O
BALANÇO exaustivo e a história pormenorizada do que foi a actividade
local dessa extraordinária geração de aveirenses − aveirenses pelo
nascimento, mas aveirenses também pela sua leal integração no meio, que
inteligente e devotadamente serviram − vinda do penúltimo
quartel do século XIX até nossos dias, não tentou ainda, talvez por
demasiado próxima da actualidade, nenhum historiador contemporâneo.
E todavia, sobre os aveirenses de hoje se estende, benéfico, o seu
potente reflexo, e do seu esforço de inteligentes pioneiros usufruímos
nós, não apenas a recordação gloriosa, mas o próprio ambiente cultural e
material que é possível, apesar de tudo, descortinar em determinados
sectores da vida citadina de hoje em dia.
É, por consequência, de gratidão ou reconhecimento a dívida que a actual
geração aveirense mantém em aberto para com a memória veneranda dos
homens que a precederam. Uma ou outra figura da plêiade admirável tem
sido incidentalmente recordada, mas falta por completo o estudo de
conjunto dessa obra invulgar e notabilíssima, onde avultam aspectos
sociais e culturais de primeira categoria em qualquer meio onde
surgissem, e que na história aveirense constitui nitidamente uma
época distinta, um período à parte.
Não cabe a nós, longe do ambiente onde se formou e eclodiu esse
glorioso movimento, e onde melhor ele se documenta e
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compreende, tentar estudo de tamanho vulto, nem aos aveirenses de
nascimento desejamos de modo algum sobrepor-nos nessa, aliás, gratíssima
realização, impedindo-lhes o prazer de reconstituírem uma época de tão
grande significado nos anais da cidade que o Destino generosamente lhes
outorgou por berço.
Da interessantíssima floração bibliográfica dessa excepcional geração,
que em variados sectores ficou a documentar o seu magnífico esforço
construtivo, permitimo-nos, no entanto, exumar desde já uma espécie da
mais extrema raridade e real valor originada justamente no pensamento de
dois componentes ilustres daquela brilhante plêiade de animadores e de
inegáveis realizadores.
Já em 1933, ao procurarmos fundamentar e fixar
plano que reunisse
condições de exequibilidade para o Museu Etnográfico do município
ilhavense, que veio a ser inaugurado quatro anos
depois e que até ao presente se tem mantido, dentro da sua
forçada modéstia, com geral agrado e público louvor, tivemos ensejo de
estudar essas páginas valiosas adaptando quanto da
sua doutrinação interessava ao ponto de vista em que deliberámos
colocar-nos.
Formulámos então o voto de que viesse a ser reeditada
essa
obra de tão «grande alcance e inteligente regionalismo»(1).
Muito grato nos é, 14 anos volvidos, retomar o assunto e reeditarmos
nós, visto ninguém mais o haver ainda feito, o raríssimo opúsculo
regional intitulado Exposição alusiva à Ria de Aveiro, do Engenheiro
MELO
DE MATOS, pois outra não é a espécie bibliográfica posta em causa nas presentes linhas.
Estava-se em 1896; a Etnografia e o Folclore ensaiavam
então os seus primeiros passos no País, sem sistematização
definida, ainda, limitando-se à recolha de material e ao confronto,
timidamente apresentado, dum ou outro elemento com fenómeno idêntico
de além fronteiras.
É desse mesmo ano a primeira tentativa séria de compreensão e de isolamento da Etnografia no quadro das ciências, que em
Portugal se regista; provocou o seu aparecimento a celebração do centenário do descobrimento da
Índia, projectada para
o ano imediato, e subscreveu-a o professor F. ADOLFO COELHO,
intitulando-a singelamente: Exposição Etnographica Portugueza
− Portugal e Ilhas hdjacentes(2).
São estas as primeiras palavras dessa ainda hoje valiosíssima sistematização, muito pouco vulgar também:
«Apesar de existirem várias publicações que têm por
objecto o estudo do povo português sob diversos aspectos,
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pode afirmar-se resolutamente que a nossa etnografia se
acha na infância, já porque muitos desses aspectos, entre
os quais alguns da maior importância, têm sido apenas
levemente tocados, já porque a muitas daquelas publicações falta a precisão científica.
Carecemos nós, sobretudo, de um trabalho de conjunto suficientemente completo, impossível de organizar pela
ausência de numerosos dados que a diligência dum só investigador ou até dum pequena grupo de investigadores
associados não teria capacidade de reunir.
O estudo do povo português sob o aspecto físico está
apenas iniciado: o que falta fazer, ainda dentro dos limites
do estritamente indispensável, é quase tudo!»
Pormenoriza seguidamente aquele sábio etnógrafo como «a habitação portuguesa é um objecto, por assim dizer. intacto»,
como «a alfaia e o mobiliário domésticos esperam ainda um
estudo que não seja um fragmento», como «o vestuário, das
classes populares não foi ainda descrito e desenhado no seu
conjunto, comparativamente, na sua distribuição geográfica».
Carecemos de conhecer o trabalho popular nas mais
diversas formas; «os meios de transporte tradicionais, carros,
embarcações marítimas e fluviais, etc., esperam ainda um estudo
compreensivo, assim como o comércio nas suas formas populares»
«As belas artes populares, propriamente ditas, salvo a poesia, não foram ainda estudadas a sério. A música tem sido objecto
de várias publicações destinadas, ao que parece, a darem dela ideia
falsíssima.»
... «No domínio da poesia popular, dos contos, das superstições, dos jogos, das festas e outros actos solenes do nosso povo»
...«bastante resta averiguar para conhecimento completo dessas
tradições e doutras». Etc.
O problema não passara despercebido à grande geração aveirense, e, assim, em
30 de Maio daquele mesmo ano de 1896 o "Campeão das Províncias", bi-semanário local de honrosas tradições, insere, no seu
n.º 4574, uma carta dirigida Il.mo e Ex.mo Sr. Barão
de Cadoro acerca de uma exposição alusiva à Ria
de Aveiro, que em seguida circulou em separata de pouquíssimos exemplares.
Firma-a e data-a de 22 de Maio o nome dum estudioso de elevado critério,
que, sem ser natural de Aveiro, aos problemas marítimos locais dedicou,
repetidas vezes, labor verdadeiramente
científico e altamente construtivo: o engenheiro dos serviços hidráulicos,
MELO DE MATOS.
O Barão de Cadoro, que logo nas primeiras linhas da
carta referida se fica sabendo ter encarregado MELO DE MATOS «da honrosa missão de organizar um programa para uma
exposição
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da ria de Aveiro», era aveirense de nascimento
(1849-1917), romancista e jornalista, e foi o grande animador (e
reeducador, podíamos dizer também) da sociedade aveirense da sua época,
em benefício da qual prodigalizou os avultados meios de fortuna que possuía, não se alheando de
problema algum, cultural ou social, que à cidade interessasse, tornando
possíveis iniciativas que para sempre ficaram memoráveis.
Pessoa do mais fino trato, distintíssimo, conheci-o
ainda, embora já a caminho da decadência em que veio a terminar, no belíssimo palacete em
que vivia e que generosamente franqueava, em festas brilhantíssimas, de
grande estilo, por largo tempo recordadas.
MELO DE MATOS, esse (1856-1915),
pela sua notável dedicação à cidade, que dedicadamente serviu, granjeou direito incontestável a ser incluído
também nessa geração de aveirenses
famosos que a esta época sem igual ligaram imperecivelmente
o seu nome. Nascido no Porto, veio para as obras da Barra e da Ria de
Aveiro em 1887 chefiar a 2.ª circunscrição hidráulica como engenheiro
que era, após ter participado nos trabalhos da linha férrea da Figueira
da Foz a Alfarelos e ter dirigido
a construção da ponte de Vila Velha do Ródão.
Em Aveiro dirigiu, igualmente, a construção do farol
da Barra e da estrada marginal para a Costa Nova, notabilizando-se em
serviços, distintos que lhe valeram louvor especial do Governo
português.
O Estado francês condecorou-o com a «Legião de Honra» pela assistência inteligente que prestou por ocasião do naufrágio do torpedeiro Avant-garde, daquela nacionalidade.
Após 11 anos da mais prestável permanência aqui, este aveirense
honorário deixou a cidade, em 1898, para assumir o
lugar de Director das Obras Públicas no distrito de Braga(3).
Mas a Aveiro pertenceria a quase totalidade da sua valiosa obra
de escritor; constituída principalmente por separatas de revistas
diversas, conseguimos laboriosamente reunir as seguintes espécies que
dispomos pela sua ordem cronológica:
− Laboratório marítimo de Aveiro. Porto,
1894, 82 Págs. e 1 gráfico desdobrável − (É separata dos N.os 9 a 11 do vol.
3.º da Revista de
CiêncIas Naturais e Sociais).
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− Os trabalhos recentes acerca de Piscicultura em Portugal. Porto,
1895; 16 Págs. (Sep. do N.º 12 daquele
vol. 3.º).
− Questões aquícolas. Resposta a uma apreciação. Porto;
1895; 16 Págs. − (Sep. do N.º 13 do vol. 4.º daquela
mesma revista).
− Questões aquícolas;
s. l. 1895; 4 Págs. − (sep. do n.º 14
daquele vol. 4.º).
− Carta dirigida ao Il.mo e
Ex.mo Sr. Barão de Cadoro acerca de uma exposição alusiva à Ria de A veiro.
Aveiro, 1896; 8 Págs. − (sep. do n.º 4574 do Campeão das Províncias».
− Exposição alusiva à Ria de Aveiro; s. I. n. d.
12 págs.
(sep. da Revista Florestal, de 1896).
− Assistance maritime
− Les «Compromissos» de la cote
d'Algarve. Paris, 1904, 22 Págs. (tese apresentada ao
Congresso Marítimo Internacional de Lisboa, daquele ano).
De data que nos é difícil de precisar, possuímos ainda:
− Aproveitamento dos tanques;
s. I. n. d. 4 págs., sep.
da Revista Florestal.
− La Pisciculture
pratique − Bulletin des sociétés de
pêche et de pisciculture de France; s. I. n. d. 2 págs.
__________________
− No almanaque aveirense para
1896 «À Beira Mar» há
«Uma carta de Melo de Matos», de Págs. LVII a LlX,
propondo solução para o problema do hospital aveirense indevidamente localizado no centro da cidade.
− Nos «Subsídios para a História de Aveiro», de MARQUES GOMES, anda igualmente uma carta de MELO
DE MATOS sobre o Forte da Barra.
− Na Revista Engenharia e Arquitectura, (1.º
e 2.º vols., de 1891 a 92)
publicaram-se também artigos seus acerca de Laboratórios marítimos.
− Em O Instituto, de Coimbra, vols.
38 e 39, de 1891 a 92, encontro
ainda «Algumas observações acerca dos §§ 3.º
e 4.º do artigo 380.º e outros do Código Civil Português».
− Na Revista de Obras Públicas e Minas, vol.
e ano que
não posso neste momento precisar, publicou ele uma
memória sobre a arborização das dunas da Ria de Aveiro.
E não sei, finalmente, se a MELO DE MATOS se não deva atribuir a autoria duma esplêndida e bem fundamentada
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«Representação aprovada no comício que em 3 de Abril de 1893 se realizou
na cidade de Aveiro com o fim de pedira estabelecimento de um serviço de
dragagens na Ria da mesma cidade», impressa em Aveiro naquele ano, em
11 pags.
de grande formato. Assina-a, como Presidente, CASIMIRO BARRETO FERRAZ SACCHETTI; como Secretários, EDMUNDO DE MAGALHÃES MACHADO e JOSÉ MARIA DE MELO DE MATOS; ora o exemplar da nossa
colecção apresenta dedicatória manuscrita ao Visconde de Balsemão,
Governador Civil do Distrito, traçada, indubitavelmente, pela mão de
MELO DE MATOS, embora o oferecimento
seja de A Comissão promotora do Comício; se o indício não
ê decisivo para a identificação que sugerimos, o teor da representação e
os valiosos conhecimentos técnicos aduzidos reforçam a nssa suposição
(4).
Ao Barão de Cadoro e a MELO DE MATOS se deve, pois, esse
projecto de exposição alusiva à Ria de Aveiro, lamentavelmente
não realizada, por motivos que de todo desconhecemos, mas
dignamente pensada e proveitosamente possível, ainda hoje, tal qual era
proposta, apesar dos grandes progressos conseguidos
na técnica e na sistematização da ciência etnográfica de então para cá.
Sobretudo − e é este um dos mais elevados merecimentos
do projecto − MELO DE MATOS sentiu a unidade geográfica e etnográfica da
Ria e região envolvente, por ela condicionada, realidade a que nem
sempre se tem devidamente atendido em arrumações territoriais de que,
alias, aqui não cumpre tratar.
Trazendo de novo a público o magnífico programa duma exposição que se
não realizou ainda e que, não obstante, encerra em si as bases reais dum autêntico Museu regional, grato nos seria se com estas páginas
despertássemos na moderna geração aveirense, a que não falta cultura
nem possibilidades de realização, o ânimo necessário para corporizar o
elevado pensamento
de MELO DE MATOS, do mais puro regionalismo ribeirinho, que
das páginas imediatas brilhantemente ressurge em perdurável
ensinamento a todos nós.
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