J. M. Couceiro da Costa, Pessoas e factos de outros tempos, Vol. XII, pp. 156-158

PESSOAS E FACTOS

DE OUTROS TEMPOS

PROMETI ao meu amigo Dr. Ferreira Neves mandar-lhe para o «Arquivo do Distrito de Aveiro» notícias de interesse geral, extraídas de documentos da minha família «Couceiro da Costa», os quais conservo em meu poder. Desta família sou eu o representante varão da descendência do segundo casamento de meu Avô, o Sr. Francisco Manuel Couceiro da Costa, com sua prima, minha Avó, a Sr.ª D. Constança Ludovina de Albuquerque Couceiro da Costa. Aqui vai alguma coisa.

Meu Avô, Sr. Francisco Manuel Couceiro da Costa, último morgado dos vínculos instituídos, um pelo P.e Fernando Afonso, outro por António Lançarote e sua mulher D. Filipa Antónia, vínculo de Santa Cruz, e outro por D. Leonor da Costa, o de Vilarinho, designação esta pela qual era geralmente conhecido o Morgado, foi pessoa de grande inteireza de carácter particular e político, das de quebrar mas não torcer. Gozou de grande e especialíssima consideração. E como faleceu em 1912, na avançada idade de 93 anos, ainda deve ser recordado por muitas pessoas de Aveiro.

Em política foi intransigente «miguelista». Muito novo, acompanhou seu pai, o Sr. Luís Estêvão Couceiro da Costa, tenente-coronel de Voluntários Realistas de Aveiro, nas lutas pela Liberdade, tomando parte em algumas acções feridas entre absolutistas e constitucionais, às ordens do marechal de campo José Cardoso de Carvalho, barão do Pico do Celeiro.

Viveu a sua longa vida atravessando os três regimes políticos que têm governado o nosso país. Nasceu durante o absolutismo; atravessou todo o constitucionalismo e viveu dois anos em regime republicano. Não perdia oportunidade de verberar indignadamente constitucionalistas e republicanos. / 157 /

Quando o rei D. Manuel II visitou Aveiro, em 1909, o cortejo passou-lhe à porta, na rua do Gravito. Naturalmente, a família e ele, das janelas, assistiram à passagem real. O seu amigo pessoal, D. Fernando de Serpa, que ia na carruagem do rei, chamou a atenção deste para o Morgado, dizendo: «Ali tem Vossa Majestade um inimigo: é um miguelista.» O rei olhou-o demoradamente.

À noite, D. Fernando de Serpa pediu licença ao rei para ir visitar o seu amigo miguelista. «Pois vai, e leva-lhe este charuto como lembrança minha.» D. Fernando assim fez, e entregou-lhe o charuto, lembrança de Sua Majestade. O Sr. Francisco Manuel recebeu-o, e pediu que em seu nome agradecesse ao rei. Mais tarde, após o falecimento daquele, apareceu numa gaveta o charuto real com uma etiqueta que dizia:

Charuto que me mandou o Sr. D. Manuel pelo meu amigo D. Fernando de Serpa. «Timere oferendas inimicas».

Faço estas referências para frisar bem a inteireza do seu carácter político, e assim o valor das apreciações que ele fez de José Estêvão Coelho de Magalhães a propósito de uma carta que este lhe escreveu por ocasião de eleições. Não é de mais esclarecer que, perdida a esperança numa restauração absolutista, dispôs por vezes da grande votação eleitoral que possuía em favor deste ou daquele partido conforme apreciava as circunstâncias.

Um dia, José Estêvão escreveu-lhe a seguinte carta, cujo original possuo:

Amigo 10 de Novembro Costa do Prado.

Poucas palavras mas leaes, honradas e decesivas. Se me der votos, obsequeia-me e não faz mal ao partido, mas não quero que me dê mais do que os que der ao Mendes Leite, e tomo como especialíssimo obséquio os que me der a elle a maior. Ele é o governador, e portanto é quem deve ser respeitado.

Espero da sua amizade que fará o que puder sem compromisso da sua lealdade política e disciplina partidária.

Amigo
José Estevam


Nas costas da mesma carta fez o Sr. Francisco Manuel as seguintes apreciações:

«Apreciavel carta de José Estevam, que me dirigiu para Vilarinho em ocasião d'elleições. Sinto não ter escripto a / 158 / data do anno em que estas tiveram logar; mas dei-lhe com effeito o meu voto e todos os que pude conseguir-lhe na freguezia de Cacia, Esgueira e alguns em Aveiro. Foi agradecer-me a Vilarinho com Mendes Leite. Por signal que indo a cavallo, e retirando já noite, se perderam no caminho e foram dar consigo em Eixo.

Depois d'isto houve, tambem não me lembro do anno, umas elleições em que o guerreei por disciplina partidária, sabe Deus com que repugnancia pessoal, sem interrupção, porém, das nossas relações d'amizade. Acabava de dar-se nas Camaras, e em Lisboa, o primeiro golpe nas instituições religiosas das irmãs de caridade, e no qual José Estevam havia tomado a grande parte que lhe provinha da sua poderosa opinião e genial palavra. Repito. As nossas relações nunca se alteraram por este facto. Uma das grandes virtudes de José Estevam era não ver inimigos pessoaes, onde encontrava adversarios politicos.

Não se offenda ninguem. Em Aveiro ha gente da politica liberal de muito valôr. Mas as lacunas, que aqui deixaram Luiz Cypriano Coelho de Magalhães, José Estevam e Mendes Leite, vultos tradicionaes e verdadeiros das nossas luctas politicas de 1828 a 1834, estam ainda irreparaveis e dificilmente serão esquecidos, ainda mesmo pela geração, que apenas desabrocha à nossa vista.

Procurando alguns papeis, que tenho archivados, faço a presente nota a esta carta, que entre elles encontrei em Novembro de 1898. Francisco Manuel.»

Casa Grande Presiguêda, 26-2-946.

JORGE MANUEL COUCEIRO DA COSTA

 

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