A. Nascimento Leitão, A paisagem holandesa e a da região de Aveiro, Vol. IX, pp. 261-265.

A PAISAGEM HOLANDESA

E A DA REGIÃO DE AVEIRO

É FREQUENTE comparar-se com a paisagem holandesa a perspectiva de, pelo menos, uma parte da zona ribeirinha da laguna aveirense.

Deve a comparação ser feita não só entre os aspectos da paisagem, mas estender-se também aos costumes com ela relacionados e às impressões produzidas no espírito do observador.

De facto, destaca-se na Holanda um vasto espelho de água, no qual se reflecte um céu habitualmente plúmbeo, forrado de nuvens enfarruscadas. É o Zuydersé, primitivamente um lago de água doce, o Flevo, que as invasões do mar transformaram no golfo hoje em via de grande redução na sua área, não pela acção das forças naturais, mas por obra dos homens, que já antes da guerra lhe barraram a entrada, com o gigantesco dique em pleno mar, de 32 quilómetros (aproximadamente a distância, na laguna de Aveiro, da Costa-Nova a Ovar), por sobre o qual uma ampla estrada permite o apreciável circuito turístico de automóvel.

Trata-se de, por meio de diques e aterros, apreendendo algumas ilhas, trazer as grandes reentrâncias de oeste, do norte e de leste a um alinhamento central, conquistando-se assim uma área de 220.000 hectares de terrenos, entre os quais ficará o novo mar de Issel, ao qual terão amplo acesso os actuais portos marginais.

Tal qual o que sucedeu, em menor escala, com outro mar interior, o de Harlem, do qual apenas hoje restam os dois canais de comunicação com o mar do Norte, através de polders e dunas, destinados ao tráfico da grande metrópole comercial, como é Amesterdão.

Não tivesse a guerra prejudicado os trabalhos, e já uma grande área do Zuydersé estaria transformada em polders, na sequência dos que se vêem nas suas margens e ilhas − de aspecto até certo ponto comparável com o da zona da região / 262 / de Aveiro compreendida entre a via férrea da C. P. e a laguna, e que da foz do Vouga se prolonga na direcção de Estarreja e da Murtosa, por Fermelã, Canelas, Salreu, Veiros, Bunheiro.

Mas os polders propriamente ditos são terrenos a nível inferior ao do mar e dele defendidos pelas dunas e por um complicado sistema de diques e canais, de colaboração com eclusas, bombas, moinhos e dragas − as grandes dragas que ao mesmo tempo que aspiram um grande volume de lamas as projectam, por sobre os diques, a grande distância, por intermédio de colectores amovíveis, dispensando, por isso, a morosa colaboração de batelões(1).

Ao passo que as campinas entre o Vouga. e a laguna, de natural formação aluvial e de coesão aumentada pelo moliço e pelos trabalhos hidráulico-agrícolas, estão a nível superior ao do mar e são recortados por esteiros de fraca corrente e sulcos de drenagem, revestidos uns de torrão e outros nem isso, − os polders, de sedimentação artificial, são entremeados duma rede de canais a diversas cotas de nível, contidos por fortes diques, de pedra ou de madeira, por vezes duplos, e marginados de estradas, herdades, campos, hortas, fábricas e moinhos.

Na vastidão da planície, fora do povoado, as pastagens e as searas são interrompidas pelos moinhos, pelos campos de flores, pelo malhado preto-branco das vacas e, como nos campos daquela zona da região de Aveiro, por algumas fiadas de salgueiros e árvores esguias, nas margens dos veios de água doce, mas estes, na Holanda do norte, sem inclinação que permita uma apreciável dejecção aluvial.

São os típicos moinhos e os campos de flores, verdadeiros símbolos regionais, que dão aos polders a mais interessante nota de graciosa originalidade panorâmica. As flores, na época própria; os moinhos sempre.

Tabuleiros imensos de tulipas (os bolbos dalgumas espécies a preço de jóias), jasmins e outras mais flores regalam a vista pelos polders, encantam a paisagem e revelam a inclinação dum povo − o seu amor pela natureza, sob esta forma de homenagem à Flora. A confirmá-lo, em maior escala e sob os mais variados aspectos, lá está o jardim botânico, / 263 / único no seu género e de renome mundial, que o mesmo povo tem em Buitenzorg, na sua ilha de Java.

Os moinhos, na largueza do horizonte, estão para os polders como, para a laguna aveirense, estão os montes de sal. Mas estes só nos meses de verão, isolados nas marinhas, e os moinhos durante gerações sucessivas, mais ou menos entremeados de vegetação.

Sejam alinhados à beira dos canais, sejam isolados e perdidos na bruma do horizonte, os moinhos, simbolizando a vida, na sua curiosa dobadoira de braços enxadrezados, são simultaneamente casa de habitação e oficina das mais variadas indústrias.

Em forma de tronco de cone ou de pirâmide poligonal, geralmente de madeira, isolado ou fazendo corpo com casa ampla, sobretudo nas estradas que marginam os maiores canais, o moinho tem varanda ou terraço em volta, tem um, dois ou mais andares, como qualquer casa, e um leme horizontal, pelo qual se comanda a cúpula giratória que lhe serve de telhado.

Nalguns, mais pequenos, de madeira, é outra a manobra que os orienta na direcção desejada, movendo-se toda a casa em torno de um eixo. Os moinhos não só esgotam a água e moem, mas também serram madeira, fazem cordas e accionam dínamos para a produção de luz e força motriz, utilizada em qualquer serviço ou indústria.

Os canais e canaletes correspondem às nossas estradas e caminhos, sendo grande a animação em muitos deles: barcos à vela, a remos, à sirga ou a vapor; uns mais acima, outros mais abaixo, conforme o nível de água; barcas à espera de vez nas pontes rolantes e levadiças; velas quase a roçar nas aspas dos moinhos, cachoar das águas nas comportas, estaleiros, calafates, vozearia e acentuado cheiro a barcaça e maresia.

Pelas margens, um ou outro cavalo, para, o sota montado, puxar algum barco à sirga, e grande tráfico, expresso em barricas de arenque, vasilhas com leite, caixotes com queijo, etc., e mais para o interior vacas, patos, cegonhas e raros galináceos.

O barco nos polders corresponde ao carro entre nós usado nos trabalhos rurais. É o barco que vai ao moinho, que vai à fábrica, que vai à eira, à horta, à quinta, que espera à porta de casa, que transporta os produtos agrícolas, que leva às ocupações da cidade, etc., não precisando de carro de bois, como seu colaborador na faina do campo, como sucede com o barco moliceiro, na zona ribeirinha de Aveiro.

As mulheres, de touca branca, mas esta não de asa flutuante sobre as orelhas, como na Bretanha, mas descida para os lados e para a nuca. A saia comprida, de roda farta. / 264 /

Ninguém descalço: tamancos de madeira, bem caiados, sobretudo aos domingos.

Os homens dos canais: boné de pala ou gorro de certo tipo regional, de copa mais ou menos alta; a jaqueta ajustada por botões à cintura, e as calças largas, apertadas nos tornozelos; o mesmo tamancar pelas ruas calçadas a tijolo vermelho (como também se vêem na própria capital) e o cachimbo, o inseparável cachimbo, curto e delgado. O tabaco é barato.

Com o cachimbo se fuma, se aponta a direcção, e, pela quantidade do tabaco que o enche e pela duração em consumi-lo, com o cachimbo se mede o tempo e o espaço. Em vez de tantos quilómetros ou tantos minutos, diz-se tantas cachimbadas, para se designar a distância entre dois pontos ou o tempo gasto em a percorrer.

É precisamente o mesmo o trajo das crianças: as meninas, também de touca, de saia larga e comprida até aos tamanquinhos brancos; e os meninos, vestindo como os homens, as mãozitas nos bolsos das calças, do mesmo feitio das dos pais.

*

*         *

Na visão panorâmica dos polders há uma nota desconcertante − as bruscas e frequentes variações atmosféricas, contra as quais nada pode a tenacidade humana ali posta à prova na luta contra outros elementos da Natureza.

Supunha eu, por o ter visto escrito, que a primavera na Holanda tinha parecenças com a da região de Aveiro.

A fantasia lida não corresponde ao que a realidade, por mero acaso, lá me mostrou(2).

A primavera não é uma estação precisamente definida naquele país, sobretudo nas regiões de polders.

O inverno é longo; começa quando noutros pontos da Terra ainda é outono, e entra pela primavera, podendo esta ser ali considerada como um fim de inverno.

São frequentes os casos em que num mesmo dia se apresentam, de fugida, aspectos das quatro estações. Começa o dia claro, o sol descoberto, as águas tranquilas, a temperatura amena e o horizonte relativamente limpo.

Não tarda que o nevoeiro faça desaparecer o sol, que a ventania fustigue com chuva fria e que as águas revoltas galguem os diques, num espumar de tempestade. / 265 /

Após poucas horas está o céu desanuviado e acalmado o vento; a chuva parou e o nevoeiro reduziu-se à habitual bruma no horizonte.

Não há a chuva de todos os dias, como, por exemplo, em Singapura, mas são frequentes os densos nevoeiros ou os dias seguidos sem sol, como os da primavera das costas do Mar da China.

Pode objectar-se que seria excepcional o que observei naqueles dias daquela primavera, mas, segundo me informaram, a regra é assim, nos polders, sendo muito raros os dias de excepção.

Não há a suave claridade do crepúsculo, com os tons afogueados do céu; há o véu da neblina, se não o nevoeiro denso a fechar o horizonte e a tornar mais triste a orquestra das noites: é o marulhar das águas sacudidas nos canais; é o roçar dos barcos inquietos; o chiar das amarras retesadas; o guinchar das aves do mar; o ranger e sibilar dos moinhos.

São raras na primavera as noites calmas de luar, em que os moinhos, quer parados, quer no seu volteio, oferecem agradável espectáculo de estranha fantasia.

Quando imersos no nevoeiro e na escuridão, os mesmos moinhos tomam formas indecisas.

No movimento rotatório, as suas aspas, sucedendo-se na intercepção da luz coada pelas janelas, dão, a distância, o aspecto de antenas de monstros agarrados ao chão, a piscarem os olhos faiscantes.

Eis a largos traços esboçado o que se observa no meio campesino da Holanda − tão diferente, como se vê, da região de Aveiro.

(Excerto de um trabalho a publicar)

ANTÓNIO NASCIMENTO LEITÃO
Cor.-méd.

_________________________________________

(1) Do mesmo tipo das dragas de sucção que trabalham no Canal de Suez. Ao notar, na Holanda, o admirável funcionamento destas potentes dragas, mal eu supunha que seria destino meu o ter de familiarizar-me com elas ou outras análogas, conhecendo-as pelo nome e visitando-as, como médico da sua tripulação. Foi o que sucedeu, durante o tempo que trabalharam nas obras dos portos de Macau, a cargo da empresa holandesa que fora do seu pais se denomina Netherlands Harbour Works Company..

(2)Estranhar-se-á que tal sucedesse numa quadra do ano não recomendada pelo turismo; Frequentava eu um curso em Paris, num período de licença ilimitada. Propícia, como era, a ocasião que as férias da Páscoa me ofereciam, aproveitei-a para uma visita à Holanda. 

Página anterior

Índice

Página seguinte