FALAR em Aveiro do mar e
das marinhas que se adensam dentro do formoso estuário vouguense numa perspectiva de
encantamento, é falar da razão de ser da povoação aveirense, da vida
industrial, económica e comercial dos seus antigos e actuais habitantes.
Aveiro tem vivido sempre do mar e das marinhas e é por
eles que está
explicado o esplendor e o progresso da antiga vila.
Se desde tempos muito remotos o uso do sal tem condicionado a
alimentação do homem, evidentemente que a sua exploração se tornou uma
necessidade incontestável.
O sal gema existente nos jazigos rochosos era desconhecido dos povos
primitivos e nem sempre aparecia em toda a
parte do globo. Tornando-se uma necessidade o uso do sal,
os povos, e sobretudo o povo ariano, que mais generalizou esse uso,
iam-no buscar aos jazigos no estado nativo, às margens do mar, dos rios
e de alguns lagos, ou às anfractuosidades das rochas onde o bater
constante das ondas o deixava incrustado.
Com o decorrer dos tempos descobriu-se o processo de
fazer sal por meio das marinhas. É então que o seu uso e indústria se tornaram universais.
Na Índia, na Ásia Menor, no Egipto, na Grécia, na Itália,
nas Gálias, na Germânia, na Ibéria, intensificou-se de tal forma esta
indústria e consumo, que os concorrentes transacionavam não só com o sal
nativo, mas também com o das
marinhas que, por esse motivo, se multiplicavam por todo o mundo.
Quando começaram elas a ser construídas?
Diz PLÍNIO que no ano 640 (A.
C.) Anco Márcio, rei de Roma, ali construiu marinhas e que a sua importância ficou consagrada com o nome
de uma estrada − Via Salária, de
que se serviam os sabinos para o transporte do sal.
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52 /
E Aveiro? Sabe-se que, pelo menos, desde o ano de 929
aqui tem havido marinhas.
Neste ano a condessa Mumadona faz doação de algumas
terras e marinhas de Aveiro ao mosteiro de S. Salvador
que ela havia fundado em Guimarães. Não é natural que
as houvesse muito antes, em razão de os terrenos hoje
ocupados pelas marinhas serem de formação relativamente
recente.
A indústria salineira em Aveiro deveria, pois, ter começado com a formação das marinhas por volta daquela época,
chegando a atingir um grande incremento desde o século XI
ao XVI inclusive, período em que a barra ainda se não tinha afastado das vizinhanças da foz do Vouga, podendo assim
projectar directamente e sem mistura a água salgada para a zona das
marinhas.
Tendo terminado as marinhas de Vila do Conde nos fins
do século XI, as de Miragaia e Massarelos no princípio do
século XV e as de Leça e Matosinhos em meados do mesmo século XV, ficou Aveiro a abastecer o mercado do sal em
todo o norte do país. Durante muito tempo também o
exportou para o Brasil, Estados-Unidos, Rússia, Suécia e
Noruega. Por outro lado, chegou a ser tão abundante a produção do sal em Aveiro, que foi necessário restringir o seu
fabrico aos meses de Julho e Agosto. Os representantes de
Aveiro, porém, pediram nas cortes de Elvas de 1361 que fosse
anulada a postura, dizendo que «cada um fizesse o sal que
podesse fazer», pois que, «omilheiro (moio de rasas) que
soya de valer quatro ou cinco libras (80 ou 100 réis) vaI ora
trinta e cinco libras (700 réis)».
A postura da restrição foi anulada.
Em 1700 o padre CARVALHO DA
COSTA escrevia: «...fabricavão em Aveyro tantas embarcaçoens que sahião sessenta naos para a
pescaria da Terra nova; e mais de cem carregadas de sal para diversas partes».
Aveiro, pois, tem sido sempre um grande empório de
transacções industriais e comerciais com as suas marinhas
em intensa laboração, se exceptuarmos o seu declínio, principiado em meados do século XVII.
Nos documentos que possuo sobre marinhas dos séculos XVI, XVII e XVIII há referências a passos daquele
tempo que, além de fazerem muita luz sobre a história
regional, nos revelam acentuadamente o quanto elas eram
disputadas.
Em quase todos aqueles passos, senão em todos, intervêm personagens categorizadas e até institutos religiosos
que evidentemente põem em relevo o alto valor das marinhas, quando eles tão
avidamente procuram possuí-las.
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53 /
Os documentos a que me estou referindo e que conservo em meu poder são
provenientes do antigo arquivo de Fernando José Camelo de Miranda Pinto
Pereira da Silva, morador que foi em Aveiro e que jaz em sepultura
própria no convento de Santo António. Em 1736 foi instituído em seu
favor o vínculo de Vila da Feira por seu avô, João Ferreira da Cruz,
outro morador de Aveiro e sepultado no convento do Carmo.
A importante casa destas personagens, de que ninguém
já fala, dispersou-se quase totalmente por falta de herdeiros directos,
e entre os muitíssimos bens que desapareceram contavam-se algumas
marinhas, algumas das quais de remotos antepassados.
Todo o Aveirense tem ouvido falar que ao norte do canal das Pirâmides
há uma marinha − «A Prancha», assim denominada por ser atravessado um dos seus esteiros por uma
prancha de passagem, ou ponte, que gira em volta de um eixo colocado ao
meio e fixo na extremidade de uma estaca, por sua vez espetada no centro
do esteiro. Com o movimento de rotação, a prancha ou faculta a passagem
dos marnotos e moços das marinhas, ou deixa livre o tráfego das
embarcações que vadeiam o esteiro.
Vamos agora transcrever um documento de 1592 sobre a marinha
− «A Pranchina» que, em tempos mais remotos ainda, se chamou − «A Ruiva».
Pelas confrontações apresentadas no documento pode-se identificar esta
marinha e reconhecer que ela seria «A Prancha» actual, com a diferença
de ter perdido o diminuitivo «−inha».
Admira-se, porém, como tem perdurado desde tanto
tempo o topónimo e o processo da passagem do esteiro.
Resumindo o conteúdo do documento:
Manuel Jorge, Cavaleiro Fidalgo, Freire de S. Tiago,
Juiz da Alfândega de Aveiro onde é morador, compra a marinha em
referência a D. Antónia Roseima, viúva do tenente-mor D. Jerónimo Lobo,
marinha que ela herdara de sua mãe, D. lsabel Dias de Azurar.
Foi paga nas moedas seguintes: vinte réis, dez réis, ceitis e real. O preço foi de 132$000 reis.
Todas estas pessoas ilustres e nobres brilharam outrora
em Aveiro, tendo colaborado eficazmente para o seu progresso e desenvolvimento.
Diz o rosto do documento:
Compra de Manuel Jorge de hũa marinha que confronta com a Cal
da Villa.
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A seguir e com outra caligrafia:
Compra da marinha da Cal que fez Manuel Jorge, Cavaleiro Fidalgo
da Casa de Sua Magestade, Freyre do Habitto de S. Thiago, Juiz da Alfandega de Aveyro . feyta em des de junho de 1592 e fez a venda D. Antonia
Rozeyma, mulher que foy de Jeronimo Lobo pella ter erdado de sua Mãe
Izabel Dias de Azurar . em preço de 132$000 reis, os 25 meyos da Pranchinha (e a seguir em outra caligrafia) que hoje tem, e algum dia se chamou a Ruiva.
Segue o corpo do documento:
Em Nome de Deus Amelm, Saibão quantos este estormento e carta de
pura e firme venda deste dia pera todo señpre uiren que no ano, do
nascimento de nosso Senhor Jesu Xrispto de mil e quinhẽtos nouenta e dous a
dez dias . do mês de junho en a notavell villa de Avejro, nas pousadas.
da senhora Dona Antonia Rosejma, Dona veuua, molher que foi . do senhor
Don jeronjmo Lobo, tynehẽte mor dEI-Rej nosso Senhor, hora moradora
nesta dita uilla õde logo pareceo ela senhora Dona Antonia Rozejma e por
ela . foj dito . etc. . . . na persenca de myn tabaliaõ e das testemunhas .
todo ao diante nomeado, que era uerdade que ella tjnha e possuhia hũa
sua
marjnha de fazer sal que hora erdou por morte e falesçimento da
senhora.,
Dona senhora Isabell Diaz dAzurar, sua maj, etc. a quall está dentro
no Rio desta villa, e parte do norte cõ estejro da Parda, e do soão cõ
marjnha de Pero Correa, e do sull cõ esteiro que vaj para a marjnha de Maria
Dias,
e da trauesia cõ a cal da uilla e cõ outras cõfrontaçois, seruentias e
logradojros . con que de derejto deue de partjr e demarcar, ha quall marjnha
são . vinte e cinco mejos e he toda . sua, liure e desenbargada sen nella
outren ter parte allgũa. Dezia que de sua propia e lljvre uontade, sen
constrãgjmẽto de pessoa allgũa . que a deo . a mouesse nen costrãger vendia
e
de fejto uendeo . a dita marynha e Manuell Jorge, caullejro fjdallgo da
caza de Sua Magestade, frejre do abito de Sanctiago, juiz da Allfandega
da dita uilla, nella morador. Que por este estava pera elle e pera sua molher
filhos . e inda por assendentes e dessendentes, quantos apos elles vjeren
e
dessenderen deste dia pera todo senpre até o fin do mundo; ha qual
disse
que lhe assj vendio toda de mõte nen confrontacojs, como está demarcada
e cõfrontada, e cõ todos seus meios dobrados, cabecejros, calldejros,
ãtecalldejros, alljubées e vjvejros e con todas suas entradas e sajdas, nouas
e
ãtigas, derejtas pertenças . que de derejto lhe devão e ajão de
pertençer;
assj e pella quantia que a dita senhora sua maj e ella senhora vendedora
a teer a possuhirão e lhe pertençer e melhor por elles cõpradores e seus
erdejros melhor a poderen apos ter, por preço e conthia llogo nomeado .
de
cento trinta e dous mill reis fforros pera ella vendedora E os coaes
cento
trjnta e dous mill reis ella vendedora cõfessou perãte mjn taballião e
de
testemunhas . os ter reçebidos delle cõprador en dinheiro, de cõtado . a
moedada dada. A moeda era aos vinte, des reis, cejtis, ao reall, que fizerã
a
dita soma pellos . coaes por assj os ter reçebidos disse que se dava e
de
fejto deu por mujto ben paga, entregue. E atras foj todo dito o preço de
cento trjnta e dous mill reis . de que o dava e de fejto deu a elles
cõpradores e a seus bastantes (?) erdejros por quites e liures . della doje
pera
senpre . Dizendo mais ella vendedora que ella vemderiava e de fejto
vemderiou e djmitio de sj todo o dito dominjo, posse, aução . e senhorjo,
digo,
e derejto senhorjo que até oje na dita marjnha atraz nomeada e cõfrõtada
cõ todas suas pertenças teue e podia ter. E todo o neceçareo . . .
(ilegível)
passou a elles cõpradores . e en seus erdejros para senpre / E lhe deu
poder que por sj e por quen lhe aprouuer, dando-me ella a pposse autuall,
reall e especiallmente e della e en ella faça como de causa sua propia
que
he de oje pera senpre sen mais orden nen figura de juizo que pera elle
seria
neçesçajro, porque pera jsso faz ella uendedora seu procurador en causa
/
55 /
propia / E promete de lhe fazer a elIes cõpradores . esta uenda boa,
pura e
de paaz . de toda e coalIquer pessoa oo pessoas que lha enbargar, tolher,
tirar, ou demãdar possa, dãdo-se a todo por autora e defensora en juizo
e
fora delIe diãte as testemunhas . desta uilla dAvejro pera o que vemderia
o juizo de seu foro . e todos os privjlIegios reais, liberdades . que en
seu
favor fação. / E que ao deãte a este estormento . não alIegará enbargos
.
de quallquer calljdade que sejão . por si . nen por outren . porque alIegãdo-as . não quer ser ouujda en juizo nen fora dele e por elIes . ou
sen elIes sen primejro deposjtar a dita cõthia do preço desta venda en
dobro na mão delIes cõpradores, ou de seus erdejros . que pera o
reçeberem ha por abonados . sen lhe pedjr fjança / E pera isso vemderião
outrosi a Lej do
valeano (?) que faz en fauor das molheres porque delIa nen de todo ho
mais quer huzar . e pagar a elIes cõpradores o preço da uenda en dobro
cõ as benfejtorjas e melhorjas . que na dita marjnha teueren fejtas cõ
hos restos, o que todo quer cõprir por seus beẽs havidos que pera elIe ha por
obrjgados . o que elle cõprador asj assejtou como asj se cõten . E
porque
lhes aprouue en totalidade (?) asi o quiserã e outorgarão . e mãdarão que
fejto este estormento de uenda en meu livro de notas de que elle
cõprador pedio seu treslado . E elIa uendedora lhe outorgou do requerido
este, sendo
a elle por testemunhas presentes BelIchior Dias, mercador e Âdré Fiz . o
conde, goarda dAlIfãdega, na dita uilla moradores / E por Fiz . ou testemunha, goarda da AlIfãdega e elIa senhora assjnou por sua mão por saber
escreuer . Eu Manuel Ribeiro, publico ttabalião . do Auto judjciall e
notas na dita uilla dAvejro e seus termos pelIo do que nosso servem este
estormento de venda no Livro de minhas notas tomej, dõde fielImente
pera o
cõprador tresladej e cõ elles o cõcertei e asj asjnej de meu publico
sjnal
que tall he (ilegível).
gratis
Vem a seguir o termo de posse:
Saibão quantos este estormento de posse dada de meu offiçio a requerjmento de parte, etc... que no anno do nascimento de nosso Senhor Jesu
Xrispto de myll e quinhẽtos nouenta e dous. a quinze dias do mes de Julho
do dito anno en a notauel villa de Aveiro, na calI da dita uilla, na
marynha cõfrontada no estormento de uenda atraz, õde eu tebalião fuy cõ
o cõprador
Manuell Jorge, Juiz dAlIfãdega en ela, na dita villa morador por elIe
foi requerido a myn tabalião lhe dar a posse da dita marynha, a quall
ele lIogo
tomou por la agoa, gramata, tudo da dita marynha que en suas maõs
tomou / andando e passeãdo por toda elIa de hũa parte pera a outra
fazendo
en tudo antes da posse tomãdo, sen aver pessoa allgũa nen cousa contra
que a isso lhe fosse ha mão. nen a tal posse lhe enbargasse / PelIo que
eu
taballião dou fee, assy passar e lhe dey e ouue por dada a dita posse
autualI,
realI e pessoalmente. auendo-o por jnuestjdo nella quanto en direito
deuo
e posso sendo a elle por testemunhas OldobalI He Sar (?) de Pinho.
advogado
na dita uilla e Pero dAvelIar escryuão da Allfãdega delIa, na dita
villa
moradores. E eu Manuel Ribeiro, ppublico taballião do auto judjçialI e
notas
en a dita villa dAvejro e termos pello do que nosso servem este escrevj
e
assjnej de meu ppublico sinal que talI he ....... (ilegível).
gratis.
Manuel Jorge Odoball Sar (?) de Pinho Pero AvelIar
P.e JOÃO VIEIRA RESENDE |