EVOCANDO O PASSADO
UM facto notável marcou a passagem do refugiado polaco Mr. STEFAN WLOSZCZEWSKI pela nossa terra, no verão do 1940. Foi a publicação, em língua francesa, de um
valioso repositório de documentos e notícias históricas
que nos apresenta quadros sugestivos da antiguidade
de Mogofores(1).
Se não vai até à era da fundação desta risonha povoação
da beira-Cértima, mostra-nos, no entanto, que ela já existia em 1143,
ao alvorecer da nacionalidade(2).
Publica a carta régia de 29 de Julho de 1226 pela qual
D. Sancho II doa a João Dias a sua vila de Mogofores, em
atenção aos serviços prestados por este fidalgo, e reproduz a cópia do
segundo foral dado por D. Manuel, em 8 de Maio de 1520,
à «terra e
concelho de Mogofores»(3).
Sobre este concelho insere aquele
opúsculo ligeiríssimas notas que convém ampliar porque o assunto interessa
à história da nossa terra.
O concelho de Mogofores existiu com câmara, procurador, juiz ordinário, almotacé e escrivães até 1836, como
existiram tantos outros que formaram a vasta rede de pequenos concelhos
em que o país esteve dividido desde a Idade Média. Só na área do actual
concelho de Anadia existiam onze, pelo menos.
Quando em 1835 foram criados os Governos civis,
o de Aveiro ficou com 52 concelhos, entre os quais se
encontrava
o de Mogofores(4). (MARQUES GOMES,
O Distrito de Aveiro).
/
170 /
|
Mas logo no ano seguinte o ministro Passos Manuel alterou profundamente
o antigo sistema administrativo com
os decretos de 6 de Novembro e 31 de Dezembro, estabelecendo nova organização
e uma divisão territorial que fez
desaparecer os pequenos concelhos para dar lugar a mais amplas
circunscrições municipais.
Foi então criado o concelho de Anadia.
O concelho de Mogofores deixou vestígios que ainda chegaram ao nosso
tempo e que devemos pôr em relevo.
A casa que serviu de Paços do
concelho foi aquela que ainda há dois anos
existia contígua ao solar dos Caldeiras, com frente para a fonte do
Cruzeiro(5). Os padres salesianos demoliram-na para ampliação do seu
Instituto.
|
Mogofores − Cruzeiro erigido
em 1733. |
Indício característico era também o «curral do concelho»(6) cuja
tradição existia ainda no tempo da minha meninice e localizava-o num
terreiro que eu ainda conheci à
esquina da rua da Estação, onde
está agora a casa do Sr. José Seabra.
O rossio, nome que segundo ALEXANDRE HERCULANO se dava aos
logradoiros dos concelhos, é ainda
hoje propriedade da freguesia e uma significativa memória do passado.
Dos funcionários do concelho extinto, ficou o juiz ordinário,
/ 171 / que se manteve ainda muitos anos com o nome
de juiz eleito.
Era escolhido pelo povo para servir durante um ano, e julgava os delitos
de pouca importância.
Em tempos remotos, Mogofores pertenceu à comarca
do Vouga(7); em 1750 estava
integrada na de Coimbra
(Dicionário Geográfico − Torre do Tombo) e em 1836 na de Águeda, criada
nesta data, na qual ficaram incorporados os concelhos de Anadia, S.
Lourenço do Bairro e outros; passou para a de Anadia quando
esta foi instituída, em 1855. (M. GOMES,
ob. cit.). Foi couto dos mosteiros e dos fidalgos(8). Anteriormente era
vila reguenga e pagava à coroa tributos iguais aos das vilas suas
vizinhas e mais o préstamo, em dinheiro ou géneros, ao infante. (lnquirições
de D. Afonso lI, de 1220).
ALEXANDRE HERCULANO descobriu
no livro 3.º das lnquirições ordenadas por D. Afonso III em 1258, um documento a que chamou «Rol das «Cavalarias
do Vouga» no qual figura Mogofores, com Alféloas, Arcos, Avelãs e Ois,
sujeita ao tributo militar em homens a cavalo com escudo e lança, para
os fossados(9), (ROCHA MADAHIL,
Arq. Dist. de Aveiro, vol. VIII).
Com a abolição do concelho, em 1836, Mogofores ficou
simples freguesia incorporada no novo concelho de Anadia.
Entre as Juntas de paróquia que têm administrado o nosso
/ 172 /
património é justo salientar, pelos assinalados serviços que prestou, a
que serviu em 1886 sob a presidência do Sr. Barão do Cruzeiro.
Esta Junta procedeu a obras dispendiosas de restauração na igreja da
freguesia que estava quase em ruínas, tão longe ia já a última reparação
feita em 1720. Construiu o coro − uma inovação que se impunha − e a torre
que veio substituir um t6scoe acanhado simulacro de campanário, feito de
duas pedras levantadas sobre um estreito eirado, aonde o rapazio :subia
livremente, na ânsia de puxar o badalo do único sino que então havia.
Em tempos mais, distantes Mogofores, foi um curato
ad-nutum anexado à
freguesia de Arcos, cujo prior tinha o
direito de apresentação dos curas. Pertencia ao arcediagado do Vouga, do
bispado de Coimbra.
As Informações Paroquiais de
1721, publicadas pelo Arquivo do Distrito de Aveiro em 1934,
dão-nos algumas notícias sobre a nossa freguesia, que todo o mogoforzense dedicado deve gostar de
conhecer.
Naquela data pastoreava a freguesia o cura Miguel Dias
Leitão, sob a dependência do prior dos Arcos, João Martins Preto. A
nossa igreja tinha três capelas particulares, correspondentes aos três
altares laterais, instituídas por indivíduos
que lhes vinculariam todos os seus bens para satisfação dos
encargos de sufrágio inerentes − missas quotidianas ,ou bissemanais por sua
alma(10).
A de Nossa Senhora da Piedade era a mais
importante,
tanto pela imagem da Virgem − cópia fiel de uma obra notável de Miguel
Ângelo existente no Vaticano − como pela
copiosa ornamentação do altar(11).
Foi instituída em 1672 pelo desembargador Cristóvão
Pinto de Paiva, fidalgo da Casa do Alto do Pinto, que tem nela a sua
sepultura. Era sua proprietária e administradora, na data das referidas
informações, D. Francisca Pinto de Nápoles, de Águeda.
A outra capela era a do altar de Jesus
− hoje da Senhora de Fátima − e foi instituída pelo capitão Domingos Dias Vilalobos
/ 173 / que aqui viveu e morreu, e ali foi sepultado com sua
esposa. Era administrador deste vínculo o morgado de Vilarinho de Cacia, Manuel Couceiro 'da Costa.
A terceira − a do altar de Santo António
− foi instituída
pelo licenciado Pedro Marques, natural desta freguesia, e era
administrada por Isabel Correia, viúva, também de Mogofores.
Em 1721 a freguesia tinha noventa e seis fogos com
duzentos e quarenta habitantes. Hoje tem duzentos fogos e novecentos
habitantes. O registo dos actos religiosos,
segundo consta do livro mais antigo do arquivo paroquial,
remonta a 13 de Março de 1597, data em que foi baptizado um filho de
Julião Fernandes.
Apraz-nos registar um facto honroso para a nossa terra,
que se relaciona com a vida económica da região.
O Marquês de Pombal, por alvará de 26 de
Outubro
de 1765, proibiu o plantio da vinha sem prévia licença da
Companhia dos Vinhos do Alto Douro, e mandou arrancar todas as vinhas que estivessem em terrenos próximos
das margens do Vouga aptos para outra cultura. Exceptua, porém,
desta despótica medida as vinhas sitas nos termos de Anadia e Mogofores «em que
− diz o referido alvará − sempre as
vinhas foram o fruto principal e em que a favor da bondade
e qualidade deles, esteve sempre a reputação pública e geral».
(M. GOMES, ob. cit.).
Mogofores tem um passado de tradições honrosas e
marcou a sua
superioridade na vida social da região na segunda metade do século
findo.
Deu-lhe particular relevo a alta reputação dos seus homens. O Bispo de
Viseu (D. José Xavier Cerveira e
Sousa) o Conselheiro Barão de Mogofores e Albano Coutinho (pai) foram figuras eminentes desse tempo que eu já
não conheci, mas os nomes dos Srs. Visconde de Seabra,
Albano Coutinho (filho), Dr. Acácio de Seabra, Barão do
Cruzeiro e doutros, ficaram gravados na minha memória de
criança, impressionada pela atmosfera de veneração que os rodeava. O
primeiro é o do sábio ilustre, Mestre insigne das ciências jurídicas,
que no retiro de Santa Luzia recebia amiúde as homenagens de muitos dos
vultos mais notáveis
da época. Passaram por ali Bispos, Lentes da Universidade, antigos
Ministros, grandes advogados e escritores de renome,
com profundo desvanecimento da nossa terra.
O solar dos Caldeiras também contribuía bastante para o brilho da vida
local, com as frequentes visitas que esta família recebia dos seus
nobres parentes − 1.º e 2.º Marqueses da Graciosa, Condes da Foz de
Arouce, de Proença a Velha e da Borralha; e as Casas do Caneiro e do
Cruzeiro eram
/ 174 /
estâncias favoritas de famílias distintas do Porto, de Lisboa
e doutros pontos do país.
A par desta afluência de
forasteiros havia a entusiástica animação dos rapazes desse tempo.
Manuel e António Luís, Aniano de Carvalho, Alberto Sobral, Carlos de
Meneses e Aristides de Seabra formavam um grupo folgazão, de
alacridade esfusiante, que soube criar à sua volta um ambiente de
simpatia. Eram corações sempre em festa, prontos para todas as
iniciativas, a alvoroçarem este pacato meio aldeão com os seus vinte
anos irrequietos. |
|
Quinta do Caneiro,
pertencente aos Padres
Salesianos. Ao lado da estação do
caminho de ferro. |
A estes rapazes vinham
juntar-se outros de fora, atraídos pelo ruído dos divertimentos que aqui
se realizavam ou planeavam, alguns dos quais interessaram vivamente a
sociedade bairradina do tempo, pela sua originalidade e aparato, e
tiveram êxito notável mercê do entusiasmo aliciante que esta famosa
falange punha em todos os seus cometimentos.
As salas do Dr. Acácio também tiveram grande nomeada entre a
sociedade destas redondezas. Eram o ponto de reunião preferido,
sobejamente conhecido e
justamente apreciado, devido ao acolhimento
franco e cordial dos velhos donos da casa.
Assim se criou um nível social superior que impôs
a nossa terra ao conceito dos povos vizinhos e atraía as suas elites numa poderosa
corrente de simpatia.
Há que tempo isto lá vai!
Quando estas gerações de velhos e novos deram lugar às que lhes
sucederam, a vida de prazer espiritual, tão necessária ao prestígio da
terra, desapareceu para sempre.
Entretanto iam desaparecendo também os lugares aprazíveis que a natureza nos concedeu. As margens umbrosas
do Cértima perderam as poéticas brenhas que as embelezavam, pujantes
maciços de verdura quantas vezes testemunhas dos devaneios amorosos da
mocidade nas tardes dos
domingos calmosos. O progresso utilitário colocou no seu lugar toscas
noras e cegonhas.
/ 175 /
Também desapareceu, tendo a substituí-lo um deselegante aglomerado urbano, aquele encantador trecho de arvoredo,
entremeado de rosas de todo o ano, que marginava a estrada da ponte do
Cértima à Mala-Posta. A primavera oferecia-nos ali, naquela ramagem
frondosa, um formoso túnel de verdura e flores.
A MINHA GALERIA
DR. CRISTÓVÃO PINTO DE PAIVA
Foi o último fidalgo da Casa do Alto do Pinto.
Era filho de Crisóstomo de Paiva, de Mogofores, e de
D. Joana Pinto, natural de Águeda, senhores e habitantes
daquela Casa.
Residia habitualmente em Lisboa onde
exercia as altas funções de
Desembargador da Mesa da Consciência e Ordens(12). Era fidalgo da corte
de D. Pedro II e cavaleiro da Ordem de Cristo.
Faleceu naquela cidade em 10 de Agosto de 1672, no estado de solteiro,
mas veio a ser sepultado na igreja de
Mogofores, na capela de Nossa Senhora da Piedade que ele erigira em
morgado(13)
e onde existe ainda uma lápide tumular.
A casa do Alto do Pinto ainda conserva as características de uma antiga
e nobre moradia, com brasão no alto do portão, pátio espaçoso e larga
escada de pedra a dar acesso a amplos salões, mas já no terceiro
quartel do século passado, decaída e por vezes desabitada, estava
dividida e entregue a inquilinos ou caseiros ignorantes do seu antigo
esplendor.
Eram seus proprietários Abílio da Silva e Cunha, de Pomares (Mortágua)
e Domingos Arala, de Ovar. Hoje pertencem ao Dr. Alexandre Cancela de
Abreu e a Abílio
Quintas.
DR. ANTÓNIO DE SEABRA DA MOTA E SILVA
Biógrafos seus contemporâneos dizem que foi varão de magnânimo e
generoso carácter e magistrado integérrimo e muito erudito.
/ 176 /
Nasceu em Mogofores no terceiro quartel do século XVIII e faleceu em
Vila-Flor no segundo quartel do século XIX. Era filho de Jacinto Seabra
da Mota e de D. Teresa Joaquina da Silva, proprietários, naturais desta
freguesia(14).
|
Foi cavaleiro professo da Ordem de Cristo e juiz ouvidor na vila do
Príncipe, Estado de Minas Gerais, Brasil. Quando faleceu era
corregedor da comarca de Moncorvo.
Foi sepultado na capela de Nossa Senhora do Rosário,
entre S. João Baptista de Arroios e Vila-For, que pertence à família Magalhães Pegado sua descendente.
Casou com D. Dorotêa Bernardina de Sousa Lobo Barreto, dama ilustre, presumivelmente neta ou parenta próxima de Manuel de
Oliveira Barreto, conhecido fidalgo do século XVII que foi capitão-mor
dos coutos de Mogofores, Aguim, Casal Comba e Vila-Nova de Monsarros.
|
Dr. António de Seabra da
Mota e Silva. |
Teve seis filhos: D. Josefa, que casou com José António de Oliveira
Pegado, fidalgo da Casa Real e senhor do morgado de Mogadouro; António
Luís, futuro Visconde de Seabra; D. Ana, que casou com seu
primo co-irmão Manuel Ferreira de Seabra, futuro Barão de Mogofores; D.
Felicidade Perpétua, casada com Francisco Leite Pereira de Almeida,
oficial de dragões e fidalgo de linhagem, natural e senhor da casa
vinculada de Vila-Flor, de quem procede a família Leite Pereira de
Seabra; D. Carlota Joaquina, que foi
afilhada de D. João VI e da rainha D. Carlota Joaquina; e D. Domitília
que, como esta sua última irmã, morreu solteira em Mogofores,
na Quinta
de Santa Luzia(15).
/
177 / [Vol.X - N.º 39 -
1944]
DR. ANTÓNIO LUÍS DE SEABRA, VISCONDE DE SEABRA
Jurisconsulto, literato e homem de Estado, serviu com assinalado
civismo o país e conquistou um lugar proeminente entre os vultos mais
notáveis do seu tempo.
Era filho do Dr. António de Seabra da Mata e Silva e de D. Dorotêa
Bernardina de Sousa Lobo Barreto e nasceu em 2 de Dezembro de 1798, nas
alturas de Cabo Verde,
a bordo da nau Santa Cruz
em que seu pai se dirigia, com a esposa, para o Brasil, aonde ia ocupar
o lugar de juiz ouvidor na vila do Príncipe, no Estado de Minas Gerais.
Foi baptizado no Rio de Janeiro, no oratório do coronel Manuel Alves da
Fonseca, em 5 de Fevereiro de 1799, sendo padrinhos sua irmã D. Josefa
Emília de Seabra e o chanceler da Relação daquela cidade, Luís
Beltrão de Almeida. |
|
Dr.
António Luís de Seabra,
visconde de Seabra. |
Ainda no berço, foi nomeado cadete honorário de dragões por graça
especial de D. João VI, então Príncipe Regente.
Depois de seu pai voltar
ao reino, em 1815, entrou na Universidade de Coimbra e formou-se na
Faculdade de Leis em 1820.
Em Agosto de 1821, com menos de 22 anos de idade, foi despachado juiz
de fora para Alfândega da Fé sendo louvado, em portaria do
ministro José da Silva Carvalho, pelos bons serviços prestados neste
cargo(16).
/
178 /
Em virtude da queda do governo liberal pediu a exoneração e foi para Vila-Flor, onde seu pai era corregedor,
entregando-se a labores literários.
Em 1825 foi nomeado juiz de fora de Montemor-o-Velho,
lugar que deixou em 1828 para se lançar na revolução contra D. Miguel, combatendo no ataque da
Cruz dos Morouços e
na acção do MarneI à frente de um corpo de cavalaria que organizou.
Vencida a revolução, emigrou com as tropas liberais
para a Galiza e dali seguiu para a Bélgica e Inglaterra, sendo
processados e confiscados os seus bens.
Durante a emigração publicou vários panfletos suscitados pelas
circunstâncias críticas da ocasião, tornando-se
notável a «Exposição Apologética dos Portugueses emigrados
na Bélgica que se recusaram a prestar o juramento deles exigido no dia 26 de Agosto de 1830».
Voltando a Portugal em 1832, na expedição dos 7.500 bravos do Mindelo, um decreto de 25 de Outubro do ano seguinte
nomeou-o Procurador Régio junto da Relação de Castelo
Branco passando, pela extinção deste lugar, para a de Lisboa.
Nesta altura exerceu também as funções de corregedor da comarca de
Alcobaça.
Em 1834 foi eleito deputado por Trás-os-Montes, e
em 1835 foi encarregado pelo ministro do reino, Rodrigo
da Fonseca, de redigir o projecto de reforma do ensino primário, a primeira reforma deste ensino depois da de Pombal.
Em 1836 foi novamente eleito por Trás-os-Montes mas
a revolução de Setembro impediu a reunião das câmaras.
Em 1837 foi ao parlamento representando o círculo de Penafiel; dissolvida a câmara em Fevereiro de 1840, foi eleito
pelo Porto sendo a sua acção parlamentar, nesta ocasião,
/
179 /
muito notável especialmente na coligação legalista que formou com
Rodrigo da Fonseca, José António de Magalhães, Oliveira Marreca e outros
deputados contra a acção revolucionária de Costa Cabral na restauração
da Carta.
Em 1846, já desembargador da Relação do
Porto, foi convidado por José da
Silva Passos, presidente da câmara daquela cidade e vice-presidente da
Junta Provisória do Governo Supremo do Reino, para exercer
as funções de
encarregado dos Negócios do Reino na mesma Junta(17).
Este organismo foi, como se sabe, o fulcro da reacção que se levantou no
país contra o golpe de estado de 6 de Outubro daquele ano, que derrubou
o ministério Palmela. O Dr. António Luís de Seabra levou-lhe o apoio do
partido cartista e conseguiu que muitos oficiais contrários aderissem à
Junta.
Em 1851 foi eleito deputado por Aveiro e em 4 de Março do ano seguinte
foi pela primeira vez ministro da Coroa, ocupando a pasta da Justiça
numa recomposição do ministério que o Marechal Saldanha organizou após o
movimento da «Regeneração», que derrubou Costa Cabral. Exerceu este
lugar até 19 de Agosto do mesmo ano.
Dissolvidas as cortes nessa época, foi, em 1852, eleito pelos círculos
de Aveiro e Moncorvo ao mesmo tempo, e em 1856 voltou novamente à câmara
como representante de Aveiro. Em 1861 foi eleito pelo círculo de Anadia
e desde 1862 até 1868 foi presidente da Câmara dos Deputados. Neste ano
foi nomeado par do reino e veio também a ocupar o lugar de presidente da
câmara alta.
Em 25 de Abril de 1865 é agraciado com o título de Visconde de Seabra, e
em 26 de Julho de 1866 é nomeado Reitor da Universidade de Coimbra. Foi
nesta ocasião que este eminente homem público teve a honra insigne de
hospedar na sua residência o infante D. Augusto durante uma demorada
visita que este príncipe fez àquela cidade.
Deixou este lugar em Janeiro de 1868 para voltar a sobraçar a pasta da
Justiça, agora num Governo de acalmação organizado pelo Conde de Ávila
depois da reacção popular, conhecida na história por «Janeirinha»,
contra as medidas violentas de Joaquim António de Aguiar. Os primeiros
actos deste Governo − 14 de Janeiro − foram para anular as leis que criavam
o imposto de consumo e a da reorganização administrativa, promulgadas
pelo Governo anterior(18).
/ 180 /
Quando o Visconde de Seabra deixou a reitoria da Universidade
trocaram-se entre ele e a Academia as expressivas cartas que se seguem:
À MOCIDADE ACADÉMICA
Sua Magestade dignou-se chamar-me ao seu conselho de ministros. Não sei escusar-me a nenhum serviço publico que de
mim se exija, por arduo e difficil que pareça − aonde não chegarem as forças sobrará sempre a minha boa vontade. Mas não posso, briosos
mancebos, deixar de dirigir-vos uma palavra de despedida. Vou
separar-me de vós, acreditae-me, com saudade e tristeza.
Era para mim, no ultimo quartel da vida, ineffavell
satisfação presencear a vossa assidua applicação e o vosso regular e
circunspecto comportamento e admirar os vossos progressos no estudo das
letras e das ciencias que deve habilitar-vos para servir honrosamente a
vossa
patria e suceder á geração que passa.
Mas ainda longe de vós, generosos mancebos, estarei comvosco no affecto
que vos dedico e no interesse que tomo pelos vossos progressos: e
julgar-me-hei muito feliz se em qualquer tempo ou posição a que o
destino me leve, puder contribuir de algum modo para o vosso
adiantamento e bem estar.
Recebei pois a minha saudosa despedida. Prosegui, completae vossos
estudos com sollicitude e assidua applicação que o ceu abençoará vossas
fadigas.
Mogofores 5 de Janeiro de 1868
O reitor
Visconde de Seabra
CARTA AO VISCONDE DE SEABRA
Ill.mo e ex.mo
snr
Ainda ha pouco tempo a academia de Coimbra saudava com alvoroço a nomeação de v.ª ex.ª para reitor da Universidade.
Exultava a mocidade estudiosa por ter á sua frente o homem que vinculara
o seu nome á sabia reforma da jurisprudencia patria e ajudara a erguer,
para testimunho a estranhos, um padrão de gloria nacional. A academia
tributava profundo respeito á subida
/
181 /
illustração do auctor do codigo civil portuguez: ao seu acatamento
juntou em breve os sentimentos de amor que lhe foram conquistados pelos
affectos paternais do seu prelado, Amor e respeito enlaçaram-se nos
corações da mocidade academica e traduziram-se na sollicita reverencia com que escutou e seguiu as indicações amigaveis,
os conselhos benevolos, as palavras de esperança e os testimunhos de
approvação que v.ª ex.ª lhe dirigiu sempre que se apropositou occasião de lhe encaminhar o animo abalado, ou
de lhe avivar o esforço para novas luctas e comettimentos.
Um decreto real chamou v.ª ex.ª aos conselhos da coroa. A mocidade academica perdeu o chefe mas não perdeu o amigo. As palavras de intimo
apreço e consideração que v.ª ex.ª em despedida dispensou á academia,
confirmam a reciprocidade de sympatias e estreitam mais um laço de
reconhecimento a memoria de v.ª ex.ª ás gratas recordações que entre nós
ficam.
Honra e favor agradece a academia: pela sua parte de longe continua tambem correspondendo com devotada estima e inteira dedicação á
benevolencia do seu antigo prelado. Não é de espiritos juvenis o
esquecimento ingrato.
Coube-nos ser interpretes de sentimentos que toda a academia
compartilha. Digne-se v.ª ex.ª aceitar a humilde exposição que d'elles
fazemos. São affectos de corações livres em homenagem às virtudes.
Coimbra, secretaria da
Academia Dramatica, em 23 de Janeiro de 1868
Emygdio Navarro
Julio de Vilhena
Lopo Vaz de Sampaio e Melo,
*
O Visconde de Seabra foi juiz do Supremo Tribunal de Justiça e sócio
emérito da Academia Real das Ciências. Pertenceu ao conselho de Sua
Majestade e foi comendador da Ordem de Cristo e das Ordens italianas de
S. Maurício e de S. Lázaro, e recusou a grã-cruz de Cristo com que foi
agraciado em 1860.
Como literato, a lista das suas obras é extensa e bem
conhecida; por isso abstenho-me de a recordar. No jornalismo também
ocupou lugar de grande relevo.
/
182 /
O seu padrão de glória é, porém, o Projecto do Código
Civil, feito deveras notável que elevou o nome do seu autor às
culminâncias da celebridade, apontando-o como do primeiro jurisconsulto do seu tempo.
A elaboração deste trabalho foi cometida ao
Dr. António
Luís de Seabra por decreto de 8 de Agosto de 1850 quando
desembargador da Relação do Porto, depois de verificado o
malogro das tentativas de várias comissões que vinham sendo
nomeadas para este fim desde 1822, e foi concluída em fins de 1865.
Quinze anos se consumiram nesta obra grandiosa,
cuja discussão agitou a opinião pública.
A comissão revisora introduziu no projecto pontos novos
de doutrina; entre eles, o da instituição do casamento civil
levantou grande celeuma e suscitou viva controvérsia entre
ALEXANDRE HERCULANO e o autor do projecto, mas a obra, de sólida
estrutura, resistiu à tempestade e teve a aprovação das cortes em sessão
de 26 de Junho de 1867; em 1 de Julho seguinte foi promulgada e é ainda hoje o sábio instrumento
que regula o Direito privado dos portugueses, classificado
pelo distinto jurisconsulto JOSÉ DIAS FERREIRA DE «obra monumental,
talvez o primeiro Código Civil da Europa».
Sabe-se que foi primeiramente na Casa de S. Lourenço
e depois na de Santa Luzia, que o Dr. António Luís de Seabra se entregou com mais ardor aos trabalhos da redacção
do projecto. Aqui, na sua opulenta biblioteca onde só as
horas cantadas do velho cuco perturbavam o silêncio religioso, as transcendentes lucubrações do seu luminoso espírito construíram este marco miliário que foi o remate glorioso
de uma época de transformações políticas e sociais.
Entre os valiosos serviços que o Visconde de Seabra
prestou à nossa terra tem lugar primacial a passagem por
aqui do caminho de ferro. Quis o nobre titular que a linha
férrea em construção atravessasse Mogofores, e nesse sentido empregou o seu melhor esforço. Estava já feito o estudo
respectivo quando influências de Anadia, aproveitando-se da
ausência de Lisboa daquele ilustre titular, conseguiram a alteração do traçado para mais aproximar a linha daquela vila.
O Visconde de Seabra soube em Mogofores da trama e
regressou logo à capital onde, com a coadjuvação de José
Estêvão, a sua acção foi decisiva(19). A nossa terra viu com
justificado alvoroço o primeiro comboio na sua estação no dia 1o de
Abril de 1864, data da inauguração do segundo troço da
linha, entre Estarreja e Coimbra(20).
►►► |