É FREQUENTE comparar-se
com a paisagem holandesa a perspectiva de, pelo menos, uma parte da
zona ribeirinha da laguna aveirense.
Deve a comparação ser feita não só entre os aspectos da paisagem, mas
estender-se também aos costumes com ela relacionados e às impressões
produzidas no espírito do observador.
De facto, destaca-se na Holanda um vasto espelho de água, no qual se
reflecte um céu habitualmente plúmbeo, forrado de nuvens enfarruscadas.
É o Zuydersé, primitivamente um lago de água doce, o Flevo, que as
invasões do mar transformaram no golfo hoje em via de grande redução na
sua área, não pela acção das forças naturais, mas por obra dos homens,
que já antes da guerra lhe barraram a entrada, com o gigantesco dique em
pleno mar, de 32 quilómetros (aproximadamente a distância, na laguna de
Aveiro, da Costa-Nova a Ovar), por sobre o qual uma ampla estrada
permite o apreciável circuito turístico de automóvel.
Trata-se de, por meio de
diques e aterros, apreendendo algumas ilhas, trazer as grandes reentrâncias de oeste, do norte e de leste a um
alinhamento central, conquistando-se assim uma área de 220.000 hectares
de terrenos, entre os quais ficará o novo mar de Issel, ao qual terão
amplo acesso os actuais portos marginais.
Tal qual o que sucedeu, em menor escala, com outro mar interior, o de
Harlem, do qual apenas hoje restam os dois canais de comunicação com o
mar do Norte, através de polders e dunas, destinados ao tráfico da
grande metrópole comercial, como é Amesterdão.
Não tivesse a guerra prejudicado os trabalhos, e já uma grande área do
Zuydersé estaria transformada em polders, na
sequência dos que se vêem nas suas margens e ilhas − de aspecto até
certo ponto comparável com o da zona da região
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de Aveiro compreendida entre a via férrea da C. P. e a
laguna, e que da foz do Vouga se prolonga na direcção de
Estarreja e da Murtosa, por Fermelã, Canelas, Salreu, Veiros,
Bunheiro.
Mas os polders propriamente ditos são terrenos a nível
inferior ao do mar e dele defendidos pelas dunas e por um complicado
sistema de diques e canais, de colaboração com eclusas, bombas, moinhos
e dragas − as grandes dragas que ao mesmo tempo que aspiram um grande
volume de lamas
as projectam, por sobre os diques, a grande distância, por
intermédio de colectores amovíveis, dispensando, por isso, a morosa
colaboração de batelões(1).
Ao passo que as campinas entre o Vouga. e a laguna, de natural formação
aluvial e de coesão aumentada pelo moliço
e pelos trabalhos hidráulico-agrícolas, estão a nível superior
ao do mar e são recortados por esteiros de fraca corrente e sulcos de
drenagem, revestidos uns de torrão e outros nem isso, − os polders, de
sedimentação artificial, são entremeados duma rede de canais a diversas
cotas de nível, contidos
por fortes diques, de pedra ou de madeira, por vezes duplos,
e marginados de estradas, herdades, campos, hortas, fábricas
e moinhos.
Na vastidão da planície, fora do povoado, as pastagens e as searas são
interrompidas pelos moinhos, pelos campos
de flores, pelo malhado preto-branco das vacas e, como nos
campos daquela zona da região de Aveiro, por algumas fiadas
de salgueiros e árvores esguias, nas margens dos veios de água doce, mas
estes, na Holanda do norte, sem inclinação que permita uma apreciável
dejecção aluvial.
São os típicos moinhos e os campos de flores, verdadeiros símbolos
regionais, que dão aos polders a mais interessante nota de graciosa
originalidade panorâmica. As flores, na época própria; os moinhos
sempre.
Tabuleiros imensos de tulipas (os bolbos dalgumas espécies a preço de
jóias), jasmins e outras mais flores regalam a
vista pelos polders, encantam a paisagem e revelam a inclinação dum povo
− o seu amor pela natureza, sob esta forma
de homenagem à Flora. A confirmá-lo, em maior escala e sob os mais
variados aspectos, lá está o jardim botânico,
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único no seu género e de renome mundial, que o mesmo
povo tem em Buitenzorg, na sua ilha de Java.
Os moinhos, na largueza do horizonte, estão para os
polders como, para a
laguna aveirense, estão os montes de sal. Mas estes só nos meses de
verão, isolados nas marinhas, e os moinhos durante gerações
sucessivas, mais ou menos entremeados de vegetação.
Sejam alinhados à beira dos canais, sejam isolados e perdidos na
bruma do horizonte, os moinhos, simbolizando a vida, na sua curiosa
dobadoira de braços enxadrezados, são simultaneamente casa de habitação
e oficina das mais variadas indústrias.
Em forma de tronco de cone ou de pirâmide poligonal, geralmente de
madeira, isolado ou fazendo corpo com casa ampla, sobretudo nas estradas
que marginam os maiores canais, o moinho tem varanda ou terraço em
volta, tem um,
dois ou mais andares, como qualquer casa, e um leme horizontal, pelo
qual se comanda a cúpula giratória que lhe serve de telhado.
Nalguns, mais pequenos, de madeira, é outra a manobra que os orienta na
direcção desejada, movendo-se toda a casa em torno de um eixo. Os
moinhos não só esgotam a água
e moem, mas também serram madeira, fazem cordas e accionam dínamos para
a produção de luz e força motriz, utilizada em qualquer serviço ou
indústria.
Os canais e canaletes correspondem às nossas estradas
e caminhos, sendo grande a animação em muitos deles: barcos à vela, a remos, à sirga ou a vapor; uns mais acima,
outros mais abaixo, conforme o nível de água; barcas à espera de vez nas
pontes rolantes e levadiças; velas quase a roçar nas aspas dos moinhos,
cachoar das águas nas comportas, estaleiros, calafates, vozearia e
acentuado cheiro a barcaça e maresia.
Pelas margens, um ou outro cavalo, para, o sota montado, puxar algum barco à sirga, e grande tráfico, expresso em barricas de arenque,
vasilhas com leite, caixotes com queijo, etc., e mais para o interior
vacas, patos, cegonhas e raros galináceos.
O barco nos polders corresponde ao carro entre nós usado nos trabalhos
rurais. É o barco que vai ao moinho, que vai à fábrica, que vai à eira,
à horta, à quinta, que espera à porta de casa, que transporta os
produtos agrícolas, que leva às ocupações da cidade, etc., não
precisando de carro de bois, como seu colaborador na faina do campo,
como
sucede com o barco moliceiro, na zona ribeirinha de Aveiro.
As mulheres, de touca branca, mas esta não de asa flutuante sobre as
orelhas, como na Bretanha, mas descida para os lados e para a nuca. A
saia comprida, de roda farta.
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Ninguém descalço: tamancos de madeira, bem caiados, sobretudo aos domingos.
Os homens dos canais: boné de pala ou gorro de certo tipo
regional, de copa mais ou menos alta; a jaqueta ajustada por
botões à cintura, e as calças largas, apertadas nos tornozelos; o mesmo
tamancar pelas ruas calçadas a tijolo vermelho
(como também se vêem na própria capital) e o cachimbo,
o inseparável cachimbo, curto e delgado. O tabaco é barato.
Com o cachimbo se fuma, se aponta a direcção, e, pela quantidade do
tabaco que o enche e pela duração em consumi-lo, com o cachimbo se mede
o tempo e o espaço. Em vez de
tantos quilómetros ou tantos minutos, diz-se tantas cachimbadas, para se designar a distância entre dois pontos ou o tempo gasto
em a percorrer.
É precisamente o mesmo o trajo das crianças: as meninas, também de touca, de saia larga e comprida até aos tamanquinhos
brancos; e os meninos, vestindo como os homens, as mãozitas nos bolsos
das calças, do mesmo feitio das dos pais.
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Na visão panorâmica dos polders há uma nota desconcertante
− as bruscas e frequentes variações atmosféricas,
contra as quais nada pode a tenacidade humana ali posta à
prova na luta contra outros elementos da Natureza.
Supunha eu, por o ter visto escrito, que a primavera na
Holanda tinha parecenças com a da região de Aveiro.
A fantasia lida não corresponde ao que a realidade, por
mero acaso, lá me mostrou(2).
A primavera não é uma estação precisamente definida
naquele país, sobretudo nas regiões de polders.
O inverno é longo; começa quando noutros pontos da Terra ainda é outono, e entra pela primavera, podendo esta ser ali considerada como um
fim de inverno.
São frequentes os casos em que num
mesmo dia se apresentam, de fugida, aspectos das quatro estações. Começa o dia claro, o
sol descoberto, as águas tranquilas, a temperatura amena e o horizonte
relativamente limpo.
Não tarda que o nevoeiro faça desaparecer o sol, que a ventania fustigue
com chuva fria e que as águas revoltas galguem os diques, num espumar de
tempestade.
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Após poucas horas está o céu desanuviado e
acalmado o
vento; a chuva parou e o nevoeiro reduziu-se à habitual bruma no
horizonte.
Não há a chuva de todos os dias, como, por exemplo, em Singapura, mas
são frequentes os densos nevoeiros ou os dias seguidos sem sol, como os
da primavera das costas do Mar da China.
Pode objectar-se que seria excepcional o que observei
naqueles dias daquela primavera, mas, segundo me informaram, a regra é
assim, nos polders, sendo muito raros os dias de excepção.
Não há a suave claridade do crepúsculo, com os tons afogueados do céu;
há o véu da neblina, se não o nevoeiro denso a fechar o horizonte e a tornar mais triste a orquestra das noites: é o marulhar das águas
sacudidas nos canais; é o roçar dos barcos inquietos; o chiar das
amarras retesadas; o guinchar das aves do mar; o ranger e sibilar dos
moinhos.
São raras na primavera as noites calmas de luar, em que os moinhos, quer
parados, quer no seu volteio, oferecem agradável espectáculo de estranha
fantasia.
Quando imersos no nevoeiro e na escuridão, os mesmos moinhos tomam
formas indecisas.
No movimento rotatório, as suas aspas, sucedendo-se na intercepção da
luz coada pelas janelas, dão, a distância, o aspecto de antenas de
monstros agarrados ao chão, a piscarem os olhos faiscantes.
Eis a largos traços esboçado o que se observa no meio campesino da
Holanda − tão diferente, como se vê, da região de Aveiro.
(Excerto de um trabalho a publicar)
ANTÓNIO NASCIMENTO LEITÃO
Cor.-méd. |