RECEBIDO o ofício da nomeação
para a nova escola, Horácio, pintor e mestre de meninos no quadro auxiliar, seguiu no dia imediato para
Aveiro, a tomar
posse. Levantou-se por alta madrugada e, cavalgando
em égua de empréstimo, acompanhado dum criado e, contra
a sua vontade, da cadelinha da casa, foi tomar o comboio do Vale do
Vouga a S. João da Madeira. Deu a volta por
Espinho e, depois de atravessar inúmeras povoações do litoral e os vastos campos de Angeja,
−
com o labirinto dos
canais e os seus horizontes sem fim, lembrando paisagens
holandesas,
−
desembarcou na estação ferroviária da Veneza
do Atlântico, com os curiosos painéis dos seus azulejos,
representando panoramas, costumes e monumentos regionais.
Há muitos anos já que não visitava a cidade de Aveiro,
berço de Frei Pantaleão e João Afonso(1), pátria de José
Estêvão e como que a Meca do liberalismo. Aveiro, com os
seus ovos-moles, as suas tricanas, a sua laguna melancólica
e as suas inumeráveis marinhas, com os montes de sal lembrando pirâmides do Egipto em miniatura, trouxe-lhe à
memória os seus bons tempos de estudante no liceu. Tudo
se modifica com o girar do orbe. As pessoas envelhecem;
as leis caducam; as modas passam; e os aglomerados humanos evolucionam. A cidade, parcialmente, em poucos anos,
tinha-se transformado, modernizado, acompanhando as exigências do progresso. Depois de Horácio ter abandonado
Aveiro, fora aberta uma larga e rectilínea avenida da Estação
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aos Arcos e, nas suas margens, edifícios modernos, de bom gosto e linhas
elegantes, se haviam erguido, predominando entre eles as grandes
garagens e os grandes stands comerciais.
Se a entrada da cidade tinha sofrido alterações radicais, o resto
conservava-se quase intacto, como nos velhos tempos.
Porque fosse ainda cedo (tinha chegado no primeiro
comboio), antes de ir à Inspecção Escolar Horácio quis dar uma volta
rápida pela cidade, a evocar os tempos mortos, já
um pouco longínquos, em que frequentara o liceu. Recordar
é tornar a viver. Aveiro,
−
urbe aquática, com o seu sorriso veneziano,
de ares lavados e vergastada por um vento contínuo, algumas vezes
arreliador,
−
embora o encanto dos turistas, é uma cidade pequenina
que se percorre de lés a lés em pouco tempo. Não lhe faltam belezas,
porém. As cidades, como os homens, não se medem aos palmos.
Ao pôr de novo os pés em Aveiro, a cidade estava cheia de recordações
saudosas para Horácio; todo aquele cenário
maravilhoso lhe falava da sua adolescência. Era um filme mágico que
perpassava, com sucessos e insucessos, porque não há quadro sem luz e sombras, nem vida humana sem altos e baixos,
sem triunfos e derrotas, sem alegrias e tristezas.
Tudo o que via lhe era, por assim dizer, familiar. Não esquecera ainda a
Rua da Costeira, com a sua casa dos ovos-moles, em lindas barraquinhas
aguareladas; o Rossio arborizado, com as recordações da Feira de Março;
o Canal das Pirâmides, onde fizera os primeiros esboços, as primeiras
aguarelas, tentando os primeiros voos, ainda indecisos, na arte
pictórica; a ponte da Dobadoura, com a sua estrada para o Farol e para
a Barra, por onde seguira um domingo, em carripana fretada, numa manhã
chuvosa de Dezembro, com alguns condiscípulos e duas meninas estudantes,
a visitar o Desertas, velho vapor alemão, encalhado na areia, para os
lados da Costa Nova... Recordava-se também do Campo do Cojo, onde
assistira, um dia, a um grande desafio de futebol entre o grupo local
dos Galitos e um grupo de Viana; e onde os oficiais de cavalaria 8,
robustos e olímpicos, em tardes de primavera, iam mostrar as suas
habilidades hípicas, galgando os obstáculos.
Não muito longe, nas imediações da cidade, ficava a chamada Quinta
dos
Cábulas em gíria académica
−
com os seus tristes canaviais, as suas
fontes ermas com azulejos
−, onde se ia para estudar, mas onde nunca se
estudava, por culpa do bucolismo e das tricanas... Os primeiros idílios,
as primeiras ilusões...
Sempre recordando, Horácio atravessou a ria por uma das duas pontes
−
uma delas local de pasmaceira e bisbilhotice
−
e pôs-se a dar um giro pela cidade. Lá estava a mesma
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Costeira; o mesmo largo do liceu; não falando na Avenida, as
modificações na cidade eram poucas.
Corporizado no bronze, mostrando no aspecto a rija têmpera aveirense,
continuava o José Estêvão no largo do seu nome, na mesma atitude
tribunícia, com a mão direita estendida a uma enorme multidão de
estudantes imberbes, chilreando como os pardais, mais tarde advogados,
médicos, funcionários públicos, políticos em evidência, alguns talvez parasitas. E Horácio, em frente à estátua, declamou mentalmente aquela
passagem do discurso sobre a barca Charles et George, obra-prima da
oratória romântica: Os heróis são
excepções monstruosas da nossa natureza...
O que mais lhe chamou a atenção foi o monumental edifício do liceu, onde
assimilara conhecimentos diversos, abrindo os caboucos do
enciclopedismo, mas onde sofrera também algumas cólicas, que a vida de
estudante, embora expansiva e aparentemente despreocupada, não é isenta
de responsabilidades e apertos. Recordou condiscípulos, professores,
serventes, tudo com saudade. De alguns condiscípulos, pela sua falta de
carácter, materialismo e brutalidade, conservava fraca recordação. Dos
mestres, alguns tinha-os guardados no mais fundo da alma. Os do seu
tempo quase todos tinham partido para o país misterioso donde nunca mais
se volta. A sua memória ia evocando. o Dr. Álvaro (Álvaro Coutinho de
Almeida de Eça), fidalgo no trato e no sangue, residente. num paço
ameado de Esgueira, fazendo o trajecto para o liceu montado em
bicicleta. Apesar de reitor, como
era afável para os alunos e tolerante nos exames! Que cuidados, quase
paternais, não tinha com os novatos!...
O P.e Vieira (ao tempo ainda vivo) era outra alma bondosa, de fino
quilate, com as suas pilhérias e as suas frases espirituosas, isentas de
maldade, algumas das quais, como a da bissectriz, ficaram célebres nos
anais académicos...
O P.e Vieira, forte em latinidades, grande frequentador dos clássicos,
sempre tão seu amigo, onde estaria ele àquela hora? Talvez a ler o
poeta latino seu homónimo... Teria muito gosto em cumprimentá-lo.
E até o velho Dr. Elias, com cara de mata-mouros, rabugento e
exigente
nas geometrias e matemáticas, troçado pelos estudantelhos nos últimos
tempos da sua carreira, tinha bom
coração.
Aqueles, como outros
−
pensou Horácio
−, eram grandes mestres. Um
professor não deve ser um carrasco, mas um guia e um animador das almas
jovens e inexperientes.
Como o tempo urgia, Horácio foi continuando na rápida peregrinação
evocatória.
A Adega Social, ponto de reunião do estudante e do
soldado, conservava-se inalterável, com a sua fachada e os
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objectos interiores revelando a mesma fisionomia, quase a mesma tristeza, não obstante ser um local de libações tumultuosas e de
boémia. Espreitando da porta, com surpresa sua, encontrou dentro da
locanda os mesmos servidores de outrora. Lá estava ainda o Zé, caixeiro
antigo, com o seu ar bonacheirão e a sua cabeça em formato de abóbora.
Horácio, quando estudante, nas tréguas escolares, no tempo quente, ali
ia todos os dias beberricar um copo de madurão da Bairrada, a que
chamavam um marquês. Ali entrara em muitas comezainas, em que alguns
companheiros menos escrupulosos chegavam a fugir para não pagar a
despesa e roubavam copos e talheres. Ali passara algumas noites com o
pessoal francês da esquadrilha de S. Jacinto, quando da inauguração da
escola. Assistira ao primeiro voo de hidroavião sobre a cidade. (Onde
isso ia! Como o tempo deslizava!). Ali se aperfeiçoara alguma coisa
praticamente na doce língua de oui, maravilhosamente usada por VERLAINE,
ANATOLE e outros mestres. E lembrava-se perfeitamente de Monsieur
Jacques, bretão de origem, com uma pronúncia exageradamente gutural
−
o primeiro francês que chegou a Aveiro, com destino a S. Jacinto, e que
era um bebedor incorrigível, caminhando aos ziguezagues nas ruas...
Um pouco acima do largo do Governo Civil
−
com as suas cerejeiras e as
suas palmeiras exóticas fazendo lembrar um recanto de Marrocos
−, lá
estava ainda a antiga livraria de João Vieira, com o mesmo dono, as
mesmas vitrinas, o mesmo aspecto tristonho, quase que os mesmos livros!
Parodiando o Eclesiastes, disse Horácio para consigo: Que haverá de novo
na terra? Nihil sub sole novum. Esta vida é desesperadora de
monotonia...
Perpendicular à livraria
− onde os senhores professores do liceu se
sortiam de obras clássicas e modernas (havia ali para todos os
paladares, desde os trabalhos místicos mais piedosos aos escritos mais
avançados e irreverentes, como esse abominável Cristo nunca existiu, que
ali esteve, em exibição permanente, anos e anos, até a cor da capa se
esmaecer)
−, estende-se a rua do Convento de Jesus, tendo ao fundo a
igreja de Nossa Senhora da Glória. Poucos passos andados, Horácio estava
em frente à portaria da antiga Escola do Magistério, onde os estudantes
liceais, em pelotão, iam assistir, às vezes, à saída das pedagogas,
travando-se por esse motivo rixas sangrentas com os normalistas, que não
admitiam intrusos nos seus domínios e desejavam furtar as suas pombinhas
aos gaviões.
Continuando na via-sacra, passou em frente do Museu Regional, com o
precioso túmulo da Princesa Santa Joana e outras relíquias
artísticas, que não visitou, como desejava ardentemente, por escassez de
tempo.
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Não visitou também a igreja de Nossa Senhora da Glória,
notável pelos dois túmulos brasonados que ali guardava: o da
suave Natércia (Catarina de Ataíde), precioso por encerrar os restos
mortais da mulher que foi amada pelo príncipe dos
nossos poetas, a qual teve graças para inspirar o melhor
soneto da nossa língua; e o outro, de grande valor arquitectónico, onde jazem as cinzas de João de Albuquerque,
senhor de Angeja e expedicionário às Canárias. Não teve
tempo para visitar os dois sarcófagos, mas não resistiu e
parou uns minutos a admirar o magnífico cruzeiro em pedra de
Ançã, que se ergue no adro fronteiro à última igreja, bem digno
de ser reproduzido por artistas e de figurar em ilustrações.
Como folha lançada ao vento, quase que sem destino,
caminhando para o Sul, depois de percorrer uma viela, arribou ao largo
da Fonte Nova, bairro de perdição, onde,
na noite morta, há risadas humanas que fazem lembrar gritos de hienas... E recordou o soneto de ANTERO,
Metempsicose.
Lobas! leoas! sim, bebei meu sangue!
Surgiram além dois vultos miseráveis, com seus ares
afadistados; e Hilário, afugentado com risadas impúdicas,
retrocedeu, um pouco enojado, mas intimamente entristecido. É confrangedor, fere-nos a sensibilidade ver até que
ponto a mulher se atola na lama, inferiorizando-se aos próprios brutos, esquecendo por completo a dignidade humana.
Oh, as meretrizes, resvalando gradualmente
−
abyssus abyssus invocat
−, cometem actos que nos revoltam a consciência. Apesar disso, como escreveu o grande poeta VíTOR
HUGO,
nos Cantos do Crepúsculo, «não insulteis nunca uma mulher
perdida». «Quem sabe a que infortúnios a pobre alma cedeu»?
Nas proximidades do cemitério
−
onde repousam, no
sono da morte, liberais de alma ardente, com José Estêvão
por maioral
−, ao som duma caixa rufando continuamente,
grupos de galuchos, há poucas semanas arribados à caserna,
iam fazendo exercício. Os oficiais, de largo, assistiam às manobras e
feriam os ouvidos os comandos ríspidos dos cabos e sargentos, nem sempre protocolares. A maioria
dos soldados eram bisonhos, arrancados às suas aldeias, ao seio das
famílias, ao convívio das namoradas, em nome da dura lex. Escutava-se: «Direita, volver!»; «Ó seu bruto,
alinhe c'o parceiro!»; «Acerte o passo, ó seu palerma!...».
Os soldados, com ares de campónios, mal habituados ainda
à farda, nem tugiam nem mugiam, como os pobres bois de
estrada que, atrelados aos carros, escutam as imprecações
dos carreiros.
Horácio, agora, vai a caminho dos Arcos, passando por
lindas aveirenses, muito lindas na verdade, mas cada vez
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menos tricanas. A tricana é, já hoje, uma avis-rara. Mais uns anos
rodados, e existirá apenas nas ilustrações, como os fósseis anteriores
ao dilúvio. Hoje, mesmo nas aldeias, olhando à indumentária, até as
criadas de servir são senhoras.
Perto das pontes, no cais, pescadores da Murtosa, de tez queimada e
ardente, fazendo lembrar velhos fenícios, no convés dos seus barcos,
preparavam caldeiradas. As águas da ria, como sempre, estáticas e
negras...
A ria de Aveiro, nas imediações dos Arcos, com as suas pontes, o seu
típico movimento fluvial, é um trecho lindíssimo, merecedor de tela, que
embebeceu a sensibilidade artística de Horácio. Este, como pintor que
era, recordou naquele momento os versos de ANTÓNIO NOBRE que lhe
bailavam a cada passo na memória:
Que é dos pintores do meu país estranho,
Onde estão eles, que não vêm
pintar?...
Ao fundo da Avenida, do lado direito para quem sobe, lá estava, muito
garrido e pintado de fresco, o edifício da capitania, construído sobre
as águas, verdadeira casa veneziana. Nos Arcos, lugar de vadiação
intelectual e académica, nas vitrinas da antiga livraria da esquina,
capas berrantes de novela apregoavam nomes lusos e estrangeiros. Os
olhos de Horácio, que ali parou uns segundos, detiveram-se sobretudo no volume de capa amarela
Le démon du
midi, de BOURGET.
Horácio, puxando do relógio, viu que não era cedo e que tinha perdido
bastante tempo a cumprimentar a cidade. Não ia em passeio turístico, mas
em serviço. Os artistas, porém, mais ou menos lunáticos, procuram sempre
fugir às realidades materiais e esquecem-se facilmente do adágio primeiro
a obrigação, depois a devoção.
Era tempo de agir com presteza, pois desejava apanhar
o comboio das cinco, o único que ligava ao Vale-do-Vouga.
Correndo à pressa Seca e Meca, à procura de papel timbrado, selos e
diploma, para satisfazer as exigências oficiais,
Horácio dirigiu-se à Inspecção Escolar, a tomar posse. Nesse
tempo, os serviços escolares do distrito estavam confiados a um corpo de
cinco inspectores, um dos quais era o chefe. Horácio já ali era
conhecido. Foi recebido pelo próprio
inspector-chefe
− pessoa em extremo atenciosa
−, a quem,
antes do serviço ser iniciado, interrogou:
− Não haverá, no distrito, escola vaga que mais me
convenha?
− É a única que temos disponível. Há dias, tínhamos vaga a escola de Palmaz,
em Oliveira de Azeméis, mas já foi nomeado um professor para ela...
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− Silva Escura fica extremamente distante, nas fronteiras do distrito
−
emitiu Horácio
−
e, ao que me parece, deve ser terra bárbara... atrasada.
− Se assim for, maiores honras colherá o senhor como
agente de civilização
− exclamou o Senhor Inspector-Chefe.
− Há certas aldeias no
nosso país que fazem lembrar o
sertão da África!
− disse Horácio, um pouco entristecido
pela contrariedade do acaso que o atirava para tão longe,
para os confins da Beira.
− Sem vias de comunicação... sem
comodidades... com dificuldades de hospedagem...
Assinada a posse, depois de lido pelo interessado o termo
do juramento, Horácio interrogou:
− V. Ex.ª sabe dizer-me o itinerário que devo seguir
para chegar a Silva Escura?
− Vá àquele gabinete (e indicou outra sala) e dirija-se
ao Senhor Inspector.
Horácio para ali se dirigiu e interrogou um dos seus
superiores.
−
O sr. toma o comboio do Vale do Vouga até à estação
de Paradela. Desta estação a Silva Escura, a pé, são duas
horas de caminho, por uma estrada quase sempre a subir e
aos ziguezagues... Silva Escura fica além de Sever, não muito longe, nas
abas do Arestal. De Paradela a Sever,
pode aproveitar-se de um automóvel que ali vai diariamente
à chegada dos comboios. E, se quiser, pode ir de carro até
Silva Escura, pois os automóveis já vão a Silva Escura... (Estas
últimas palavras foram ditas com certa ironia, como quem
queria afirmar que Silva Escura ela uma terra de cabras, montesina, mas
já ali haviam chegado os reflexos da civilização).
Um outro inspector que se encontrava no gabinete, sorrindo,
exclamou:
− Silva Escura é terra pitoresca e, ao que parece, de
bons ares; mas no Inverno deve ser insuportável. Frio,
neve, falta de convivência, um meio muito primitivo. Mas
Dornelas era pior... O conselho que lhe dou, como amigo,
é que se hospede em Sever, onde encontrará outras comodidades: bons colegas, pessoas cultas com quem possa conversar,
clube, distracções, uma pensão razoável... A professora de
Silva Escura reside em Sever e, apesar de senhora, faz o trajecto
a pé... Não é longe: pouco mais de meia hora de percurso.
Horácio agradeceu e saiu da repartição bastante apreensivo, meditando no deserto que o aguardava, esfíngico como
tudo o que é novo e desconhecido.
(De uma novela em preparação).
ÁLVARO FERNANDES |