A. Nascimento Leitão, A capela do Senhor das Barrocas (Aveiro)..., Vol. XI, pp. 155-160

A CAPELA DO SENHOR DAS BARROCAS

(AVEIRO) E OS BAPTISTÉRIOS DE PISA

E DE FLORENÇA

QUANDO se pretende elogiar a Capela do Senhor das Barrocas é frequente citarem-se para comparação os Baptistérios de Pisa e de Florença, pela semelhança que entre si se diz haver − comparação feita por vários críticos de Arte, entre os quais MARCEL DIEULAFOY, ao ocupar-se do estudo do estilo religioso do século XVIII em Portugal.

Refere-se ao Convento de Mafra e à Basílica da Estrela, e, sem que tal se espere, assim remata o ilustre arqueólogo a sua fugaz referência a esta Basílica de Lisboa:

«La chapelle octogonale do Senhor das Barrocas (vers 1775), une transcription en neo-manuélin très élégante des baptistères de Florence et de Pise, mérite d'être citée (fig. 719»(1).

E nada mais acerca da Capela.

A palavra Aveiro só se vê na legenda da figura indicada (cliché Biel), a qual apresenta apenas a parte da Capela virada ao poente, e só até à sua primeira cornija, como que a significar que da Capela o que mais merece ser citado é o portal da sua entrada principal. (Digo portal como, em Arquitectura, se diz o portal dos Jerónimos. O pórtico tem cobertura apoiada em colunas ou em arcadas, como, por exemplo, o do Teatro de D. Maria e o do palácio da Assembleia Nacional).

Para facilidade de descrição, este portal pode considerar-se formado por dois corpos, um ao outro sobreposto; o inferior mais alto e ligeiramente avançado, e o outro em contacto com a parede. / 156 /

O primeiro − rematado por um frontão cortado a meio, as empenas, abatidas e enroladas, e ao centro, engrinaldadas, as armas reais − é limitado por duas colunas jónicas de cada lado, em planos diferentes: uma saliente, que suporta o ângulo do frontão, deixando a descoberto a outra, recuada mas excedendo para fora.

Substituídas que fossem as duas colunas salientes por outras da ordem compósita − ligeiramente voltados um para o outro os seus capitéis, e com eles a empena e cornija recurvadas que os rematam − assim substituídas, ter-se-ia flagrante reprodução, em menor escala, do que se observa no retábulo da capela-mor da Estrela, como também nos dois outros do transepto da mesma Basílica − todos com anjos ou outras figuras alegóricas directamente apoiados nas empenas do frontão, isto é, em situação e atitudes muito em voga no estilo religioso do século XVIII(2).

No mesmo confronto, além do brasão, o que há a mais no portal é o vão da entrada, de arco semi-circular, guarnecido de florões, o qual, prolongado pelas suas duas ornadas mísulas, de acentuada saliência a estreitar o vão, dá de longe o aspecto índio-mourisco.

O corpo superior do portal, envolvendo a janela que dele faz parte, ostenta quatro figuras de anjos: dois de pé sobre os acrotérios ou peanhas de remate das colunas recuadas do corpo inferior, e os outros dois reclinados nas empenas, também enroladas, que coroam as pilastras que acompanham a janela − sobre a qual, em caprichoso jogo de grinaldas e recurvados, se ergue a ornamentária de um lanço terminal, que tem por cimeira uma cruz (já mutilada pelo tempo).

Embora este corpo do portal não seja, como o outro, cópia exacta daqueles retábulos, nem por isso a profusão de curvas e a semelhança dos ornatos deixam de manter em evidência as características do estilo barroco, isto é, uma forma bizarra enxertada em Renascença.

 

 
 

Portal da Capela do Senhor das Barrocas

 

Agrada sobremaneira aos Aveirenses aquela afirmação de DIEULAFOY, não sendo assim de estranhar que brilhantes penas da literatura regional repitam e perfilhem com desvanecimento as suas generosas palavras, tanto mais que elas correm mundo na sua obra Ars Una, simultaneamente publicada na França, na Inglaterra, Alemanha, Espanha, Itália e nos E. U. da América. / 158 /

Pelo que observei naquelas cidades italianas, nota-se, de relance, a semelhança de muitas linhas da arquitectura exterior da Capela de Aveiro e do Baptistério de Florença, embora não do mesmo estilo, mas outro tanto não resulta da comparação da mesma Capela com o Baptistério de Pisa.

Por muito que se reduza o âmbito das proporções, nada há na Capela do Senhor das Barrocas que possa assemelhar-se ao complexo arquitectónico deste Baptistério, que nem sequer por fora tem forma octogonal.

 

 
 

Baptistério de Pisa

 

É circular. Em octógono é a sua pia baptismal, no interior, ao centro do plano de base do edifício. Este é exteriormente circundado até à base da cúpula por sobrepostas colunatas e arcaturas de vários estilos, em pedra branca, tal como sucede nos ornamentos dos oito andares do Campanile − a famosa Torre Inclinada, que lhe fica próximo.

Poligonal é a sua cúpula, de sectores curvilíneos, com o seu fecho encapuchado por outra semi-esférica.

Há a notar um pormenor de estética a favor de Aveiro: mais belo que qualquer dos quatro portais do Baptistério de Pisa é o portal da frente da Capela do Senhor das Barrocas.

Maior vantagem leva esta Capela se comparada com o Baptistério de Florença, ambos de forma octogonal. / 159 /

Faltam à Capela do Senhor das Barrocas o revestimento policrómico de mármores e os famosos baixos-relevos em portas de bronze, como são os daquele Baptistério, mas tem a capela aveirense mais esbelteza arquitectónica e um portal também de inegável valor artístico.

Tem além disso as suas pilastras a correrem em parelha pela aresta dos oito diedros do edifício até à platibanda, donde erguem bem alto oito esguias pirâmides coroadas de esferóide, à semelhança de certas agulhas de Faraó consagradas aos deuses − quem sabe se aqueles esferóides simbolizando oito pontos do Evangelho, as oito virtudes que a direito conduzem à Bem-aventurança...

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Baptistério de Florença

 

Capela do Senhor das Barrocas

Ao centro da platibanda, na mesma face principal e fiel ao mesmo estilo, está o campanário, cuja modéstia não o inibe de imprimir carácter de realce.

E a propósito de estilo: − afigura-se-me sem clareza aquela transcrição, a que se refere DIEULAFOY, «em um neo-manuelino muito elegante», como ele diz acerca desta Capela, por si própria considerada como modesta contra-parente do pomposo ítalo-clássico de Mafra.

O estilo barroco, desviando-se dos comedidos contornos da tradição clássica, abusa ostensivamente das formas que lhe são peculiares: − as colunas contorcidas e a redundância de curvas, enrolamentos e inversões; as figuras alegóricas em posições contrafeitas e como que a remexerem-se sob / 160 / farta roupagem agitada por imaginário vento que não dissipa densas nuvens em que anjos ajoelham; as aparatosas cúpulas e torres sineiras; as desproporcionadas pirâmides e outros episódios com o seu quê de oriental.

No portal da Capela do Senhor das Barrocas bem patentes estão algumas das características deste estilo que conseguiu suplantar o manuelino.

Seja o neo-manuelino um pretenso estilo derivado do manuelino, como o seu nome parece indicar, seja um manuelino reformado, degenerado − moderno, enfim, − nele deve, em meu entender, transluzir a influência, mais ou menos frouxa dos Descobrimentos.

Simples admirador da Arte, nas suas linhas gerais, tão só como elas se oferecem aos olhos dum leigo sem a devida preparação para o diagnóstico de possíveis desvios de estilo ou formas de degenerescência que sobrevenham no decorrer das épocas, não me basta a curiosidade − para divisar na fisionomia da Capela do Senhor das Barrocas qualquer traço evocativo do gótico-manuelino, aliás de elementos decorativos característicos e de tradição nacional, − e para compreender como algum derivado desse estilo possa, no caso presente, eclipsar o que de Renascença, mais ou menos deformado, me parece permanecer.

É pena que delicadas figuras de estatuária trabalhadas em pedra calcária de pouca dureza tenham de ficar expostas à acção do tempo, como sucede com o portal desta Capela de Aveiro, para mais, situada numa riba sobranceira ao chamado Vale de Marinhas, que se prolonga pela vastidão da laguna.

Aquela pedra mole não está apenas sob a acção das ordinárias variações atmosféricas. A desintegração prossegue, como lepra mutilante, activada pela salgadia espuma e poalha aquosa sopradas das marinhas pelas ventanias, e sua adjuvante sedimentação precipitada pela forte soalheira daquele local.

É considerada a Capela como monumento nacional. Tanto bastará para que a respectiva Direcção lhe acuda com urgente restauro − não vá o agravamento do mal acabar em pouco tempo com o que resta de mais vulnerável desta apreciada obra de arte.

Lisboa, Julho, 1945.

ANTÓNIO NASCIMENTO LEITÃO

(Cor.-méd)

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(1) MARCEL DIEULAFOV, «Ars Una» − Histoire Générale de l'Art. Espagne et Portugal. Libr. Hachette, Paris.

(2) Neste esboço descritivo e comparativo do portal, feito grosso modo sobre suas linhas de mais destaque, excluo, por desnecessários, o friso e outros arranjos do entablamento. 

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