INDÍCIOS
comprovativos de valioso trânsito romano, como sejam marcos miliários e
retalhos de calçada a lájeas amplas ou grandes calhaus de rolamento, não
nos foi dado encontrar. Todavia, pelo amiúde calcorrear na bacia do
MarneI e encostas várias do Alfusqueiro, uma ou outra realidade mereceu
nossa atenção. Assim, na vertente norte do rio Vouga, entre o lugar de
Serém de Cima e o campo que este curso fluvial margina, sulcando duro
arenito triádico, pequeno trecho de larga e antiga via, que de tempos
imemoriais até à construção da nova estrada de Lisboa ao Porto serviu ao
tráfego e a transeuntes nortenhos, poupado tem sido pelo alvião, que a
maior parte do lanço já transformou em terra de cultura, pelo que ainda
ali se patenteia com restos de valetas e os fundos sulcos que lhe
imprimiu o rodar dos veículos durante muitas centenas de anos, como pode
verificar-se pelos documentos fotográficos n.os 1 e 2.
Compreende-se a inexistência
de calçada aqui, porquanto a solidez do arenito vermelho bem a
dispensava.
Transpondo a velha ponte
sobre o Vouga, mandada reformar no reinado de D. João V, dizendo-se que
outra mais antiga lhe serve de alicerce − e com verdade certamente −,
esta construída ou melhorada na primeira metade do século XlV, com
legados de membros eclesiásticos, a estrada romana, que depois se tornou
rua a meio da antiga vila de Vouga, colearia o montículo onde poisa o
casario do lugar de Lamas, para atingir a ponte do MarneI, a que a
actual precedeu, pois esta, a presente, pelas siglas abertas em seus
pilares, parece indicar construção do século XlI, subindo depois a
Pedaçães, a vetustíssima Padasanes, e daqui se estenderia para o
local onde veio a erguer-se Mourisca, povoação mais recente, como o
próprio nome deixa concluir. Ora, no trajecto que vai da meia-encosta
até para além do referido lugar de Pedaçães, se do primitivo
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empedramento romano nada mais resta, por lá ficaram, entretanto, muitas
das volumosas pedras que lhe pertenceram e agora servem em o novo
calcetamento que o substituiu, ou valem de amparo nas bermas da parte
macadamizada.
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A antiga via romana não
poderia situar-se muito a poente da vila de remota origem, como é
Vouga, hoje reduzido povoado, pois até esta chegaria o esteiro
nascido na curva do litoral, a leste de onde demora a populosa e
rica Angeja; esteiro esse aberto em grés mesozóico, que não
atravessaria a referida via o braço marinho onde desaguavam o Vouga,
o Águeda e o Cértoma, pois, para fazê-lo, muito extensa obra de arte
se haveria tornado necessária; obra de que não restam indícios nem
memória escrita ou falada. Demais, os romanos procuravam para as
suas estradas, não importa o principal fim a que fossem destinadas,
o chão firme e as elevações de grande raio visual, para maior
segurança do trânsito e apercebimento do que pudesse
interessar-lhes. Segurança aquela que junto à falda da formação
precâmbrica melhor se lhes deparava. |
Gravura n.º 1 − Trecho da velha estrada entre Serém de Cima e a
ponte de Vouga. |
Na escavação procedida no
Cabeço de Vouga, assim denominado possivelmente por sua posição a
montante da foz do rio, nos espaços limitados pelo vário alicerçamento
encontrado, restos certamente de castreja construção e moradas adjuntas,
alguns pedaços de calcário, contando-se mesmo um bloco de certa
grandeza, identificado como do juráico de Portunhos, apareceram,
deixando-nos a presunção de que a cal gasta na construção no próprio
local haveria sido obtida pelo descarbonarnento; carreada, portanto,
para ali a respectiva pedra em bruto, o que só poderia ter-se efectuado
por sólido caminho nas proximidades existentes; facto que de alguma
forma confirma
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a passagem da grande estrada romana logo a poente do monte vougano.
Da ponte do Marnel, em
perpendicular, se ergueria a estrada para a Beira, atravessando a
floresta a que veio a suceder a populosa e florescente aldeia de
Arrancada, daqui subindo até A dos Ferreiros, onde se bifurcaria,
seguindo um ramo pelo cabeço de Arrompecilha e alcançando Talhadas e
Viseu, o outro rumando para o rio então denominado Ágata, depois
Alfusqueiro, curso que atravessaria em ponte ruída por fins do século
XVII, e com cujo material outra foi construída, a actual.
E daí prosseguindo,
encosta alta, até ao monte fronteiro a Cabeça de Cão (antes Cabeço
do Cão, que onde demora o povoado não dá o relevo nenhuma ideia de
contorno canicéfalo, e Cabeço do Cão fora, segundo tradição ali
corrente), descendo depois até Macieira de Alcôba para alcançar
seguidamente S. João do Monte, Porta do Guardão; e, finalmente, a
extensa peneplanície dos rios Dão e Mondego, como o indicam os
fortes rodados, em vários pontos bem visíveis e primeiramente
mencionados, que saibamos, pelo muito ilustre abade aposentado de
Cucujães, Sr. J. Domingues Arêde, que pelos sítios se tem dedicado a
interessantes investigações. |
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Gravura n.º 2 − Trecho da velha estrada entre Serém de Cima e a
ponte de Vouga. |
Dissemos que o rio Ágata foi
posteriormente denominado Alfusqueiro, pelos árabes crivelmente, pois
tão volumoso caudal, antes da chegada destes se não encontraria sem nome
próprio. Nem se compreenderia que ao ribeiro que desce de S. João do
Monte tocassem as honras de estender denominação ao conjunto formado
pela confluência Alfusqueiro-Agadão, quando não passa de relativamente
forte ribeira afluente do segundo. E se o formoso designativo de Ágata,
depois Águeda, lhe foi atribuído, tal se haverá feito por exclusão de
partes: existindo em
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velhos manuscritos referências ao legítimo Ágata, e encontrando-se de
nome posto os maiores cursos, atirou-se com este denominativo para a
referida forte ribeira, à falta de melhor.
Uma hipótese, bem entendido,
mas que a verdade possivelmente representará. A velha ponte do Marnel
mostra seus olhais com a direcção ENE-OSO, enquanto que a nova vala, por
onde ora se faz a corrente, aberta entre aquela ponte e a do caminho de
ferro do Vale do Vouga, tem a de E-O. Significa isto que o antigo curso
se encontrava mais ao norte, ou junto à base da vertente sul do Cabeço
de Vouga, conservando ainda um terreno próximo a Carvalhal da Portela o
toponímico de Portelho, evidentemente memória de que ali chegariam
barcos outrora, ou fora ponto de bateiras para travessia da vala ou rio,
deixando ainda presumir que mais vultosas teriam sido as águas do Marnel
em tempos recuados.
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Ora, à referida base,
junto na orla da pateira, acusa esta maior profundidade, sendo
conhecida aqui pelo nome de vala velha, porque, de facto, como
dissemos, por ali derivou o grosso do caudal do rio, ou mesmo a sua
totalidade, visto que a pateira não conta existência maior de 200
anos e reza a tradição que a sua área servira a mercado no decorrer
de anos já muito afastados. E dizem as gentes de Lamas que nos
verões muito secos se verifica ser o fundo desta vala uma calçada.
Sendo assim, fácil é depreender que o rio Marnel corria ao lado
desta calçada, que seria a via romana para a Beira, vindo ali a
assorear-se e, finalmente, a fluir sobre a referida calçada com o
nome de vala do Marnel, a velha vala de hoje. |
Gravura n.º 3 − Grandes pedras nos taludes do ribeiro do Beco. |
A leste da ponte do caminho
de ferro do Vale do Vouga, largo trato de terreno é conhecido pela
designação de Calçada. Levado pelo toponímico, fomos então procurar
algum vestígio...
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Traçado geral das vias romanas no concelho de Águeda, relacionadas
com as vias de comunicação actuais. |
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que nos comprovasse pelo sítio a passagem da via romana, e logo nos
taludes que amparam as margens do ribeiro do Beco, cujo álveo vale
também como servidão das terras circunvizinhas, deparamos com largas
pedras, cuja permanência ali só pode ter a explicação de haverem
pertencido ao desfeito calçamento romano e de serem de difícil remoção.
Pedras como as que mostram os documentos fotográficos n.os 3 e 4.
Caminho acima, a meio da encosta da elevação do Espinheiro, em declive
para o campo, 14 anos haverá que um lavrador arroteou o solo de velho
sobreiral, revolvendo muitos pedaços de tégula e várias mós manuárias,
com achado mesmo de uma lagariça, que, infelizmente, demoliu. Ocorrência
de que só tivemos conhecimento ao passarmos pela arroteia e pelo relato
do mesmo lavrador que ali andava em serviços da lavoura.
Prosseguindo sempre, ao sul
do lugar de Aldeia de Arrancada, um outro
terreno se denomina Calçada, mas aqui nada encontramos de fácies romana.
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Gravura n.º 4 − Bloco de pedra no talude do ribeiro do Beco. |
Indicações são todas as referidas que mais nos arraigaram a convicção de
que a velha via romana para a Beira, isto é, para Viseu e Vale de
Besteiros, a partir das proximidades
da orla marítima, houve seu começo junto à ponte do MarneI.
Pelo esboço, constituído apenas por linhas pedidas à memória, e que esta sucinta exposição acompanha, melhor compreendido será
nosso relato.
JOAQUIM SOARES DE SOUSA
BAPTISTA |