PARTE PRIMEIRA
Enumeração dos erros hidrográficos de algumas Cartas Geográficas referentes ao Rio Antuã e seu afluente Rio
UI. Rio Antuã
e sua relação com o estado religioso da Igreja do Porto no tempo do
Condado Portucalense, Identificação do Rio Antuã que limitou os
termos do Bispado do Porto com o de Coimbra no Pontificado de Pascoal Il,
em 1115, e no de Calisto Il, em 1120, e no reinado de D. Dinis, em
1320, Identificação do Rio Ul.
I
Enumeração dos erros hidrográficos de
algumas Cartas
Geográficas referentes ao Rio Antuã e seu afluente Rio UI.
Alguns geógrafos confundiram o Rio Ul com o Antuã, por não possuírem o
conhecimento da região. E daí os seus erros que podem ser
classificados de erros hidrográficos. Esses erros, que urge corrigir,
depreendem-se de documentos a seguir nomeados:
1) − Da Folha N.º 10 da Carta Geográfica de
Portugal, publicada pelo Instituto Geográfico e Cadastral em 1870, sob a
direcção do General FOLQUE.
/
270 /
2) − Do Mapa Corográfico de Portugal, de J. FOREST.
3) − Da Carta Hidrográfica de Portugal, fig. 64, de
VASCONCELOS E SÁ.
4) − Da Carta de Portugal, de OLIVEIRA CABRAL.
5) − Do Esquema Topográfico
de Cucujães, intercalado no «Museu Arqueológico e Etnológico de Cucujães», do abade JOÃO
DOMINGUES AREDE.
6) − Da Carta de Portugal dos Trabalhos Geodésicos
e Topográficos.
7) − Da Geografia, de A.
MATOSO.
Anotação:
− A Folha N.º 10 da Carta Geográfica de Portugal apresenta o traçado de cada um dos rios Antuã e
UI, sem denominação alguma em todo o seu curso que os possa distinguir.
− O Mapa Corográfico de Portugal enferma do mesmo
erro já apontado anteriormente na Folha N.º 10, à qual alude a alínea 1). E, quanto à sua respectiva identificação, os geógrafos recolheram-se ao
silentio aliquid transire.
− A Carta Hidrográfica de Portugal, fig. 64. não mostra
traçado algum do Rio Antuã, mas somente do Rio Ul.
− A Carta de Portugal tem o traçado do Rio Antuã desviado do seu curso. Dá o traçado pela
terra do Couto de Cucujães e de Oliveira de Azeméis, como freguesias confinantes, quando, em verdade, não são. E não apresenta o
traçado do Rio UI.
− O Esquema Topográfico de Cucujães mostra a Carta original, de onde foi
reproduzido, assinando o nome de Rio Antuã no traçado hidrográfico do
Rio UI que passa junto do lugar dos Moinhos, de Cucujães. Este Rio
UI, que não
Antuã, é o próprio que desce do lugar da Pica, também de Cucujães, e com o nome desta mesma povoação.
− A Carta de Portugal dos Trabalhos Geodésicos e
Topográficos apresenta o Rio UI como afluente do Rio Antuã, mas da
margem esquerda, quando devia estar traçado como seu afluente da margem
direita. O traço, com a designação errada de Rio UI é a continuação
ascendente do Rio Antuã.
− A Geografia do professor A.
MATOSO diz a pág. 289 que o Rio Antuã é afluente do Rio Vouga, na margem direita, quando, em
verdade, é, como o próprio Rio Vouga, um tributário da Ria de Aveiro. Para que
este caso se desse, isto é, para
que fosse seu afluente, era preciso considerar a Ria de Aveiro como
fazendo parte integrante do Rio Vouga. Basta olhar para um mapa para se
verificar que os dois rios são independentes e têm a respectiva foz na
Ria, em sítios bastante afastados.
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271 /
II
Rio Antuã e sua relação com o Estado Religioso da
Igreja do Porto, no tempo do Condado Portucalense.
Dominaram por longo tempo os mouros em Espanha e nunca foi possível a
fusão dos dois povos, devido à disparidade de cultos e à diversidade de
inveterados hábitos contraídos.
Esta dominação causou muitas calamidades à Igreja de Espanha. E a Igreja
do Porto, que não constituiu excepção, além das perturbações dos mouros,
sofreu também usurpações dos bispos comarcãos.
Como exemplo, basta citar:
Os bispos de Braga e Coimbra, tendo conhecido a Diocese do Porto sem pastor(1),
bispo, por estar destruída pelos
mouros, usurparam-lhe terras e igrejas e arrogaram-se em suas
dignidades. E para os desapossar da sua autoridade usurpada, D. Hugo(2),
quando tomou posse da Igreja do Porto, como bispo, houve por necessário
recorrer sucessivamente aos Sumos Pontífices Pascoal II e Calisto II
para intervirem com a sua autoridade apostólica, a fim de que fossem
restituídos à Sé do Porto os terrenos e igrejas usurpadas. E para não
haver mais prepotências de futuro, concertou-se, depois de cominadas as
penas canónicas aos obstinados usurpadores, uma linha divisória entre a Diocese do Porto e as suas
comarcãs de Braga e Coimbra. E assim foi determinado pelos referidos
Pontífices e outras altas dignidades eclesiásticas:
A linha de demarcação, entre as dioceses do Porto
e Braga continuar a
mesma como nos tempos antigos: da foz do Rio Ave(3) ao Rio Douro,
tendo como limite ao Ocidente o Mar Oceano(4).
E, entre as Dioceses do
Porto e Coimbra, prosseguir a mesma linha da foz
do Rio Arda pelo Monte de Mêda, e Monte Nabal, onde nasce um braço do
Rio Antuã, e seguir este Rio Antuã, em todo o seu curso, até desaguar na
Ria que comunica com o Mar Oceano.
/
272 /
III
Identificação do Rio Antuã.
Rio Antuã. Tem dois braços de volume sensivelmente
igual, ambos nascidos em Escariz, de Arouca. Um vem das
Alagoas, passa pela Seixeira, entra em Fajôes no lugar do Pisão, Torre, e segue para Carregosa de Baixo; o outro nasce nas proximidades da Venda da Serra em um monte que se
estende entre esta povoação e a de Soutelo de Chave (Monte
Nabal nos tempos medievais), entra em Carregosa no lugar de Currais, passa a Azagães, e junta-se ao primeiro em Carregosa de Baixo, correndo a seguir pela
Ínsua, Pedra-Má,
Pindelo, Côvo de Vila-Chã de S. Roque, Oliveira de Azeméis e UI, onde, na proximidade da Minhoteira, recebe o
Rio UI, seu afluente da margem direita. Continua a descer
por Estarreja (antiga vila de Antuã) e daí até à Ria. Foi
muito considerado este Rio Antuã no tempo do Condado
Portucalense pelo facto de ter sido concertado pelo Pontífice Pascoal II,
em 1115. e depois pelo Pontífice Calisto lI, em 1120,
e outras dignidades da Igreja, como já se advertiu, para linha
de demarcação territorial e eclesiástica das Dioceses do Porto e
Coimbra.
Continuou o mesmo Rio Antuã a ser muito considerado
também nos primeiros séculos da Monarquia, e tanto assim que foi
utilizado como limite já assinalado das referidas dioceses no tempo de El-Rei D. Dinis, em 1320, quando da
taxação das igrejas do Reino, mediante concessão do Papa João XXII por uma Bula, de 23 de Maio de 1320, para subsídio da guerra contra os mouros.
E para fazer desaparecer a confusão do nome do Rio
UI com o do Rio Antuã, vamos, com documentação oficial e
cronológica de factos, restabelecer a identificação deste Rio
Antuã, contrariando assim os seus erros hidrográficos enumerados no princípio
deste Estudo.
Essa documentação, em que foi determinada a delimitação da Diocese do
Porto com a de Braga e a de Coimbra, e que fez
voltar, de facto, à subordinação da Igreja do Porto
os terrenos e igrejas usurpadas que, de direito, lhe pertenciam, e tornar mais conhecido e considerável o Rio Antuã,
como linha divisória da Igreja do Porto com a de Coimbra, é como segue:
1)
«Priuilegium dominj Paschalis papae secundj. in quo continentur limites episcopatus portugalensis
/
273 /
Paschalis episcopus seruus seruorum Dey venerabili ffratri Hugonj Portugalensis ecclesiae episcopo eiusque successoribus canoniçe
substituendis in perpetuum. Egregias
quondam episcopalis dignitatis urbes in yspanya claruisse egregiorum qui
in ipsis refulserunt pontificum siue martirum scripta et monimenta testantur. Postea
uero per annos
multos yspaniae, maiorem partem a mauris ueI ysmaelitis
inuasam atque possessam urbium uel ecclesiarum abolitio manifestat et
nostrorum temporum memoria non ignorant...
Personam siquidem tuam et ecclesiam ipsam dei gratia reparare nostram decreuimus tutelam specialiter confouendam...
Statuimus... et quod de antiquis parrochiae terminis dum
portugalensis prostrata iaceret ecclesia ab alijs ecclesijs ocupatum est.
auxiliante deo eidem reintegretur ecclesiae. Quorum uidelicet terminorum
distintio horum dicitur finium continuatione distendj. a fauce auiae
fluminis ubi cadit in mare occeanum. per ipsum fluminem sursum usque... in
dorium flumen. inde trans dorium ad piscarium fratrum per
montem magnum ad antuanum flumen. et per ipsum fluuium sicut descendit
ad mare oceanum. Quacumque igitur inffra
hos fines ecclesiae uel monasteria continentur. precipimus ut supradictae portugalensi ecclesiae obedientiam debitam
iustitiamque persoluant... Dante beneuenti... XVlIj.º Kal.
Septembris. Anno MºCºXV: Pontificatus autem dominj Paschalis secundi papae anno xvij.» (Censual
do Cabido da Sé do Porto, a
págs. 1, 2 e 3).
Em português:
«Breve do Papa Pascoal II que contém os limites da
Diocese do Porto.
Pascoal, Bispo, Servo dos servos de Deus, ao venerável irmão Hugo, Bispo
da Igreja do Porto, e a seus sucessores
instituídos canonicamente para sempre. Os livros antigos, e memórias de
insignes Pontífices e mártires, que nas Igrejas de Espanha floresceram, dão testemunho das nobres cidades que com a
dignidade pontifical resplandeceram antigamente nela. Porém a
destruição, que depois houve nas cidades e igrejas, nos manifesta a que
na maior parte de
Espanha fizeram por muitos anos os Mouros ou lsmaelltas(5),
e a memória dos nossos tempos o não ignora... Portanto
ordenamos tomar debaixo da nossa especial protecção vossa
pessoa (Bispo Hugo) e Igreja (Sé do Porto)... Determinamos...
/
274 / que, com a ajuda de Deus, seja restituído à dita Igreja (Sé do
Porto) tudo aquilo que as outras (Igreja de Braga e Igreja de Coimbra)
lhe ocuparam e tomaram de seus
antigos limites enquanto a dita Igreja do Porto esteve destruída, cujos
termos e demarcações se diz que continuavam e estendiam por estes
lugares:
Da foz do Rio Ave, onde se mete no Mar Oceano, e por
ele acima... até
o Rio Douro. Daí passando o Douro à Pesqueira dos Frades(6) e pelo Monte Grande(7) até (» Rio Antuã, e
por esse mesmo Rio (Antuã), assim como desce ao Mar Oceano.
Portanto mandamos que quaisquer igrejas e mosteiros que estão dentro
destes limites (do Douro até o Rio Antuã em todo o seu curso desde a
nascente à foz) dêem à Igreja do Porto a devida obediência e justiça...
Dado em Benevento... a 15 de Agosto de 1115, no ano 17 do Pontificado
do Senhor Pascoal Papa II.» (Catálogo dos Bispos do Porto, II Parte, a
págs. 5 e segs.).
2)
«Item. Aliud priuilegium dominj Calisti papae secundi
in quo continentur limites episcopatus portugalensis
Calistus episcopus seruus seruorum dei uenerabili fratri Hugoni
Portugalens ecclesiae episcopo eiusque successoribus Canonice
substituendis in perpetuum... Statuimus...
Propterea quod de antiquis parrochiae terminis dum portugalensis
prostrata iaceret ecclesia ab alijs ecclesiis ocupatum est precipimus ut
auctore Deo eidem reintegretur ecclesiae quorum uidelicet terminorum
distintio horum finium continuatione distenditur. A fauce Aue flumine ut
cadit in mare occeanum. per ipsum fluuium sursum usque... in dorium
flumen. Item trans dorium flumen a fauce arde per montem de meda. ad
montem nabal ubi nascitur fluuius antusiana qui anteana dicitur. per
ipsum fluuium sicut descendit ad
/
275 /
[Vol. X -
N.º 40 - 1944]
mare oceanum... Haec igitur et alia omnia monasteria uel ecclesiae
quae infra predictos fines continentur apostolica auctoritate precipimus
ut supradictae portugalensis ecclesiae
obedientiam debitam iustitiamque persoluant... Cunctis
autem eidem ecclesiae iusta seruantibus sit pax domini mei
ihesu xpisti quatinus et hic fructum bonae actionis percipiant et apud districtum iudicem premia aeternae pacis inueniant.
AmeN. AmeN. AmeN... Datum Valentiae... Anno M.ºC.ºXX.º Pontificatus autem
domini Calisti. secundi papae. Anno ijº.» (Censual do Cabido da Sé do
Porto, a págs. 3, 4 e 5).
Versão em português pelo autor
deste Estudo:
«Item. Outro Breve do Papa Calisto II, que contém os
limites da Diocese do Porto.
Calisto, Bispo, Servo dos servos de Deus, ao venerável irmão Hugo, Bispo
da Igreja do Porto, e a seus sucessores instituídos canonicamente para
sempre... Ordenamos... que, com ajuda de Deus, seja restituído à dita Igreja do
Porto
tudo aquilo que as outras (a de Braga e a de Coimbra) lhe ocuparam e
tomaram de seus antigos limites enquanto a referida Igreja do Porto
esteve destruída, cujos termos e demarcações se continuavam e estendiam:
Da foz do Rio Ave, onde se mete no Mar Oceano e, por
ele acima...
até o Rio Douro.
!tem. Passando o Rio Douro à
foz do Rio Arda, e pelo Monte de Meda até
o Monte Nabal, onde nasce o Rio Antusiana, que se chama Antuã,
e pelo
mesmo Rio (Antuã) assim como desce até o Mar Oceano(8).
Portanto mandamos que tudo aquilo e assim todos os mosteiros e igrejas
que estão dentro dos preditos limites
/
276 /
dêem à dita Igreja do Porto a devida obediência e justiça... E todos
os que guardarem justiça à mesma Igreja tenham a paz de Nosso Senhor
Jesus Cristo para que, na terra, recebam o fruto da sua boa acção, e
achem diante do rigoroso Juiz o prémio da eterna paz. Assim seja. Assim
seja. Assim seja... Dado em Valência... Ano 1120. E no ano 2.º do
Pontificado do Senhor Calisto, Papa II.»
|
Fig. 1 - Esboço do curso dos dois rios: Antuã e afluente Ul. (Pelo
Tenente Felismino Ferreira da Silva).
Ver MAPA em
ALTA
RESOLUÇÃO (582KB). |
3)
Rio Antuã e sua continuação como limite da Diocese
do Porto com a de Coimbra, no reinado de D. Dinis.
É facto ter o Rio Antuã servido de limite da Diocese do
Porto com a de Coimbra, quando da catalogação das igrejas
do Reino e sua distribuição por dioceses, em 1320, ou seja no tempo de
D. Dinis. Este limite era então o mesmo da delimitação estabelecida
pelos Pontífices Pascoal II e Calisto lI, como fica dito nos números
anteriores.
E daí:
À direita do Antuã (lado do
Porto) em 1320 e, portanto,
já em 1115 e 1120, ficarem as seguintes Igrejas paroquiais da Diocese do
Porto:
Fajões, Cesár, Macieira de Sarnes, Nogueira do Cravo, Vila-Chã (São
Roque), Pindelo, Oliveira de Azeméis, UI, Loureiro, Beduído, Veiros e
Murtosa.
E à esquerda do referido Antuã, do lado de Coimbra, na mesma época, as seguintes Igrejas paroquiais da Diocese de
Coimbra:
Vila Cova de Perrinho, Carregosa, Codal,
Vila-Chã de Cambra, Ossela,
Macinhata de Seixa, Travanca, Pinheiro da Bemposta (Figueiredo), Branca
e Salreu (V. Hist. da igreja
em Portugal por FORTUNATO DE ALMEIDA, voI. 2.º, a págs. 611
e segs.; e Arquivo do Distrito de Aveiro, voI. VI, a págs. 284
e segs.).
Outras provas de identificação do Rio Antuã:
A montante da Ponte da Pedra de Silvares, em Macinhata de Seixa, cerca de 600 metros, há uma boa extensão de terras de
lavoura que ficam na margem direita do Rio Antuã, conhecida pelo nome de
«As Antuãs». Deste facto se conclui que essa extensão de terras, pela
sua situação marginal do Rio Antuã, tira o nome do próprio rio Antuã −
mais outra prova da identificação deste Rio. (Este esclarecimento
foi-me obsequiosamente dado pelo Dr. Armando Nunes de Freitas, do Alméu).
/
277 /
IV
Identificação do Rio Ul, afluente do Rio Antuã.
Nasce o Rio UI em Fajões, no lugar de S. Mamede, no vale sito entre a
Serra do Pinheiro e o Monte de S. Marcos. Segue depois por Milheirós de
Poiares, S. João da Madeira, Couto de Cucujães, Santiago de Riba-UI(9), e Ul, onde se
mete no Antuã.
Rio UI é seu nome autêntico, como se depreende de um documento oficial dos princípios do século XII.
|
|
Fig. 2 − Ponte moderna de Cavaleiros
(Riba-Ul − Oliveira de Azeméis) |
Esse documento é a «Carta da
Instituição e Doação do
Couto de Cucujães ao Mosteiro Beneditino da mesma terra
de Cucujães por D. Afonso Henriques, de 7 de Julho de 1139
(anos de Cristo)», que diz: «In Domine sancte et individue trinitatis
patris et filii nec non et Spiritus sancti trinitas indiuisa que numquam
erit finienda per cuncta seculorum secula. Ego egregius infans Alfonsus gloriosissimi ispanie imperatoris nepos et consulis domini
henrrici et regine Tarasie filius Dei uero prouidentia totius Portugalensis prouincie princeps... facio Cautum ad illud
monasterium sancti
Martini de cucuianes... et habet iacenciam predictum monasterium in loco qui uocatur
Cucugianes sob monte Castro Recharei discurrente
riuulo VL portugalensi territorio... Facta series
cauti nonas Julii
sob era M.ªC.ºLXXVlj.ª Ego anfonsus iam supranominatus hanc kartam
propria mano roboro et hec signa facimus...»
/ 278 /
Em português:
«Em nome da Santa e Indivídua
Trindade − Padre, Filho
e Espírito Santo, Trindade inseparável que nunca terá fim
por todos os séculos dos séculos.
Eu Afonso, egrégio Infante,
filho do Conde D. Henrique e da Rainha Teresa, e neto do gloriosíssimo Imperador das Espanhas
e, por graça de Deus, Príncipe de todo o Condado Portucalense... faço
Couto para o Mosteiro de S. Martinho de Cucujães... Está edificado o dito Mosteiro no
lugar que se chama Cucujães sob o monte Castro Recarei, ladeado pela
corrente do Rio Ul, em território portucalense.
... Carta de Couto, feita a 7 de Julho de
1177 (era de Cristo − 1139, a
7 de Julho). Eu Afonso, já supradito, rubrico
esta Carta por minha própria mão, e assinamos...» (A fl. 62. v. do
1.º do Real Arquivo da Torre do Tombo, no Maço XII dos Forais antigos).
Tem o Rio UI três afluentes: o Ribeiro de Arrifana ou
da Lagoa(10), da margem direita, que nasce na Fonte do Córgo,
junto da Feira dos Quatro, em Arrifana; o Ribeiro do Pintor;
e o Ribeiro de Cavaleiros, da margem esquerda, que nasce a nordeste de
Nogueira do Cravo.
NOTA. − O Rio UI, desde a
sua nascente até Cucujães, toma o nome das terras por onde corre, e que
lhe é dado pelos moradores delas. Porém na
sua entrada em Cucujães e passagem pela pequena povoação da Pica e dos
Moinhos até o lugar do Feirral, também de Cucujães, é mais conhecido o
Rio UI pela designação de Rio da Pica. Com este nome foi ele, em tempos
remotos, muito conhecido e considerado pelos habitantes de Cucujães e
das terras circunvizinhas e ainda de outras mais afastadas que o não
conheciam por outro nome a começar da origem. E isto devido tão somente à
vetusta Ponte da Pica, ainda existente na dita povoação, e à Estrada
antiga que pela mesma passou e à tradição regional. E desde o Feirral
até desaguar no Antuã, continua com a mesma denominação de Rio UI
que, desde a origem, lhe dá a supradita Carta da Instituição e Doação do
Couto ao Mosteiro Beneditino de Cucujães, e com o mesmo nome que dá à
freguesia
de Santiago de Riba-UI.
A construção da Ponte da Margonça (1857-1861) a meio quilómetro de distância a montante da povoação da Pica, e a abertura da Estrada
Nacional, vieram substituir, no seu movimento e trânsito, cada vez
maiores, a velha Ponte e a antiga Estrada, já mencionadas, que deixaram
em paz e, portanto, ao abandono, sem respeito algum pela sua antiguidade
multissecular e serviços de bem terem servido os que por lá passaram e
passearam.
/
279 /
Digressão:
O Monte de Cesár e Romariz, conhecido em Romariz
pelo nome de Serra de Vila Nova, e em Cesár pelo nome de Monte do
Pinheiro, era antigamente denominado Monte Castro Calvo(11). No sopé
desse monte fica o lugar de Monte Calvo de Romariz, junto do qual se
chama Mar Coalhado ao Rio UI.
Conseguintemente:
Com a documentação acima transcrita e mais razões aduzidas, julga o autor deste
Estudo provada a identificação do
Rio Antuã e do seu afluente Rio UI, e assim desfeita a confusão deste
com o Antuã que se nota nos seus respectivos traçados nas cartas
hidrográficas e geográficas já aqui mencionadas, e nalguns livros de
geografia superiormente aprovados, e ainda noutros sem aprovação
oficial.
Ao Governo compete ordenar
as rectificações necessárias dos erros hidrográficos sobre a
identificação do
Rio Antuã e do Rio UI.
PARTE SEGUNDA E ÚLTIMA
Via Militar Romana com suas pontes entre Emínio (Coimbra) e Cale (Gaia, Porto primitivo), e importância
de Emínio, como ponto central e estação militar da própria Via Militar
Romana, e sua ligação com os Castros
dentro da mesma zona.
I
A Península Hispânica, de que fazia parte a Província
da Lusitânia, depois de conquistada e ocupada pelos Romanos, era
obrigada a estar em contacto com Roma, capital do Império Romano. E,
para isso, havia necessidade de estradas para transporte de tropas e
manutenção da ordem, e para desenvolver o comércio e a indústria, dar
ordem aos negócios e transmitir as determinações dos superiores.
E daí a Vila Militar Romana de Lisboa a Braga com suas estações militares
na extensão de 244 milhas no tempo do imperador Antonino Pio (138-161).
/
280 /
II
Troço da Via Militar Romana entre Emínio(12) e Cale
e grandeza de Emínio na evolução dos tempos.
Dentro da Via Militar Romana, na zona compreendida entre Emínio e Cale,
com Estações militares intermediárias, Talábriga e Lancóbriga, a mais
notável das estações militares era a de Emínio, cidade da Lusitânia,
assentada na margem direita do Rio Mondego, e de grande importância
militar.
Esta cidade, que marcava o ponto central da
Via Militar Romana, foi
muito considerada pela sua grandeza e supremacia que deixou bem
assinaladas durante a dominação romana, bárbara e mouresca.
Senão, vejamos a título de curiosidade:
a) Emínio no domínio romano.
(Lápide comemorativa
Ano 305-306
com a inscrição em 9 linhas)
«At Avcmentum
Reipvblicae Nato
Dilectoque Prin
cipi Domino Nostro Flavio
Valerio Constantio
Pio Felici Invicto Av
gvsto Pontifici Maxi-
mo Tribvnicia Potestate Patri Patriae Proconsvli Ci-
vitas Aeminiensis.»).
Inscrição completada:
− «A nosso senhor Flávio Valério Constâncio, pio, feliz, invicto,
augusto, pontífice máximo, com poder tribunício, pai da pátria, proconsul, nascido para engrandecimento da República e príncipe querido,
a cidade de Emínio dedica este monumento.»
(Encontrada em Coimbra, e catalogada no Museu de
Machado de Castro. II. Secções de Arte e Arqueologia. Galeria romana.
Sala III, n.º 14 − pág. 9).
/
281 /
Esta lápide é um testemunho público para tornar conhecido da posteridade
o nome do imperador Constâncio Cloro (Flávio Valério).
Pela sua inscrição se prova que os habitantes de Emínio, cidade da
Lusitânia, quiseram sustentar e perpetuar a honra da sua cidade,
rendendo homenagem de reconhecimento e admiração ao seu César,
enaltecendo-lhe, com brio, o seu amor à República e generosidade para
com os seus súbditos.
b) Emínio, também corte de reis nos tempos mourescos em o princípio do
século VllI.
Prosseguindo a investigação
sobre os mouros, quando da sua dominação na
Lusitânia, verifica-se ter continuado Emínio a ser muito considerada,
nesses tempos, quer por terem nela os reis mouros o seu paço, quer pelo
seu comércio e indústria, e pelo seu querer viver em paz e na estimação de todos sem excluir os de crenças diferentes. Haja em
vista as
determinações do régulo mouro no território de Coimbra a benefício dos
Religiosos do Mosteiro de Lorvão, permitindo-lhes o seu abastecimento e
negócio de mercadorias na Emínio, com liberdade e isenção de direitos.
Documento comprovativo do facto:
«Alboacem, filho de Mahomet Athamar, filho de Tarife,
a rogo dos cristãos fiz esta firma conforme o seu costume − O − e
deram-me pela confirmação dois bons cavalos, e eu
lhes confirmei tudo o sobredito.
Paguem os cristãos dobrado tributo dos mouros.
Das igrejas por cada uma 25 pesos de boa prata, e as
episcopais 100, e os mosteiros 50.
Os bispos cristãos não amaldiçoem os reis mouros, e,
se tal fizerem, sejam mortos.
Os sacerdotes não celebrem suas missas senão com as portas fechadas;
fazendo o contrário, paguem 10 pesos de prata.
Os mosteiros, que estão em meu território e senhorio,
possuam seus bens em paz, e paguem os sobreditos 50 pesos.
O mosteiro das montanhas, que se chama de Lorvão, não pague peso algum;
porque, com boa vontade, me mostram onde trazem veados, e fazem aos
mouros bom gasalhado, e nunca achei naqueles, que aí moram, mentira,
nem má vontade; e possuam em paz e boa quietação todas as suas herdades,
e vão, e venham a Coimbra com toda a liberdade, de dia e de noite,
quando quiserem, e comprem, e vendam sem pagar direitos; com tal
condição que não saiam fora de minhas terras sem minha licença. Carta de
lei na era dos cristãos 722 e, segundo os árabes, 147 aos 13 da Lua
Dulhija (Lua de
Dezembro)». (Discurso sobre os Desvarios do Espírito Humano pelo Abade PLUQUET. Tradução por Frei DOMINGOS
VIEIRA,
2.º voI. a pág. 193).
/
282 /
III
Rastro da Via Militar Romana decalcado pela estrada real, depois
estrada velha, desde o extremo sul de S. João da Madeira até à ponte de
Silvares, de Macinhata de Seixa.
O rastro da remota Via Militar Romana é bem patente, em
toda a sua
extensão, desde o extremo sul de S. João da Madeira até à Ponte de
Silvares, como se vê pela sua directriz, largura e calçadas muito
antigas, em bastantes pontos, feitas de pedra grada e bem conservadas.
E assim, entrando em investigações
itinerárias locais, vemos que a mesma
Via Militar se continuava, no seu percurso, de junto da antiga Igreja de S. João da Madeira(13) em
direitura ao Urreiro, e daí pelos lugares de Cucujães − Faria de Cima,
Faria de Baixo, atravessando a Ponte e povoação da Pica por onde corre o Rio
Ul, e, a seguir, pelo lugar das Cavadas.
Passava a Bráfemes (aqui sobreposta pela Estrada Nacional), indo até à
entrada das Curvas de Carcavelos, de Riba-Ul, que deixava a poente para
costear, a nascente, o lugar de Pereira, também de Riba-Ul, e avançar
até o alto da Farrapa para descer logo pelo meio da povoação de Oliveira
de Azeméis, continuando pelo Cruzeiro de Fundo de Rua, Portela do Alméu(14) (lugar que assenta a meia encosta de um outeiro no termo de Oliveira
de Azeméis), até à Ponte de Silvares, sobre o Rio Antuã.
Porém com a queda do Império Romano (Império de Ocidente) no ano de 476(15), e consequente
dominação de outros diferentes povos que se lhe
seguiram, sobreveio a decadência da anterior grandeza da Via Militar
Romana nesta Província da Lusitânia. E com o desaparecimento do antigo
mundo romano, e consequente surgimento de um novo mundo, perdeu a mesma
Via Militar a sua designação de «Romana», ficando-lhe apenas o renome da
sua grandeza passada.
/
283 /
IV
Estrada real (depois estrada velha) sucedânea
da Via
Militar Romana, no território de Oliveira de Azeméis, e sua substituição pela Estrada nacional.
Como já se advertiu, sucederam aos romanos, nesta Província da Lusitânia, os povos bárbaros e, em seguida, os mouros, e
não consta de fonte alguma que uns e outros,
durante a sua dominação, tivessem aberto novos caminhos ou novas
estradas.
Sabemos que, após a expulsão dos mouros, a antiga
Via Militar Romana
começou a ser chamada pelos Portucalenses «Estrada Mourisca», nome que
vulgarmente, mas impropriamente, se dava às estradas e bem assim às pontes da remota
antiguidade. Também é certo que a Via Militar entre Lisboa e Porto
começou a ter a denominação de «Estrada real» desde o reinado de D.
Maria I (a Piedosa), e a ser empedrada, e desviada, em muitos pontos, do
seu antigo percurso.
Mais:
Devido ao aumento constante da população, à expansão do comércio, e ao
desenvolvimento da agricultura, das artes e indústrias, e dos Caminhos
de Ferro com seus ramais para diferentes partes, não podia a Estrada
real comportar o movimento e trânsito, nos dois sentidos, produzidos
pelo fomento da economia regional e até mesmo nacional, tornando-se, por
conseguinte, necessária e urgente outra estrada para
activar e regulamentar os serviços da viação geral cada vez mais
consideráveis, a fim de evitar tardanças e
atropelamentos com todos os
seus resultantes inconvenientes.
E daí a abertura da Estrada nacional, nos meados do século XIX(16),
entre Lisboa e Porto, a qual veio substituir a Estrada real. Desde
então, a mesma Estrada real, em seu percurso dentro do território de Oliveira de Azeméis, ficou sendo
chamada pelo povo «Estrada velha». E a
Estrada nacional, no seu percurso, dentro do referido território, segue
a Estrada velha com a mesma directriz e aproximações pouco distanciadas,
ora de um, ora de outro lado e com algumas sobreposições.
/
284 /
Segue o esboço do traçado das duas estradas:
Estrada real (depois Estrada velha) e Estrada nacional(17).
|
Fig. 3 −
Esboço do traçado das duas estradas: Estrada real (depois estrada velha)
e estrada nacional,
no território de Oliveira de Azeméis (Pelo Dr. Gaspar Soares de Carvalho) |
V
Pontes da Vila Militar Romana entre Cale e Emínio.
A Via Militar Romana, no seu percurso entre Cale e
Emínio, para o seu movimento e trânsito. necessitava de
pontes para atravessar os seguintes rios: Ul, em Cucujães,
no lugar da Pica; Antuã, em Macinhata de Seixa, próximo
do lugar de Silvares; Vouga, próximo do Cabeça do Vouga;
e o Águeda, junto da povoação de Águeda.
/
285 /
E daí a construção de pontes sobre os referidos rios para inteiro
acabamento da Via Militar Romana, a fim de não ficar
uma estrada de lanços e sem continuidade.
Vl
Pontes antigas de pedra ligadas à
Via Militar Romana,
sobre o Rio UI e o Rio Antuã.
São elas:
a) Ponte da Pica, no lugar da Pica, de Cucujães.
Assenta esta Ponte em rocha que alastra fundo pelo
leito e margens do Rio Ul no dito lugar da Pica.
eus três arcos são em
semicírculo com a abóbada feita em silharia de pedra em picola fina
e assente à fiada com as amarrações devidas: o arco do centro, que é
o maior, mede de altura 5 metros e de vão 6; e cada um dos laterais,
que são complementares, tem de altura 2,5 metros e de vão 2. Os
arcos têm a mesma largura da Ponte, que é de 3,5 metros. Cada um dos
arcos laterais está distanciado do arco central 3 metros, mas ambos
ligados a ele por uma parede de granito toda maciça. |
|
Fig. 4 − Ponte antiga do lugar da Pica (Cucujães − Oliveira de
Azeméis) |
Esta parede está reforçada com blocos de granito para
segurança da Ponte. Tem esta Ponte o seu
tabuleiro empedrado e em forma de cavalete e mede de comprimento 16
metros, de altura dos bordos ou parapeitos, que são de alvenaria, 1
metro, e de altura do fecho do arco central ao capeado do bordo 1,5
metros.
/
286 /
b) Ponte de Silvares(18), no lugar de Silvares, de Macinhata de Seixa.
|
O alicerce desta Ponte deve ter bastante fundo, atendendo a que fica entre campos extensos e planos, e que
o Rio Antuã, sobre o qual está, corre sem velocidade de corrente por
falta de inclinação do seu leito, determinada certamente por uma
sedimentação considerável com o decorrer dos tempos. É de um só arco em
semicírculo com a abóbada feita em silharia de pedra em picola fina e
assente à fiada com amarrações, ou seja, a matar a junta. De comprimento mede 8,62 metros; de altura do bordo ou parapeito
1 metro; de largura do tabuleiro 3,10 metros, e de altura do arco
(flecha) à água 4 metros. |
Fig. 5 − Ponte antiga de Silvares
(Silvares de Macinhata de Seixa −
Oliveira
de Azeméis) |
Há quatro pilastras nesta Ponte que estão levantadas nas extremidades de
cada bordo, como seu anteparo.
NOTA
− E de supor que tanto a Ponte da Pica sobre o Rio
Ul, como a de
Silvares sobre o Antuã,
ambas de pedra, sejam coevas da Via Militar Romana por estes rios não
serem navegáveis e, portanto, utilizáveis para pontes de barcas.
Demais: uma e outra Ponte são de arquitectura maciça, tosca e sem ornatos de cantaria em relevo, como da ordem toscana ou rústica procedente
dos romanos.
Também:
No alicerce da antiga Igreja de Ul, não longe da supra dita Ponte de Silvares, foi encontrado um cipo com a marcação M.XII.
Este, que está
nos Paços do Concelho de Oliveira de Azeméis, comprova a directriz da
Via Militar Romana, nos séculos idos, entre Langóbriga e Talábriga com
passagem pela mesma Ponte.
/
287 /
A propósito:
A velha Ponte do Marnel, como está actualmente, não seria uma sobreposição de outra antiga (romana) em corrente de águas sem
navegabilidade, e da mesma época da Ponte da Pica e da Ponte de
Silvares?
A resposta era uma escavação junto dos pilares da mesma Ponte já
intransitável, abandonada e, na sua maior parte, soterrada!
VII
Nicho no bordo, do lado nascente, da ponte
antiga de
Silvares.
A Ponte de Silvares tem a meio do seu bordo, a nascente, um nicho com a
invocação de «Senhor da Ponte da Pedra», ou de «Senhor da Ponte». É em
granito com 2 metros de altura, 3 de largura e 60 centímetros de
fundura. Tem mais uma cimalha em meia-cana, e 15 centímetros de balanço fora. Dentro
está uma cruz de pedra esquadriada com 1,5 metros de altura, 20 centímetros de largura e 60
no encaixe de uma peanha com esta inscrição: |
|
Fig. 6 − Nicho da Ponte de Silvares
(Silvares −
Oliveira de Azeméis) |
«EI-Rei N. Sñr. D. João V mandou fazer no anno de 1746 annos, sendo
Provedor desta Comarca(19) Manuel Cardoso de Andrade.»
E, na base da cruz: «Pelas Almas
−
P. N. A. M.».
Este nicho mostra a religiosidade de El-Rei D. João V que
o mandou fazer, segundo reza a tradição local, em cumprimento de um
voto que fez no ano de 1746, quando do seu regresso do Porto para
Lisboa, chegou com a sua comitiva
junto da Ponte de Silvares, não tendo sido possível a passagem
/
288 / pela mesma sem perigo de
vida imediato, devido ao grande volume de águas, que cobriam a Ponte, impedindo assim a
travessia. E como a espera demorada causava dano aos negócios do Reino,
D. João V. com devoto fervor, dirigiu súplicas às Almas do Purgatório para que alcançassem do Céu, por sua intercessão, o baixamento das águas para
poder seguir viagem «animae in Purgatorio detentae pro
nobis orare valent»(20).
E D. João V foi ouvido em sua oração, e daí, com
o coração agradecido, e como perpétua recordação da graça
obtida, mandou fazer o referido nicho. com a sua inscrição,
como testemunho da sua confiança e esperança em Deus.
NOTA − Pelo seu aspecto e feitio, vê-se que o mesmo nicho não é da época da fundação da Ponte, mas sim de outra muitíssimo afastada.
VlII
Pontes medievais (de
pedra) sobre o Rio Vouga e o Rio Águeda e antiguidade da sua construção.
A principal estrada dos
tempos antigos, na Lusitânia, foi a Via Militar Romana.
Porém, com o correr dos tempos, decaiu a mesma da sua grandeza,
acabando assim o seu aparato bélico e, portanto, o movimento das suas estações militares.
Apesar de tudo, a estrada continuou, porque tinha mesmo de continuar a existir para o movimento e trânsito, e portanto a
necessitar de pontes, onde necessárias, como seu complemento para o interesse geral.
Essa estrada antiga, no seu trajecto pela zona, chamada
hoje Beira litoral, atravessava o Rio Vouga e o Rio Águeda, onde foram feitas duas pontes de pedra (uma em cada rio)
nos fins do
século XIIl, tendo demorado trinta e dois anos, ou mais, os trabalhos
da sua construção, como mostram os seguintes documentos comprovativos
deste facto:
a) Testamento de Dom Gonçalo Gonçalves, Chantre
da Sé do Porto e da Sé de Coimbra, datado do ano de 1262 (anos de
Cristo). Nesse testamento, entre outros subsídios, mandou dar:
− «Item ad Pontem uauga X. libras.. Item Ad pontem
de Agueta ij libras. Item Mando Sancio petri anullum de Robidalais cum
quibusdam alijs anulis paruulis quod de eis faciet illud quod uiderit
ad salutem animae patris sui domni
Petri homem et cum consilio bonorum uirorum et uideretur
/
289 /
mihi quod deberent uendi et quod daretur inde pecunia ad pontem de
uaugua.. .» (Censual do Cabido da Sé do Porto, a págs. 405, 407 e
408).
b) Testamento de Dom Sancho Pires, Bispo do Porto, datado do ano de
1294 (anos de Cristo), em que deixou para as sobreditas Pontes 100
morabitinos antigos, e 20 libras.
Letra do testamento: «Item Mandamus C. morabitinos ueteres quos damos
pro anulis de Roby et de Esmeralda qui fuerunt patris nostri pontibus de
vouga et de Agata pro anima patris nostri uel illius a quo ipsum anulum
habuit si ad eum de jure spectat et praeter hoc mandamos ipsis pontibus
XX.ti libras». (Obra citada, a pág. 436).
c) Dom RODRIGO DA CUNHA, no seu
Catálogo dos Bispos do Porto, datado de
1623, referindo-se ao testamento de Dom Sancho Pires, diz:
«Tambem deixou çerta cantidade para se acabarem as pontes de Canauezes, Vouga e Agueda», (Catálogo dos
Bispos do Porto, II Parte, a pág. 112).
Destes documentos se infere, pois, a antiguidade da Ponte do Vouga e da Ponte do
Águeda, o espaço de tempo da sua
construção, e que os referidos donativos não foram para conservação mas
sim para construção de pontes de pedra.
IX
Reflexões sobre as pontes medievais do Rio Vouga e
do Rio Águeda.
Pelos testamentos transcritos, em o número anterior, podemos considerar
as supraditas pontes como primitivas, com o fundamento de que ainda não
apareceu documento algum que fizesse qualquer referência a outras pontes
anteriores sobre o Rio Vouga e o Rio Águeda, sendo de crer, portanto,
que a travessia da Via Militar Romana, sobre os mesmos rios, tivesse
sido feita, durante o domínio romano, em pontes de barcas, ou em barcas
de passagem, por serem ambos rios navegáveis, e que essas pontes ou
barcas tivessem continuado a servir de passagem na dominação bárbara,
moura e princípios da portucalense, ou da nascente nacionalidade
portuguesa.
E a utilização das pontes de barcas, ou de barcas de passagem,
sobre
o Rio Vouga e o Rio Águeda, não era um facto isolado, porquanto já
havia, desde tempos imemoriais, o exemplo da Ponte de Barcas no Rio Douro(21).
/
290 /
Graças, portanto, ao desenvolvimento do progresso
humano, a utilização
das pontes de barcas, em os supraditos rios, findou:
a) No Rio Vouga e Rio Águeda, em os fins do
século XIII, com a construção das suas pontes de pedra.
b) No Rio Douro, em os meados do século XIX, com o assentamento da
ponte pênsil, feita de vergas de ferro.
NOTA − Na parede da Ponte do Vouga, do lado sul, está metida uma
lápide com a seguinte inscrição:
«ESTA OBRA MANDOU FAZER O
SENHOR
DOM JOAM REI DE PORTUGAL
O QINTO qEV DOS (Deus) GOOD (Guarde) 1713 A.»
Portanto:
A Ponte actual do Vouga teria sido sobreposta ou uma reconstrução da Ponte medieval?
Responda pelo autor deste estudo quem souber!
X
Nota histórica de alguns Castros(22) ou Crastos entre
Emínio e Cale e sua ligação com a Via Militar Romana.
Os povos, no caminho acidentado da
vida, vão deixando monumentos a
testemunharem a sua passagem fugaz pela terra: Brevi vivens tempore et
fugit velut umbra
(23).
Esses monumentos, que ficaram a ser do tempo passado,
projectarão sempre luz viva e reflectida na directriz do futuro.
E assim:
Os Romanos, com a sua Via Militar
ab Olysipone pela
/
291 /
[Vol. X -
N.º 40 - 1944]
Estremadura e zona chamada hoje Beira Litoral e Douro Litoral ad
Braccaram Augustam, tiveram por cálculo:
a) Aproveitar o clima mais suave entre as serras e o mar, e o território
menos acidentado, mais fértil e de abundante produção agrícola.
b) Facilitar, no trajecto da mesma
Via Militar, a ligação dos núcleos
populacionais dos Castros anteriores à sua dominação pelos caminhos e
estradas que a ela convergiam.
Dalguns desses Castros existem ainda vestígios na zona compreendida
entre Coimbra (antiga Emínio) e Gaia (Porto primitivo) que, como
atalaias e monumentos do longínquo passado, serviram de reduto de
abrigo e defesa aos remotos
antepassados desta região.
Esses Castros na referida zona, de que temos conhecimento, são os seguintes, pela sua ordem geográfica:
Monte Crasto, de Anadia.
Civitas ou Castellum Marnelis, da freguesia de Lamas,
Oppida do Vouga,
no Cabeço do Vouga.
Castro da Branca, da freguesia da Branca.
Castro de Damonde, da freguesia de Travanca.
Castro de Ul, da freguesia de UI, sito em frente da
Igreja do lado poente.
Castro de Ossela, da freguesia de Ossela.
Castro de Lações; de Oliveira de Azeméis.
Castro de Madail, no sítio de Vila-Cova, de Madail.
Castro Recarei, de
S. Martinho da Gandra, próximo do Couto de Cucujães.
Castelo da Feira, da Vila da Feira.
Castro de Fiães, da freguesia de Fiães.
Crasto do Murado (Monte da Senhora da Saúde) da freguesia de Pedroso.
Castelo de Gaia.
XI
Ligação itinerária da Via Militar Romana e sua sucedânea, na sua
passagem pela Ponte e povoação da Pica, com o Monte Castro Recarei, de
S. Martinho da Gandra, e o Castelo da Feira, acima nomeados.
Da supradita estrada que passava pela Ponte e povoação da Pica em
Cucujães, quase à entrada das Cavadas (lugar), partia um ramal de
caminho que punha em comunicação com a mesma estrada o Monte Castro
Recarei e o Castelo da Feira. Descia esse ramal ao Rio Ul, no sítio
denominado Feirral, onde atravessava uma ponte antiga (ponte antiga
/
292 /
do Feirral), já derruída pela enchente de 1879, e daí bifurcava-se:
a) Um caminho seguia em direcção ao Monte Castro Recarei, o qual
delimitava, ao sul, o antigo Couto Afonsino, de Cucujães, com Vila-Cova,
de Santiago de Riba Ul, e a poente com Maçada, de S. Martinho da Gandra,
e com Pereira, de S. Vicente de Pereira. «...Et quomodo separat Peias(24) cum Pereira. Et
quomodo separat Peias cum Mazada. Et quomodo dividit
Peias cum villa Coua...»(25)
O mesmo caminho público de delimitação do Couto, em
Vila-Cova, ficava
afastado, cerca de 300 metros, do Monte Castro Recarei. E deste caminho
seguia um braço que ladeava o mesmo Castro Recarei, a sul, e ia ligar
com o caminho da delimitação, na referida povoação de Maçada, que
continuava para Pereira.
b) O outro caminho prosseguia na directriz do Castelo da Feira,
avançando junto da cerca do Mosteiro beneditino,
do lado norte, e daí pelos lugares da Costa e de Fermil (Fromele), de Cucujães, e também pela freguesia de Mosteirô (Porzelio), do
lado nascente e norte, e pela freguesia de Fornos, que atravessava a poente e, a seguir, ao Castelo da Feira.
XII
Diferentes povos, possessores dos Castros, em períodos
sucessivos entre Emínio e Cale.
Os vestígios encontrados nos Castros e terrenos circunjacentes, de que
já falámos, mostram quais os povos antigos que neles sucederam através
dos tempos também antigos. Como exemplo a citar, tomaremos aqui, sob este ponto de
vista, o
Castro de S. Martinho da Gandra, denominado nos tempos medievais «Monte
Castro Recarei». Este Castro ligava com a Via Militar Romana no lugar
das Cavadas, já mencionado, por um caminho de que ainda há vestígios.
Nas ruínas deste monumento da alta antiguidade e suas cercanias, como
já dissemos algures, foram encontrados os seguintes objectos:
a) Do tempo pré-histórico ou da época da pedra
lascada (Época paleolítica):
1 machado (coup-de-poing) de quartzite lascada.
/
293 /
b) Do tempo proto-histórico ou da época da pedra
polida (Época neolítica):
2 machados de pedra na escavação de uma mamoa, no alto do lugar de Rebordões, de Cucujães;
2 machados votivos de pedra polida; e outros
machados de pedra de uso pessoal e doméstico;
3 mós de pedra do tipo neolítico, sendo uma de
forma circular, e duas em forma de trapézio alongado e lisas na face inferior e abauladas na superior;
|
Fig. 7 − Museu Arqueológico e Etnológico de Cucujães |
2 falos e um escroto, de pedra dura, emblemas
dos órgãos da geração − masculinos, objectos estes
de devocionismo e de veneração supersticiosa dos povos idólatras da
antiguidade;
1 fragmento de argila muito grosseira, quartzosa e micácea.
c) Do tempo histórico:
13 fragmentos de tégulas (telhas de rebordo);
11 mós redondas. (Época
romana).
/
294 /
Pelos supraditos objectos se vê que, nesta região,
viveram povos da 1.ª idade (Era da Pedra), também povos dos
tempos proto-históricos, e ainda dos tempos históricos.
E que o Castro Recarei é muito anterior à conquista da
Lusitânia pelos romanos.
NOTA − Os mesmos objectos, encontrados no Castro Recarei e
seus arredores, com outros mais, formam a colectânea de um pequeno
Museu, na Sacristia da Igreja Matriz do Couto de Cucujães.
Foi seu organizador o autor deste Estudo.
NOTA FINAL
Merecem uma referência especial, neste Estudo, os indivíduos a
seguir mencionados:
Padre − Manuel Fernandes dos Santos, abade de Romariz, distinto
arqueólogo e investigador regional. Este identificou e relacionou com os
modernos os nomes antigos dos montes que foram utilizados como limites
eclesiásticos da Diocese do Porto com a de Coimbra no tempo dos
Pontífices − Pascoal II e Calisto II, desde o Rio Douro à foz do Rio
Arda, e daí
à nascente do Rio Antuã.
Doutor − Gaspar Soares de Carvalho, professor assistente na Faculdade
de Ciências Geológicas da Universidade de Coimbra e autor de um Estudo
geológico da região de Oliveira de Azeméis. Para este estudo Sua
Excelência organizou o esboço do traçado das duas estradas: estrada
real e estrada nacional desde o extremo sul da freguesia e vila de S. João da Madeira até o Curval, de Pinheiro da Bemposta, e tirou as
fotografias dalgumas pontes das estradas referidas dentro do mesmo
percurso.
Tenente da Armada − Felismino
Ferreira da Silva, funcionário do
Ministério da Marinha, na Direcção de Hidrografia. Este devotado amigo
da sua terra do Couto de Cucujães, houve por bem contribuir, para este
Estudo, com o esboço Hidrográfico do Rio Antuã e do seu afluente Rio UI,
com suas pontes e povoações marginais. E neste trabalho encontrei sempre
da sua parte não só palavras amigas de incitamento e animação, mas
também bastantes sugestões que muito valorizaram o rigor histórico
desta obra.
A todos estes meus Amigos, sempre de coração aberto, leal e franco, para
me prestarem os seus bons serviços,
os protestos da minha cordial gratidão.
Abade JOÃO DOMINGOS AREDE |