».
A
capela estava
condenada: mais dia, menos dia, seria demolida. A
comissão paroquial republicana da freguesia
da Vera-Cruz, nomeada após o advento do novo regime,
estava liberta de quaisquer impedimentos de natureza piedosa e ardia,
decerto, no desejo de se mostrar empreendedora e solícita. Logo em 30 de
Outubro de 1910 decidiu apeá-la, por proposta do vogal Manuel Rodrigues
da Paula
Graça. Apreciemos as razões invocadas. O Rossio era o
largo mais espaçoso da cidade, muito frequentado, mormente de verão,
tanto por naturais como por estranhos. Carecendo de ser devidamente
cuidado e aformoseado, não seria possível alcançar esse propósito
enquanto se mantivesse a capela de S. João − templo sem valor artístico e
que desfeava o largo, onde raramente se exerciam actos de culto, e cuja
conservação nada recomendava. Alegava ainda o proponente o facto
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de «desde largos anos estar demonstrado que em volta desse templo
existem permanentemente depósitos de substâncias em decomposição, e,
verdadeiro vazadoiro de imundícies, o terreno que o circunda se haver
transformado em improvisadas retretes e mictórios − o que nos rebaixa
perante os visitantes e constitui um perigo para a higiene e salubridade
públicas». A opinião generalizada, aliás − e em certa medida está a
comprová-lo a opinião, digamos desinteressada, atrás transcrita −
insistentemente viria reclamando a demolição da capela, trabalho que
«por ser de interesse não só da paróquia, mas da cidade se torna
necessário, urgente e inadiável. As precedentes Juntas de paróquia assim
o haviam já reconhecido, como o atestavam as actas de diversas sessões,
e a própria municipalidade tinha também efectuado diversas diligências
com a mesma intenção. Propunha, em conclusão, «que discutida e aprovada
a presente proposta e depois de observados os trâmites legais, e votada
em orçamento suplementar, se preciso for, a necessária verba,
cumprindo-se o preceituado no artigo 370 (do Código Administrativo, de 6
de Maio de 1870) citado, se proceda por empreitada, e com
a máxima urgência, à demolição da referida capela, entregando-se depois
ao município o terreno que a mesma presentemente ocupa, ficando nulas e
de nenhum efeito as deliberações das Juntas antecessoras, pelas quais
se obrigavam à construção de uma capela em substituição da actual.
A comissão paroquial, depois de detidamente apreciados os argumentos
aduzidos, e tendo com eles manifestado concordância o prior da
freguesia, Manuel Ferreira Pinto de Sousa, que se encontrava presente à
sessão, aprovou a proposta por unanimidade e resolveu que a deliberação
fosse submetida à sanção superior, para ser executada sem perda de
tempo(31). E tudo correu sem delongas, conforme os votos daquele órgão
administrativo. Em curto prazo estava elaborado o orçamento suplementar,
em que figurava a seguinte rubrica: «Despeza a realizar com a
demolição
da capela de S. João, sita no Rossio desta cidade − 70.000reis»(32). No
ano imediato foi inscrita ainda, também em orçamento suplementar, a
verba de 8.000 reis para gratificar «um indivíduo que foi encarregado da
venda em hasta pública dos materiais provenientes da demolição da
capela de S. João».
Com o desaparecimento da capela em 1911, o Rossio tomou, praticamente
inalterada, a feição que hoje mantém.
Sugeriu-se mais de uma vez o seu ajardinamento. Nunca
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essa ideia vingou, especialmente pela dificuldade de conciliar o traçado de um jardim, aliás de custosa manutenção, com a
disposição do abarracamento e das diferentes instalações da «Feira de
Março». E é também devido ao secular mercado anual que uma ou outra
pequena beneficiação se tem lá efectuado; e que, igualmente, se
conserva, há mais de uma dezena de anos, a afrontá-lo como um trambolho,
um pavilhão de muito duvidoso gosto, bem mais inestético que a anodina
capela de S. João, mas cuja perduração, apesar da sua reconhecida
fealdade, as necessidades da feira e a impossibilidade de o substituir
por uma construção mais consentânea com o local têm imposto.
Poderia citar, além dos factos registados, um elevado número de
acontecimentos de maior ou menor realce local,
desenrolados no mais vasto logradoiro da cidade: paradas
de vária natureza e intenção, missas campais, ajuntamentos populares, a
exposição do Congresso Beirão de 1928, festivais como o que foi
integrado no programa de homenagens aos aviadores franceses que
instalaram o centro de aviação de S. Jacinto, durante a primeira guerra
mundial. Demorar-me-ia numa longa enumeração, incompatível com os
propósitos destas desambiciosas notas. Coordenei-as, apenas, com a
intenção de referir alguns dos capitais elementos para
a história − história caseira, só para contar em família − do Rossio.
E, embora cônscio de não haver esgotado o assunto neste longo arrazoado,
mais certo estou de ter esgotado... a paciência dos leitores de mais
benévola atenção.
EDUARDO CERQUEIRA |