QUANDO se pretende
elogiar a Capela do Senhor das Barrocas é frequente citarem-se para
comparação os
Baptistérios de Pisa e de Florença, pela semelhança
que entre si se diz haver − comparação feita por
vários críticos de Arte, entre os quais MARCEL DIEULAFOY,
ao ocupar-se do estudo do estilo religioso do século XVIII
em Portugal.
Refere-se ao Convento de Mafra e à Basílica da Estrela,
e, sem que tal se espere, assim remata o ilustre arqueólogo
a sua fugaz referência a esta Basílica de Lisboa:
«La chapelle octogonale do Senhor das Barrocas
(vers 1775), une transcription en neo-manuélin très élégante des baptistères de
Florence et de Pise, mérite d'être
citée (fig. 719»(1).
E nada mais acerca da Capela.
A palavra Aveiro só se vê na legenda da figura indicada
(cliché Biel), a qual apresenta apenas a parte da Capela
virada ao poente, e só até à sua primeira cornija, como que
a significar que da Capela o que mais merece ser citado é o
portal da sua entrada principal. (Digo portal como, em
Arquitectura, se diz o portal dos Jerónimos. O pórtico tem
cobertura apoiada em colunas ou em arcadas, como, por
exemplo, o do Teatro de D. Maria e o do palácio da Assembleia Nacional).
Para facilidade de descrição,
este portal pode considerar-se formado por dois corpos, um ao outro sobreposto;
o inferior mais alto e ligeiramente avançado, e o outro em
contacto com a parede.
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O primeiro − rematado por um
frontão cortado a meio, as empenas, abatidas e enroladas, e ao centro,
engrinaldadas,
as armas reais − é limitado por duas colunas jónicas de cada lado, em
planos diferentes: uma saliente, que suporta o ângulo do frontão,
deixando a descoberto a outra, recuada mas excedendo para fora.
Substituídas que fossem as duas colunas salientes por outras da ordem
compósita − ligeiramente voltados um para o outro os seus capitéis, e com
eles a empena e cornija recurvadas que os rematam − assim substituídas,
ter-se-ia flagrante reprodução, em menor escala, do que se observa no
retábulo da capela-mor da Estrela, como também nos dois outros do
transepto da mesma Basílica − todos com anjos ou outras figuras
alegóricas directamente apoiados nas empenas do frontão, isto é, em
situação e atitudes muito em voga no estilo religioso do século XVIII(2).
No mesmo confronto, além do brasão, o que há a mais no portal é o vão
da entrada, de arco semi-circular, guarnecido de florões, o qual,
prolongado pelas suas duas ornadas mísulas, de acentuada saliência a
estreitar o vão, dá de longe
o aspecto índio-mourisco.
O corpo superior do portal, envolvendo a janela
que
dele faz parte, ostenta quatro figuras de anjos: dois de pé sobre os
acrotérios ou peanhas de remate das colunas recuadas do corpo inferior,
e os outros dois reclinados nas empenas, também enroladas, que coroam as
pilastras que acompanham a janela − sobre a qual, em caprichoso jogo de
grinaldas e recurvados, se ergue a ornamentária de um lanço terminal,
que tem por cimeira uma cruz (já mutilada pelo tempo).
Embora este corpo do portal não seja, como o outro, cópia exacta
daqueles retábulos, nem por isso a profusão de curvas e a semelhança dos
ornatos deixam de manter em evidência as características do estilo
barroco, isto é, uma forma bizarra enxertada em Renascença.
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Portal da Capela do Senhor das Barrocas |
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Agrada sobremaneira aos Aveirenses aquela afirmação de DIEULAFOY, não
sendo assim de estranhar que brilhantes penas da literatura regional
repitam e perfilhem com desvanecimento as suas generosas palavras, tanto
mais que elas correm mundo na sua obra Ars Una, simultaneamente
publicada na França, na Inglaterra, Alemanha, Espanha, Itália e nos E.
U. da América.
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Pelo que observei naquelas cidades italianas, nota-se, de relance, a
semelhança de muitas linhas da arquitectura
exterior da Capela de Aveiro e do Baptistério de Florença,
embora não do mesmo estilo, mas outro tanto não resulta
da comparação da mesma Capela com o Baptistério de Pisa.
Por muito que se reduza o
âmbito das proporções, nada há na Capela do
Senhor das Barrocas que possa assemelhar-se ao complexo arquitectónico
deste Baptistério, que nem sequer por fora tem forma octogonal.
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Baptistério de Pisa |
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É circular. Em octógono é a sua pia baptismal, no interior, ao centro do plano
de base do edifício. Este é exteriormente circundado até à base da cúpula por sobrepostas colunatas e
arcaturas de vários estilos, em pedra branca, tal como sucede nos
ornamentos dos oito andares do Campanile − a famosa Torre Inclinada, que
lhe fica próximo.
Poligonal é a sua cúpula, de sectores curvilíneos, com
o seu fecho encapuchado por outra semi-esférica.
Há a notar um pormenor de estética a favor de Aveiro: mais belo que
qualquer dos quatro portais do Baptistério de
Pisa é o portal da frente da Capela do Senhor das Barrocas.
Maior vantagem leva esta Capela se comparada com o
Baptistério de Florença, ambos de forma octogonal.
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Faltam à Capela do Senhor das Barrocas o revestimento policrómico de
mármores e os famosos baixos-relevos em portas de bronze, como são os daquele Baptistério, mas tem
a capela aveirense mais esbelteza arquitectónica e um portal também de
inegável valor artístico.
Tem além disso as suas
pilastras a correrem em parelha pela aresta dos
oito diedros do edifício até à platibanda, donde erguem bem alto oito
esguias pirâmides coroadas de esferóide, à semelhança de certas agulhas
de Faraó consagradas aos deuses − quem sabe se aqueles esferóides simbolizando oito pontos do Evangelho, as oito virtudes que a
direito conduzem à Bem-aventurança...
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Baptistério de Florença |
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Capela do Senhor das Barrocas |
Ao centro da platibanda, na mesma face principal e fiel ao mesmo estilo,
está o campanário, cuja modéstia não o inibe de imprimir carácter de
realce.
E a propósito de estilo: − afigura-se-me sem clareza aquela
transcrição,
a que se refere DIEULAFOY, «em um neo-manuelino muito elegante», como
ele diz acerca desta Capela, por si própria considerada como modesta
contra-parente do pomposo ítalo-clássico de Mafra.
O estilo barroco, desviando-se dos comedidos contornos
da tradição clássica, abusa ostensivamente das formas que
lhe são peculiares: − as colunas contorcidas e a redundância
de curvas, enrolamentos e inversões; as figuras alegóricas
em posições contrafeitas e como que a remexerem-se sob
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farta roupagem agitada por imaginário vento que não dissipa densas
nuvens em que anjos ajoelham; as aparatosas cúpulas e torres sineiras;
as desproporcionadas pirâmides e outros episódios com o seu quê de
oriental.
No portal da Capela do Senhor das Barrocas bem patentes estão algumas
das características deste estilo que conseguiu suplantar o manuelino.
Seja o neo-manuelino um pretenso estilo derivado do manuelino, como o
seu nome parece indicar, seja um manuelino reformado, degenerado −
moderno, enfim, − nele deve, em meu entender, transluzir a influência,
mais ou menos
frouxa dos Descobrimentos.
Simples admirador da Arte, nas suas linhas gerais, tão só como elas se
oferecem aos olhos dum leigo sem a devida preparação para o diagnóstico
de possíveis desvios de estilo ou formas de degenerescência que
sobrevenham no decorrer das épocas, não me basta a curiosidade − para
divisar na fisionomia da Capela do Senhor das Barrocas qualquer traço
evocativo do gótico-manuelino, aliás de elementos decorativos
característicos e de tradição nacional, − e para compreender como algum
derivado desse estilo possa, no caso presente, eclipsar o que de
Renascença, mais ou menos deformado, me parece permanecer.
É pena que delicadas figuras de estatuária trabalhadas
em pedra calcária de pouca dureza tenham de ficar expostas
à acção do tempo, como sucede com o portal desta Capela de Aveiro, para
mais, situada numa riba sobranceira ao chamado Vale de Marinhas, que se
prolonga pela vastidão da laguna.
Aquela pedra mole não está apenas sob a acção das ordinárias variações
atmosféricas. A desintegração prossegue, como lepra mutilante, activada
pela salgadia espuma e poalha aquosa sopradas das marinhas pelas
ventanias, e sua adjuvante sedimentação precipitada pela forte soalheira
daquele local.
É considerada a Capela como monumento nacional. Tanto bastará para que a
respectiva Direcção lhe acuda com urgente restauro − não vá o
agravamento do mal acabar em pouco tempo com o que resta de mais
vulnerável desta apreciada obra de arte.
Lisboa, Julho, 1945.
ANTÓNIO NASCIMENTO LEITÃO
(Cor.-méd) |