ALEXANDRE HERCULANO disse
um dia: − Recordar é viver. Mais uma vez repito essa frase do grande
solitário de
Vale de Lobos, porque, na verdade, nós, os que vivemos
do passado, sentimos bem aquele influxo benfazejo.
E esse, como diria também TOMÁS RIBEIRO, outra águia igualmente portuguesa, de Parada de Gonta,
o triste jus da nossa idade.
Andámos já bastante o caminho da vida. Recordamos, por
isso... Recordar é viver... Nós, os velhos, temos o triste jus
da nossa idade...
Sorrisos de então; amores bem ou mal sucedidos dessa época; esperanças
ou desalentos; cantares de um rouxinol à
beira dum ninho; poentes lindos sobre o mar; beijos nas desfolhadas da nossa aldeia; noites de luar à beira das ondas; aves
a cantarem sob o sorriso das estrelas; um barco a vogar e a vela branca
quase a sorrir sobre o marulho da vaga; a fauna
e a flora das nossas serras e das nossas planícies, na variação
intensa das suas espécies; as pequenas impressões da nossa
meninice; a folha de uma árvore ou a pétala duma flor simplificadas nos seus filamentos e apresentando qualquer palavra
significativa das nossas paixões infantis; tudo isso que foi o
amor dos nossos pais, a sua primeira prece ou a sua última lágrima; a
canção do berço com o raiar das auroras ou o silêncio do túmulo com o cair dos crepúsculos; tudo isso que é
amor ao nosso viver e ao viver da nossa Pátria, e da nossa Liberdade;
tudo isso que é o nosso coração e o mais fundo vibrar do nosso
sentimento... eu vos saúdo! No exílio da minha
já longa existência, olhando com amarga nostalgia para esse
tempo que não volta, lembro aquela frase dos gladiadores romanos perante
César e junto às feras sanguinárias do Coliseu... Morituri te salutant!
*
* *
Nesta associação de saudades, recordo hoje o nome de um
homem que, não nascendo em Aveiro, − cá temos um caso
/
293 /
que, em parte, se parece com a origem do nascimento de EÇA DE QUEIRÓS −,
é de Aveiro, porque sempre o quis ser, na companhia das maiores intimidades de seus pais, sob
este sol que foi sempre
a luz dos seus olhos e o sentimento do seu coração, tanto nas suas
alegrias como nas tristezas da sua vida febril e agitada. Ele próprio
para aqui fez conduzir aquele filho que tinha o nome honrado do avô,
entre as lágrimas que o seu lenço branco não pôde ocultar naquela manhã
de ofício fúnebre na Igreja da Misericórdia, para o cemitério da cidade,
para aquela capela onde estava, como que a faiscar estrelas, o maior
dos seus amores. Ele próprio para aqui veio também a dormir o sono
eterno ao lado de seu pai que foi uma das maiores glórias da tribuna
latina.
Refiro-me a
LUÍS DE MAGALHÃES a propósito de um dos incidentes mais
espirituosos da sua vida boémia. Filho de JOSÉ ESTÊVÃO, tinha a
responsabilidade da sua filiação, elevada e sem
mácula, e essa filiação soube-a ele manter de forma absolutamente digna.
Por isso, bem reflectidamente procederam os dirigentes do seu funeral
quando o conduziram para a Câmara Municipal. Naquela pousada, passageira
e fúnebre, velado por amigos, se tivesse voz, poderia repetir as
palavras justificativas
de seu pai: − «Disseram-se injúrias, jogaram-se apedrejos... E eu não
ouvi as injúrias, e as pedras nem os vestidos me tocaram!»
Conduzido, em seguida, cá para baixo, para a beira da estátua do
tribuno, com o céu a chover, como que a chorar a chuva da saudade, se
pudesse ouvir a voz dos seus amigos que ali vieram à chamada da sua
morte, e de muitos outros que de longe sofriam a mesma amargura, poderia
também ouvir, através daquele bronze, a voz agradecida de seu pai que,
numa bênção de amor e de aplauso às suas virtudes, levantaria a cabeça e
se deixaria de novo cair no leito da sua eternidade, contente, por
certo, por ter ao lado, na mesma esteira de estreIas, um fruto do seu
grande coração.
LUÍS DE MAGALHÃES honrou bem o seu lar. Escrevo em Agosto e recordo que
era por este tempo, na sua época de veraneio na Costa Nova, que mais
aparecia por aqui, de visita ao túmulo de seu pai − belo gesto da sua
devoção filial! − e de visita também aos seus amigos, que nunca
esquecia.
Toda a cidade de Aveiro se orgulhava com a sua presença. Não era só por
ser filho de JOSÉ ESTÊVÃO... Era idêntica a grandeza do seu carácter e
idêntica a sua própria filiação. É certo
que poderia ficar por aqui a sua estatura moral, como sucede a
muitas famílias de grandes tradições, mas não; o seu talento de
jornalista, e até de tribuno, igualaram-se, por vezes... Por tudo isso,
quando aparecia em Aveiro... Aveiro parece que se enchia de grandeza.
A sua vida foi duramente fustigada pelo temporal das lutas políticas.
Teve muitos triunfos, mas teve também os seus desgostos
/
294 / e muitos desenganos. Foi
ele um dos que mais concorreram para
que ANTERO DE QUENTAL presidisse à Liga Liberal
de protesto contra o ultimatum de 1890. Ele foi também
Governador Civil de Aveiro, a pedido de OLIVEIRA MARTINS,
em 1892. Mais tarde foi eleito deputado por Vila do Conde e Póvoa de
Varzim em que se desempenhou, se não com o brilho oratório de seu pai,
com a dedicação plena e digna de quem nele confiou os seus destinos.
JOÃO FRANCO, que marcou uma época de honestidade política no país,
escolheu-o para seu primeiro ministro dos estrangeiros, lugar que ocupou
com brilho e competência até ser substituído por Luciano Monteiro.
Proclamada a República, recolheu-se, vencido, à sua casa de Moreira da
Maia, casa de velhas tradições que serviu de asilo e guarida a alguns
dos mais graduados revolucionários de 31 de Janeiro.
Com a chamada Monarquia do Norte, voltou a ser ministro, mas, vencido o
seu regime, que era e seria ainda o regime de seu pai..., entregou-se
à prisão. A luz do sol cobria o influxo de um eclipse. A sombra da Terra
surgia negra e esmagadora...
Recordo que fui, numa tarde, visitá-lo às cadeias da Relação do Porto.
Subi a escadaria de pedra, em certo ponto alumiada apenas por uma
pequena luz posta aos pés da Virgem, que lá em cima estava como que
escondida no seu nicho. O fechar daquelas portas de ferro produziam em
mim uma impressão de terror. Apressei-me, por isso, a sair daquele
ambiente, escuro
e cheio de tristeza, para o ar livre e aromatizado dos jardins
da Cordoaria, e pus-me a reflectir no que é a vida neste sonho longo das
nossas ilusões, tantas vezes desfeitas a meio do caminho...
Entre aquelas paredes e aqueles ferros, onde esteve encarcerado CAMlLO
CASTELO BRANCO, uma das maiores grandezas da
literatura portuguesa, tão grande como VIEIRA ou BERNARDES,
estava também preso um homem que, filho de JOSÉ ESTÊVÃO, muito se
distinguiu pelo seu talento, pelo seu carácter imaculado e pelo bem que fez aos seus adversários que foram vencidos em 31 de Janeiro de 1891.
BASÍLIO TELES poderia recordar, e certamente recordou, porque a sua
gratidão não lhe permitiria o contrário, aquela noite escabrosa da sua fuga para Espanha.
Ele e muitos outros poderiam ver, e viram, de certo,
que LUÍS
DE MAGALHÃES era, como diria SÁ DE MIRANDA
Homem de um só parecer,
dum só rosto e duma fé.
Alguém poderia então oferecer-lhe uma ponte de passagem
para a sua liberdade, e parece que alguns republicanos assim o pensaram,
mas ele, se o não disse, poderia repetir as palavras de
seu pai: − «Antes quero uma corda com honra do que uma
pasta com ignomínia!»
/
295 /
Eu não tenho, nem li, as suas estreias literárias, a
Revista Científica
e Literária que fundou com ANTÓNIO FEIJÓ, nem os Zumbidos que lançou a
público com CARLOS LOBO D'ÁVILA.
Deveria ser interessante o que nessas publicações se escreveu,
não só como valor literário, mas também pelos subsídios que certamente
deram para se avaliar o quilate da envergadura moral e intelectual dos
seus autores.
Eu não tive relações pessoais com CARLOS LOBO DE
ÁVILA mas comecei a
apreciá-lo como grande psicólogo nas suas narrativas de viagens, como
jornalista distinto e como parlamentar digno dessa época em que
pontificava PINHEIRO CHAGAS e outros oradores de igual grandeza. Com
ANTÓNIO FEIJÓ... eu conheci-o, apresentado na Agência do Banco de
Portugal em
Aveiro, não me lembro agora se por LUÍS DE MAGALHÃES ou JAIME DE
MAGALHÃES LIMA. Talvez dele possa dizer alguma coisa em qualquer das
minhas rondas, porque com ele me correspondi para a sua residência de
Estocolmo e dele recebi correspondência ligeira mas apreciável.
... Mas perdoem-me os leitores o desvio do caminho. As
palavras, é bem certo, são como as cerejas; quando se puxa
por uma vêm umas poucas.
LUÍS DE MAGALHÃES deveria ter revelado todo o seu merecimento
intelectual e moral naquelas revistas. Mas, se o não revelasse então,
mostrou-o ele por uma forma que não admite contestações, nos Primeiros
Versos, nas Odes e Canções, nos Contos do Estio e do Outono, no
Brasileiro Soares, no Perante o Tribunal e a Nação, no Tradicionalismo e
Constitucionalismo, na Crise Monárquica, em muitos trabalhos de
gigantesca envergadura em publicações diversas ou no jornalismo do seu
tempo.
Eu já disse que foi também um orador de rara eloquência, se não com o
brilho espontâneo e faiscante de seu pai, com a rara beleza dos maiores
tribunos do seu tempo. MANUEL DE
ARRIAGA, que foi um homem de coração e de pensamento, que
era qualquer coisa de grande nos seus conceitos, disse quando acabava de
ouvir um seu discurso: − «É mais um milagre de JOSÉ ESTÊVÃO, porque
produziu um orador».
Esta frase faz-me recordar uma noite inolvidável em que a tribuna
portuguesa refulgiu cheia de luz na nossa terra de Aveiro. Há cinquenta
e três anos, inaugurava-se a estátua de JOSÉ ESTÊVÃO e essa noite, de 11 de Agosto de 1889, foi dedicada ao
sarau de gala no Teatro Aveirense.
Linda ornamentação. A minha velhice não esqueceu
esse brilho. Pelos
camarotes e frisas pendiam colchas ricas. Havia muita luz em toda a
parte. Era o raiar vivo de uma alvorada encantadora, o triunfo alegre de
um dever cumprido. As flores eram muitas e parece que se associavam com
a sua verdura e colorido àquela festa.
/
296 /
CARLOS FARIA, que foi depois o Barão de Cadoro, com
aquela gentileza de diplomata, que o poderia ser, pela cultura do seu
espírito e pelo aprumo com que se sabia apresentar, jornalista distinto
que deixou o seu nome ligado a jornais e a revistas que o fogo ou a
traça dos arquivos destruíram, e a livros
de alto merecimento realista e psicológico, CARLOS FARIA, que tão
injustamente tem sido esquecido, abriu a sessão, e, depois
de poucas palavras proferidas de homenagem aos oradores que tomariam
parte no sarau, deu sucessivamente a cada um a palavra.
Falou, em primeiro lugar, e muito bem, SEBASTIÃO DE
MAGALHÃES LIMA, o loiro tribuno, como então lhe chamavam;
falou JOSÉ DIAS FERREIRA, o grande jurisconsulto que ainda hoje,
e não sei se depois da guerra, será consultado em Portugal e
em todo o mundo onde se reconheça e aprecie a nossa língua;
falou MANUEL DE ARRIAGA, com o entusiasmo que ele sabia usar
nos grandes combates da tribuna, gigante como o mar que
afagou o seu berço; falou ANTÓNIO CÂNDIDO, a águia do Marão,
que o foi, entre os maiores oradores do seu tempo, e que
naquela noite foi como que um rouxinol que trinasse por indicação divina
nas festas de JOSÉ ESTÊVÃO...
Por fim, falou LUÍS DE MAGALHÃES e parece que seria difícil
a sua situação. Lembro-me bem de quanto foi admirável aquela
noite. Aquele discurso poderia ser recitado por JOSÉ ESTÊVÃO.
Se todos aqueles oradores fizeram surgir de uma taça de cristal uma
constelação de pérolas, LUÍS DE MAGALHÃES correspondeu a essas pérolas
oferecendo uma constelação de brilhantes. Lindo final de uma sessão de
arte.
Mas LUÍS DE MAGALHÃES não foi só nas grandes solenidades que adquiriu
alto relevo. Nas pequenas coisas, na boémia, desprendida e alegre da
mocidade, ele revelou o que era.
Há cerca de quarenta e seis anos, em 1896, juntavam-se na
antiga loja de Domingos Leite, aos Arcos, vultos em destaque
na vida de Aveiro. Numa dessas noites, onde se ria o bom rir dos
portugueses, resolveram classificar aquelas sessões de Câmara do
Comércio e eleger sócio dela o dr. LUÍS DE MAGALHÃES.
Remetido o chamado diploma, a resposta não demorou.
É a seguinte:
OFÍCIO-EPÍSTOLA À CÂMARA DE COMÉRCIO DE AVEIRO
Ex.mos Senhores,
Amigos de coração:
Rendido aos vossos favores,
Venho acusar, meus
senhores,
Do Diploma a recepção.
/
297 /
Com muito orgulho, me vejo
Eleito sócio da Câmara
As mãos, Amigos, vos beijo!
Do sonho, que eu tanto almejo,
Sinto-me assim... na antecâmara.
Ah! a divina ilusão!
O antecipado deleite!
Embuçado no gabão,
Ir-me à nossa reunião,
De noite − em casa do Leite!(1)
Ver o Jaime,(2) entusiasmado,
Tronchuda e penca exaltar!
E o Vareiro(3), arrebatado,
Fazer tremer o sobrado,
Como faz tremer o mar!
Ver o conspícuo Edmundo,(4)
Com a estatística bossa,
Provar, n'um cálculo profundo,
Que não há, em todo o mundo,
Mais rica
terra que a nossa!
E o doutor António Emílio,(5)
(Envergada a jersey preta
E a toga posta no exílio)
Contando, ao grave Concílio,
Os gôzos da bicicleta...
Ver os Melos,(6) palradores,
Amigos a toda a prova,
Falando dos seus amores:
O António Carlos − das flores,
E o Carlos − da Fonte Nova...
Enquanto o Joaquim,(7) sentado,
Sobre o balcão, prestamente,
Solta o seu verbo endiabrado,
Como um cavalo folgado
Cabriolando
livremente!
Ver o Vieira,(8) incompatível
Com o Matoso(9) e os Fírmínos,(10)
A voz do acordo insensível,
Excomungá-los, terrível,
Com anátemas latinos!
Ver, entre os outros, calado,
Os olhos d'êxtase cheios,
N'um sonho d'arte enlevado
O Rocha(11) − que foi criado
De Minerva aos alvos seios!
E, ao passo que do hospital
A ideia o Visconde(12) alenta,
Ver como alegre e jovial
Um palão monumental
O nosso Amadeu(13) inventa!
/
298 /
Ah! fileira, onde me alisto,
D'almas claras como a onda,
Grémio d'homens
nunca visto,
Do Cenáculo de Cristo
Até à Távola Redonda!
Ah! terra como não há,
Nem houve, no mundo inteiro!
Que é Paris? que foi Sabá,
Corinto, Roma
ou Judá,
Amigos − ao pé de Aveiro?
Dizem os italianos:
«Ver Nápoles − e morrer!»
Mas nós outros, lusitanos,
Podemos dizer,
ufanos:
«Ver Aveiro... e então viver!»
Onde areias mais doiradas?
Onde ribas mais formosas?
Lagunas mais
prateadas?
Abraços calmos d'enseadas?
Paisagens mais deleitosas?
Onde mais verdes campinas,
Em que o nosso olhar se enleve?
Velas, nas águas, mais finas?
Mais
puras, brancas salinas,
Côm os seus cones de neve?
Onde é que olhos namorados
Vêem mais lindas mulheres,
Fino artelho, pés
alados,
Cabelos de oiro cendrados,
Ou d'ébano − se os preferes?
Por isso, em meu coração,
(Como um santo na redoma)
Guardo, com veneração
E infinita gratidão,
O vosso honroso Diploma!
E d'esse aprazível gôzo,
Mais doce do que uma tâmara,
Me sinto já tão guloso,
Que em breve, irei, pressuroso,
Tomar assento na Câmara,
Deus vos guarde, Amigos, pois,
E vos dê todos os bens,
De que vós tão dignos sois!
Moreira: Dezembro, dois,
Sócio;
Luís de Magalhães.
1896
/
299 /
Tecida a última linha dessa filigrana da graça portuguesa,
que agora é publicada na íntegra, impõem-se umas notas explicativas das pessoas que nela são visadas. Como um marçano de boa vontade,
mas sem merecimentos que a boa arte me poderia habilitar, o que bastante
sinto, preparada a enxó, a plaina, os
formões e outra ferramenta própria, verei se posso conseguir
para ela moldura apropriada...
(1) − O Leite é o saudoso amigo Domingos José dos Santos Leite,
comerciante ilustrado e duma honestidade indiscutível. Ocupou altos
cargos da sua especialidade, e, se mais adiante não avançou é porque não
quis ou o não souberam arrastar àquilo a que se aferrou como a lapa no
rochedo: − ser de Aveiro e para Aveiro. Velho amigo! No teu túmulo, que
é como o sacrário de todos os bens que espalhaste por toda a tua vida,
eu te saúdo. Homem cheio de grandeza, amaste o trabalho e, com honra,
soubeste desenvolver a tua actividade.
(2) − O Jaime...
este nome marca em mim a mais profunda das saudades.
Todas as suas vozes, todo o seu viver, são vozes do meu lar. Jaime de
Magalhães Lima, cantaste muito no meu coração e, ainda mais, na minha saudade!... O seu morrer foi o morrer de um justo.
Justo... assim lhe chamou Agostinho de Campos.
Cantou S. Francisco de Assis e, como o santo da
Úmbria, ele foi modesto,
cantando as aves, as flores, tudo isso de que se dizia irmão, fazendo da
simplicidade do seu viver a grandeza do seu carácter. Filho do pó, pediu
a Deus que o recebesse nessa poeira de humildade, e Deus, clemente e
bom, recebeu-o quando a Igreja celebrava o pulvis es do seu
cântico!...
Era cunhado de Luís de Magalhães e todos nós o vimos, como um cadáver
ambulante, a trazer para o túmulo do seu maior amigo as flores mais
queridas que encontrou, e ele próprio colheu, na sua quinta de S.
Francisco, de Vale de Suão.
Assisti ao teu funeral, padrinho duas vezes do meu coração agradecido.
Quiseste que os rouxinóis do Vouga cantassem à beira do teu túmulo!
Quiseste ficar ali, em campa rasa, à beira das águas que passam saudando
a tua vida branca e sem mácula como as tuas barbas de neve! Permite que
uma destas lágrimas que me correm pela face caia na relva que o teu
corpo alimenta... Velho amigo, meu querido amigo, coração de um
diamante, memória que eu tão doloridamente recordo, eu te saúdo!...
(3) − O Vareiro era o João dos Santos Silva, o
João Vareiro, como por
todos mais era conhecido. Capitão de marinha mercante, era, por isso,
homem do mar, rude e franco, amigo dos seus amigos, a quem não sabia
regatear favores.
Um dia desanimou de fazer bem. Farto de emprestar dinheiros e farto de
pessoas que não sabiam, ou não podiam, honrar os seus compromissos,
parou no caminho da beneficência e pôs um letreiro sobre a porta da sua
residência, que ficava ao fundo da rua da Sé, em que se dizia: − «O
alma do diabo do dono desta casa declara que não faz favores a ninguém».
Mas isso era um desabafo. Era a mesma coisa que
ele dizia no alto mar
quando não havia vento e no navio, oscilado pela vaga, apenas se ouvia o
bater de velas nas enxárcias e mastros nessa canção aborrecida da
solidão oceânica. Dizia ele − raios parta o Senhor dos Navegantes que
não manda vento para andarmos, ou qualquer outra expressão idêntica
quando fustigado pelas grandes tempestades...
Passado o momento do perigo, poderia ir à missa, já de bem com o
Senhor dos Navegantes e com todos os santos da sua devoção...
(4) − O Edmundo era o dr. Edmundo de Magalhães Machado, que foi
uma pessoa de destaque em Aveiro.
Em 1896 ocupava ele o lugar de presidente da Associação Comercial
e, no ano seguinte, no Relatório e Contas da mesma agremiação, num trabalho
/
300 / importante que muito o honrou, coube-lhe o encargo, bem amargo,
por certo, de prestar homenagem a Sebastião de Carvalho e Lima, falecido
em 23 de Março daquele ano. Ali se lê: − «Vulto respeitável e
geralmente
respeitado, espírito altamente esclarecido e culto, foi larga a folha de
serviços com que durante longos anos contribuiu para o engrandecimento
desta região, quer como presidente da Câmara Municipal, quer como presidente da «Caixa Económica de Aveiro», instituição simpática e
benemérita, de que por muito tempo foi a alma, e até a vida nas
situações difíceis. Fora
um dos sócios fundadores da Associação Comercial, e por mais de uma
vez fez parte da sua direcção na qualidade de presidente, cargo que, até
ao momento de ver avizinhar-se a morte, desempenhou sempre com aquele
critério e tino prático que tão particularmente distinguiam as suas
notáveis
faculdades».
Foi, além disso, presidente da Direcção do Sindicato
Agrícola do
Distrito de Aveiro, e, como tal, desempenhou o seu lugar com muita dedicação e saber. A sua circular, por exemplo, de 20 de Março de 1899, é
uma prova clara da sua competência. Recomendou a leitura do Guia prático para o emprego de adubos em Portugal, de JOÃO DA MATA PREGO,
mas, a
meu ver, só o fez por modéstia. Ele, em teoria e na prática, estava à
mesma altura dos "bons mestres em agronomia. As suas instruções sobre
culturas e adubos são modelares.
Não foi só escrevendo que mostrou a sua competência. Em contacto
directo com a terra, honrou bem o seu nome de cultivador. Introduziu em
Portugal sementes estrangeiras devidamente seleccionadas, e, na
plantação
de batatas e na sementeira de outras espécies agrícolas, atacou de
frente tudo o que era rotineiro, fazendo cavar a terra e beneficiando a
lavoura com um critério até então deploravelmente desconhecido.
Recordo ainda um gesto do seu desinteresse individual. Possuidor
de uma esplêndida marinha de sal em S. Tiago, sacrificou-a aos seus
estudos e fez dela uma piscina que foi como que uma escola que muito
poderia beneficiar esta região onde se cultivou, com mágoa o direi, esse
bacilus a que chamariam dulce far niente os pessimistas das regiões do
Adriático...
Se eu tiver vida e saúde, e possa escrever outras rondas, talvez que
um dia me resolva a associar o seu nome ao nome ilustre e, com mágoa o
digo, bastante esquecido, de JOSÉ MARIA DE MELO DE MATOS, o autor do
Laboratório marítimo de Aveiro e de outros trabalhos de semelhante
interesse.
Calarei, por isso, outras considerações a fazer.
O dr. Edmundo de Magalhães Machado, sendo médico distinto, especializou-se em doenças de olhos, e, como tal, foi chamado para tratar
da cegueira de CAMILO CASTELO BRANCO. Um dia, tendo visitado o grande
romancista, ao descer a escada, ouviu a detonação de um tiro. Subiu de
novo e deparou com o suicídio... Repetiria, então, o que Portugal
também
repetiria, tomado de uma grande dor, a frase amarga de VIRGÍLIO perante
um grande infortúnio: − Sunt lacrimae rerum...
(5) − António Emílio era o dr. António Emílio de Almeida Azevedo...
Foi um jurisconsulto distinto e um magistrado de rara honestidade.
Em toda a parte por onde andou, perto ou longe da sua terra, soube
honrar
o seu nome e ligá-lo à sua família, sempre ilustre e sempre limpo.
Há quarenta e seis anos − a mocidade manda muito!
− resolvi ir ver
Madrid, e, numa noite, fui ouvir D. António Maura na sua tribuna do Ateneo.
Perante a sua figura e o seu processo de falar, logo recordei um
patrício
meu, como um dia antes recordara Marques Mano quando visitei Gumersindo
Azcarate. Aquele patrício, que era também um amigo dedicado, era o dr. António Emílio de Almeida Azevedo. Ouvi falar o grande tribuno espanhol, grande como Castelar e Cânovas, como Romero Robledo e Moret...
A princípio parece que estava pensando o que deveria dizer, indeciso,
sem
gestos... um pobre homem que vai dizer um recado. Mas a máquina vai
aquecendo, as ideias vão surgindo, e, quando pouco esperamos, surge a
aurora com todos os seus deslumbramentos... É o bramir do tribuno que
/
301 /
canta no fluxo e refluxo das suas ondas de eloquência, a grande vida do
seu talento e da sua arte.
Assim era também, observadas certas distâncias, a oratória do dr.
António Emílio de Almeida Azevedo... Assemelhava-se e não ficaria mal ao
pé dele.
Poderia ainda referir-me à sua actividade como juiz de instrução
criminal que foi cortada, quando a luz começava a fazer-se, que foi
como que o tiro de Chateaubriand sobre a cascavel que se lançou sobre
ele, que recebeu o embate da serpente mas sem a cabeça que conduzia o
veneno... Poderia referir-me às Comunidades de Goa e a outros trabalhos
de valor que publicou, mas vejo que tenho ainda de escrever bastante e o
espaço permitido vai rareando...
(6) − Os Melos ali citados eram o Carlos da Silva Melo Guimarães e o dr.
António Carlos da Silva Melo Guimarães. Ambos eram homens de boa
educação, activos, inteligentes, tendo em si alguma coisa de Manuel de
Melo, daquele filho de Aveiro que no Brasil foi... o que Camilo Castelo
Branco escreveu em sua memória.
Ah! recordo aquele nome ilustre, não porque com
ele tivesse relações de
amizade, mas pelo muito que o apreciei através do seu talento e do seu
muito saber. Eu li e reli o seu livro Da Glótica em Portugal e devo-o
ter no mare magum dos meus amores predilectos. Ele honrou uma família.
Só por aberração, qualquer indivíduo do mesmo sangue poderia ser
indigno, mas algumas vezes isso tem sucedido. Nenhuma dessas aberrações,
porém, se deu na família tão justamente estimada dos Melos.
Manuel de Melo, sendo uma individualidade de raro fulgor, foi um lar de
literatura feliz onde se aqueceram, nos diversos sectores da sua
actividade, os seus amigos e parentes. Todos os Melos Guimarães, todos
os Melos Freitas, todos os Farias e Melos, toda essa gente da boa gente
de Aveiro daí receberam a boa lição do civismo e pode dizer-se mais, a
herança benéfica, embora cheia de responsabilidades, de um grande vulto
que − infeliz dele, da sua grande alma de patriota, da sua grande
ternura pela nossa terra − foi deixar os seus ossos, ossos queridos da
nossa saudade, num cemitério longínquo das suas pátrias do Brasil e de
Portugal − num cemitério de Milão, dessa Itália de Dante e de Virgílio,
de Ariosto e de Petrarca que tão primorosamente foi cantada por dois dos
melhores oradores peninsulares − por Castelar e Alves Mendes. Desejaria
alargar-me sobre o que escreveu Soares Romeu Júnior, e ainda Camilo
Castelo Branco,
sobre Manuel de Melo. Valeria a pena − direi antes o grande prazer
arquivar aquelas páginas da Boémia do Espírito sobre o extraordinário
filólogo cuja erudição marcava um dos primeiros homens doutos que
escrevia em português sem mácula. É forçoso evitar divagações, por muito
interessantes que sejam, e, por isso, as suspendo...
Carlos Melo − e quando digo Carlos Melo, digo o dr. António Carlos, o
Luís, o David, toda essa família de industriais activos e honestos −
deixou uma boa lembrança de si. Dizia um dia Alberto Pimentel... mas
deixarei esta e outras citações, para me fixar numa outra, e essa basta.
Almeida d'Eça, que não nasceu em Aveiro, mas que foi educado nesta
região onde seu avô estadeara a sua farda verde de capitão-mor nos
tempos heróicos da repulsa das hostes napoleónicas... Almeida d'Eça, no
seu prefácio de uma Sessão de Arte no Museu Regional de Aveiro, dizia:
− «Fui também ver a
fábrica da Fonte Nova, e ali verifiquei outro documento do culto da
tradição. Processos modernos, porventura ainda hesitantes, mas boa
orientação na escolha dos modelos, gomis, jarras, travessas de forma
portuguesa, com os azuis, os amarelos e os roxos desmaiados das nossas
antigas faianças, e sobretudo reconstituição dos nossos tão
característicos azulejos.»
O dr. António Carlos da Silva Melo Guimarães foi também um homem de
destaque entre nós. Cultivando com esmero as suas flores, exercendo
altos cargos na vida local, foi sempre um homem de bem fazer, amigo a
toda a prova, como muito bem disse Luís de Magalhães.
(7) − O Joaquim era o dr. Joaquim de Melo Freitas, nome que, grande como
é, não cabe bem numa simples nota, embora eu procure abreviá-la o
/ 302 /
mais que posso. Para dele escrever aqui seria como meter o Rocio na
Betesga.
Ele enche a antiga Praça do
Comércio, ali, em frente dos Arcos, onde Joaquim José de Queirós, naquela manhã de 16 de Maio de 1828, indo da
sua casa de Verdemilho, foi levantar o primeiro viva a Liberdade, em
revolta contra o absolutismo de D. Miguel. Mas o seu nome não cabe ali.
Falando ou escrevendo, era alguma coisa de grande.
Eu já disse quanto apreciava o seu carácter e o seu talento, naquela
tarde cheia de tristeza de 9 de Dezembro de 1923, quando se realizava o
seu funeral no cemitério de Aveiro. Poderia dizer muito mais de que
proferi naquele apagado discurso, poderia mesmo falar de muitos dos
seus livros e opúsculos que quase todos me foram oferecidos com
dedicatórias honrosas e, por vezes, iluminadas com muito espírito, com
aquele espírito
que tanto caracterizava a sua forma de se exprimir. Limito-me, porém, a
repetir conceitos que dele fazia Magalhães Lima, o distinto e
interessante autor dos Episódios da minha vida e de muitos outros
livros.
Sebastião de Magalhães Lima escreveu no epilogo do
A granel de Melo
Freitas:
«Escreve como fala, singelamente, correntemente. E, no meio de tudo, uma
ironia, um parêntese, uma anedota, que ele aplica ao caso, como qualquer
aprendiz de latim aplica uma regra na análise miúda de um período de
livro. É fértil e abundante.
....................................................................................................................................
«Não sei porquê, quando leio os seus livros, recordo-me, naturalmente, do meu malogrado amigo Júlio César Machado. Há pontos
de contacto entre os dois escritores, e de tal modo que, tendo eu um
dia esboçado o perfil do brilhante folhetinista português, reconheço
agora com surpresa, que o juízo que dele formulei, cabe, em parte, sem
exagero, a Melo Freitas.»
Nestas alturas, velho amigo, estive para sair fora da linguagem
necrológica, porque só tenho tratado de mortos nesta ronda de saudades,
e dizer alguma coisa das tuas diabruras, bagatelas, provincianismos e
chineserias, mas não; não perturbarei o teu sono de paz.
(8) − Vieira é o padre Manuel Rodrigues Vieira, figura de grande merecimento que se distinguiu como professor, como orador e, sobretudo,
como
jornalista, cujas actividades conheço em mais de vinte anos de
camaradagem. Por isso, posso afirmar, no limite, é claro, da minha
competência, que foi ele um dos jornalistas mais brilhantes das últimas
gerações literárias de Aveiro.
Haverá outros que, numa ou outra especialidade, o vencessem, e, de certo,
havia quem fosse mais trabalhador em investigar e mais hábil no combate,
em produzir o enredo dum romance ou descrever paisagens ou costumes, em
fazer poesia com toda a beleza dos lírios ou escrever um pedaço de prosa
com toda a severidade do bronze. O padre Manuel Rodrigues Vieira não seria o mais profundo em qualquer dessas especialidades, mas conhecia,
como poucos, as linhas gerais com que tecia a rede dos seus objectivos e
a apresentava nítida de clareza, de lógica, resumindo
ideias, procurando os fracos de uma posição e vencendo-os muitas vezes
pela razão ou pelo ridículo. O ridendo castigat mores foi nele uma arma
terrível. Juvenal não seria mais intensivo no combate. O espaço está-me
a faltar e eu não posso abusar desabridamente da paciência do leitor. Eu
talvez um dia me resolva a dizer mais larga e pormenorizadamente o que
foi o seu jornalismo local, além de todos os outros merecimentos que
ilustraram a sua vida pública e particular.
(9) − O Matoso era o Conselheiro Francisco de Castro Matoso da Silva
Côrte-Real, senhor da chamada Casa do Morgado, da Oliveirinha.
Daquele casamento de Francisco Joaquim de Castro Pereira Côrte-Real e de
D. Maria Augusta de Meneses Silva e Castro, nasceram naquela ridente
povoação do sul de Aveiro, três grandes vultos da terra portuguesa: −
Francisco de Castro Matoso, José Luciano de Castro e Augusto Maria de
Castro. Todos eles foram homens de talento e de carácter sem mancha,
verdadeiros cristais de rocha perante um sol amigo.
/
303 /
Castro Matoso era o mais velho e, por isso, chefe e senhor daquela
Casa donde recebi as maiores provas de consideração e estima. Poderia,
por isso, dizer alguma coisa do que foi aquele tão querido amigo, mas a
saudade é como um longo pano de névoas que cai entre nós como noite
sem luz e sem estrelas.
Num dia, ao jantar, na Oliveirinha, entre outros, estava o dr. António
Emílio... Castro Matoso, mal humorado, aborrecido com o decorrer da vida
e cheio de dor pela morte de seu filho Francisco, dizia quase com
profética
visão: − «Vá reservando, amigo António Emílio, no seu mealheiro, alguns
vinténs com que um dia possa comprar esta casa... A minha morte será o
seu fim!» E algumas lágrimas eu, que assisti àquela cena, lhe vi cair
pela face.
Por isso, mesmo em público, eu já, por uma ou duas vezes, lamentei
que o último abencerragem dessa família ilustre que se chama AUGUSTO DE
CASTRO − seria bom que este nome fosse escrito em oiro − não tomasse
sobre si a propriedade daquele Solar cheio de nobreza e tradições.
O grande jornalista e diplomata que é, ao mesmo tempo, um dos maiores publicistas da sua geração, escreveu num prefácio primoroso com que
abre um belo livro de RICARDO SOUTO: − «n'este momento, daria todos os
banquetes principescos do mundo, por uma caldeirada de peixe do rio de
Aveiro, cheirosa, fumegante, crepitando de azeite e côdeas de trigo,
espessa
e picante, capaz de ressuscitar o estômago de um morto − preparada e
saboreada à sombra dos salgueiros, ao ar livre e quente, numa dessas
tardes
de Agosto, verde e oiro, de que o Vouga da minha infância conserva ainda
hoje a meus olhos, o privilegiado e claro segredo!»
Quem assim escreveu poderia acrescentar os seus amores por aquelas
agras cheias de verdura e frutos que tanto caracterizam as terras da Oliveirinha.
Ele próprio diz que a aldeia foi a melhor escola do seu espírito
e, se mais tarde a vida o separou dessas primeiras afeições, nunca, na
realidade, as esqueceu.
Mas... deixemos isto, mesmo porque cada período que se transcreva
daquele maravilhoso prefácio dá vontade de o repetir na íntegra. Através
dele, embalado naquele encanto com que descreve, naquela tarde Pálida da
Bélgica, a sua infância, o carinho do seu lar, as suas águas, a visita e recordação dos seus amigos
− algumas canções do túmulo − em dias de festa
na capela privativa da sua casa do Funtão, em tudo isso que é viver...
eu
recordo também, e com saudade, um grande amigo, que teve o mesmo
sangue de seu pai, que morreu, é certo, longe da sua aldeia natal, mas
quis
vir viver a sua morte no berço do seu nascer da Oliveirinha. Tudo ali
findou, como um aerólito que se precipitasse do alto, iluminando o espaço e
afundando-se no escuro da noite...
Casa de grandes tradições, ruas, alameda, flores, canavial da fonte...
há muito que de tudo isso me despedi! ...
(10) − Os Firminos eram uma família numerosa que aqui viveu com muito
prestígio político sob o patriarcado, se assim me posso exprimir, de
Manuel
Firmino de Almeida Maia. Este homem teve merecimentos incontestáveis.
De simples regedor, subiu à presidência da Câmara de Aveiro e à da Junta
Geral do Distrito. Foi deputado e par do Reino, sobre o seu peito
brilhava
a Cruz da Legião de Honra por feitos de benemerência
no naufrágio do
Nathalie, em 23 de Outubro de 1880 na costa da Torreira.
Àquela família pertenceram seus filhos Fernando e Firmino de
Vilhena, que muito se distinguiram pelo seu talento nas refregas
jornalísticas da localidade e em diversas publicações avulsas em prosa e verso
e,
sobre todos, seu genro José Maria Barbosa de Magalhães que foi um
causídico de grande e justa nomeada, não só em Aveiro, mas em todo
o país.
Eu tenho aqui a sua Dissertação académica que trata
Da não retroactividade da lei que é, em minha opinião, um trabalho jurídico de
profundo
saber. Com verdade ali se diz: − «Se no embate dos interesses e no
tumultuar das paixões se pudessem escutar sempre os ditames da razão,
/
304 / justiça
teria na consciência o mais augusto templo, e no remorso a mais austera
garantia.»
E acrescenta: − «Para quê magistrados, tribunais, leis, se o homem
dominasse as tendências orgânicas, os instintos egoístas, e os
movimentos febris da sua vontade pela força sublime da liberdade? O
equilíbrio dos egoísmos individuais não careceria da balança do
Areópago, nem da espada de Salomão, nem da venda de Themis. A humanidade
dispensaria Moisés, Licurgo, Sólon, Numa. O Direito não precisaria de
tábuas, nem de códigos.»
Desta família ficou um homem que, felizmente vivo, em toda a parte a
representa com carácter e com talento, o dr. José Maria de Vilhena
Barbosa de Magalhães.
(11) − O Rocha é o Francisco Augusto da Silva Rocha, o único sobrevivente
citado por Luís de Magalhães na sua Carta-Epístola à Câmara do Comércio
de Aveiro. Não lhe deve ter sido desagradável ler estas alusões a velhos
amigos já falecidos, embora com o doce amargo da saudade, mas não deve
estar desgostoso de ser vivo. Creia que, por isso, o felicito, com
franqueza e sinceridade.
Desculpe o meu prezado amigo se não lhe traço hoje aqui umas notas... necrológicas, embora ligeiras.
É certo que, vindo da escola autorizada
da
Vista Alegre, que em arte é alguma coisa de muito valor, tem ocupado em
Aveiro cargos bem dignos da sua competência. Não lhe falta, portanto, a
matéria prima para um bom e longo elogio, embora o não possa incluir nos
Paralelos de Príncipes, e Varões Ilustres de Francisco Soares Toscano...
O meu bom e caro Silva Rocha dispensa tudo isso e prefere estar vivo.
Mas, não obstante isso, eu recordo uns versos de Nicolau Tolentino
que vão... num abraço, como se eu os pudesse escrever:
Homem são e sem reserva,
...........................................
Nutrido.............................
Com o leite de Minerva:
Vosso servo hoje se atreve
Em mandar em má poesia
Bons desejos, que ter
deve;
Que tenhais paz e alegria.
(12) − O Visconde era o Visconde da Silva Melo, um bom homem que, provedor
da Santa Casa da Misericórdia de Aveiro, muito interveio e se interessou
para a construção do novo hospital. Pertencia à família dos Melos, mas
não era o mais palrador. A sua voz mais apreciável não lhe saía dos
lábios; saía-lhe da algibeira com destino aos deserdados da sorte. O
seu palacete no Largo do Espírito Santo era um asilo da pobreza.
Compreendia bem a caridade. Não levava para a sua mesa, como S.
Gregório Magno, os pobres da sua terra. Socorria-os, todavia, com
carinho, quase que envolvendo em flores a sua dedicação cristã.
Teve razão, por isso, o Conselheiro Castro Matoso quando em 16 de
Outubro de 1901 inaugurou a construção do nosso hospital, num belo
discurso que também ficaria dignamente gravado em letras de oiro à volta
do seu nome:
«Que esse homem de quem se lembrava sempre com muita saudade e não
menos gratidão, o Visconde da Silva Melo, não pudera chegar àquele dia,
que seria de certo um dos mais felizes da sua vida, se vivesse ainda,
pois assistiria ao coroamento dos seus persistentes e louváveis
esforços. Que aquele lugar era dele e só dele, mas já que Deus assim
quisera, esforçar-se-ia tanto quanto pudesse para que a obra iniciada
por ele fosse levada a final para assim melhor se galardoar a memória de
tão prestante, tão benemérito cidadão como fora o Visconde da Silva
Melo.»
Eu bem quereria transcrever todo
este discurso de Castro Matoso daquela
tão interessante homenagem que lhe foi prestada por Marques
/ 305 /
[Vol. VIII - N.º
32 - 1942]
Gomes em 1906, mas o espaço não mo permite e eu sou forçado a findar
esta ronda...
(13) − O Amadeu era o Amadeu de Faria Magalhães e o
palão monumental que
ele inventou é o seguinte:
Em 1896, um grupo de amigos resolveu fazer uma visita a Luís de
Magalhães na sua casa da Quinta do Mosteiro, em Moreira da Maia. Como
era de esperar, foi um dia cheio de boa graça em que se encontraram os
bons espíritos de que falam os franceses num sugestivo conceito popular.
Amadeu Faria resolveu fazer uma narrativa daquela visita e fê-la em
trinta e seis curiosas sextilhas a que pôs o título da História dos onze valentes desta terra. Com o pseudónimo de FRADINHO, fez a publicação em
poucos exemplares, destinados apenas aos componentes da caravana, ou
pouco mais.
Assim começou:
I
As oito horas bateram da manhã;
Tomam todos caminho da estação.
O Jaime faz de bolsa. «Campanhã!»
assim grita o chefe da missão.
E os sócios que os bilhetes receberam,
nos bolsos, cautelosos,
esconderam.
Descreve, em seguida, essa viagem, o jantar, todos os episódios
próprios que sempre se dão em divertimentos dessa natureza, fazendo-o
com graça e, por vezes, com muito relevo artístico. No regresso daquela,
como ele diz
XXVIII.
......................... «Cam'ra ótica»
que alegre mais não há e patriótica.
FRADINIlO, continuando a narrativa, viu no trem
XXX
................ um velho d'aspecto de pateta
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
e, ele o diz:
eu devo confessar que foi então
que julguei oportuno um bom palão.
XXXI
D'est'arte me dirigi ao viandante:
− «A boca tanto abris, que eu imagino
«oh! que tentais comer algum
gigante!
. . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
mas se
quereis comer bem, boa ração,
«vinde a Aveiro, gostais de tubarão?
XXXII
− «Jamais vi' d'esse peixe e tenho pena
«nem conheço a terra em que
falais.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
/ 306 /
XXXIII
− «o tubarão, amigo, é peixe enorme
«que se pesca có'a abob'ra bem assada.
«O pescador astuto nunca dorme;
«de noite é ocasião mais bem azada.
«Mas já ouvi dizer: melhor destroço,
«é quando o tubarão busca o almôço.»
XXXIV
− «Na minha terra abunda o camarão... »
− «Quem d'isso caso faz, reles
marisco!...
«Tubarão, meu amigo, o tubarão,
«d'esse sim, d'esse sim, um bom petisco!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
XXXV
− «Vós tendes por ventura lá douradas
«tão bastas quais sardinhas em canastra?!
«Se vísseis ratoeiras bem armadas
«d'este peixe apanhar que a ria alastra!...
Mas o comboio chega à estação;
Tive pois de findar o meu palão.
Desejava terminar aqui, mas, por tão pouco, não vale a pena
tirar aos leitores o sabor final dos versos de AMADEU FARIA.
Assim terminam:
XXXVI
Agora, ponho aqui ponto final
que os feitos d'esta empresa 'stão contados,
ou fossem bem contados, fossem mal:
onze varões d'Aveiro assinalados
puderam conquistar além do Douro,
p'ra todo o sempre, amen, um grande fôro.
_____________________
E, agora, só me resta pedir desculpa aos leitores, se alguns
tenho, do muito que me alarguei, mais do que supunha, nesta
ronda de saudades.
Verdemilho, Agosto de 1942.
ACÁCIO ROSA |