Vaz Ferreira, Santa Luzia do Castelo da Feira, Vol. VIII, pp. 5-11.

SANTA LUZIA

DO CASTELO DA FEIRA

par do Castelo da Feira existe a capela da Senhora de Março, linda edificação sextavada com a porta e os três altares guarnecidos por pilastras lavradas em duas volutas reentrantes ao meio graciosamente e sobreposta a de cima pelo relevo duma folha de acanto.

Sobre a porta e por baixo do enquadramento duma rosácea hexagonal, cujo vitral actualmente ostenta a cruz floreada e aberta dos Pereiras, está inscrita a legenda:

ESTA CAPELA MANDOV FAZER A CONDEÇA
DA FEIRA D. JOANNA FORJAZ PEREI-
RA DE MENEZES & SILVA − 1656


O padre FRANCISCO DE SANTA MARIA, reitor do Convento de Santo Eloi de Lisboa, na sua História das Sagradas Congregações dos Cónegos Seculares de S. Jorge em Alga de Veneza & de S. João Evangelista em Portugal, publicada em 1697, e a que chamou O Céu aberto na terra, diz, referindo-se à igreja de S. Nicolau do convento dos lóios na Feira:

«Tem mais esta Igreja sete Ermidas:

a primeira de N. S. da Encarnação, sita no Castelo, a qual reedificou à sua custa a excelentíssima senhora D. Joana Forjaz Pereira Meneses e Silva, e toda de cantaria, sextavada, coisa perfeitíssima. Nela se guardam notáveis relíquias de Santos:

a segunda é de S. Luzia Virgem e Mártir.» / 6 /

Outra interessante referência às capelas é a que se encontra na resposta ao questionário ordenado pelo Marquês de Pombal, dada pelo vigário José de São Pedro Quintela, na data de 30 de Abril de 1758, e existente na Torre de Tombo:

«Tem mais esta freguesia oito capelas que são:

Nossa Senhora da Encarnação do Castelo a qual reedificou à sua custa a excelentíssima senhora D. Joana Forjaz Pereira Meneses e Silva da nobilíssima casa dos condes desta vila, é toda de cantaria, sextavada, coisa perfeita, nela se guardam notáveis relíquias de santos das quais muitas pelo curso do tempo têm levado descaminho; tem esta capela três altares, em um dos quais esta novamente colocada a imagem de Santa Luzia por se ter arruinado a capela da dita Santa que estava extra muros do mesmo Castelo, sem romagem.»

Em outros textos se lê que esta arruinada capela de Santa Luzia era perto da tenalha do Castelo; mas sem se poder precisar a localização exacta.

Desaparecida entre 1697 e 1758 a capela de Santa Luzia, pode atribuir-se a sua ruína ao terramoto de 1755; mas não é de acreditar esta hipótese; porque o vigário Quintela, ao quesito sobre as consequências desse cataclismo, responde:

«Além desta ruína (a do campanário do torreão noroeste da torre de menagem do Castelo) agora referida e da abóbada da Misericórdia e do dormitório do convento, como acima dissemos, não houve ruína alguma memorável.»

Aquelas palavras «novamente colocada a imagem» dão-nos a errada ideia de ter vindo da capela arruinada, a Santa Luzia, sua padroeira, para a reconstruída havia pouco menos de um século.

Não sucedeu isso. Logo ao reedificar-se a capela do Castelo foi um dos altares destinado a Santa Luzia, que tinha e conserva grande devoção dos povos destes sítios, como advogada das doenças de olhos.

Vê-se que a condessa D. Joana quis consagrar esse altar à Santa Luzia, porque, entre as pilastras, as pinturas representam esta santa à direita e a Rainha Santa à esquerda.

Bem visíveis estão na gravura do interior da actual capela a imagem e o quadro representando a Santa Luzia.

No altar fronteiro, não abrangido na fotografia, está outra imagem da mesma Santa Luzia, de madeira, semelhante na feitura, maneira, colorido e tamanho, à da Senhora da Encarnação que se vê no altar principal, com um quadro da Anunciação / 7 / por cima, entre a curva do arco da cantaria envolvente cortada pela lisonja da condessa D. Joana.

Temos de considerar esta devota senhora incapaz de ir tirar à sua capela ainda existente a imagem aí venerada pelo povo, com tanta devoção que ela quis erguer um altar na nova capela à mesma Santa, mas a diversa imagem.

CASTELO DA FEIRA − Interior da capela

Vamos à descoberta da velha capela e da imagem lá venerada.

Possui o sr. almirante Carlos Braga, do Porto, uns álbuns, ou, melhor direi, cadernos, de desenhos dum estudante de pintura / 8 / em Roma, como se vê dos dizeres do frontespício dum deles. No caderno datado de 1741 encontram-se reproduções de monumentos italianos, quase todos de Roma, e nas quatro últimas folhas vêem-se representados: o convento de S. Francisco de Vinhais, pormenores de figura do mesmo convento, a ponte de Murça e, numa sanguínea, o Castelo da Feira. Nas páginas anteriores aos desenhos de Vinhais e de Murça está escrito por mão do desenhista a nota do que representam. Mas na página anterior ao desenho do Castelo da Feira não há nota nenhuma.

CASTELO DA FEIRA − Desenho de 1741.

 / 9 / Parece que o autor sabia bem o que reproduzira, sem necessidade de pôr-lhe a indicação.

Por três maneiras escreve o seu nome este artista: − João Esterbele, no referido frontispício (talvez italianizando o apelido alemão) − «João Ströberle depois João Glama» − explica numa nota escrita com a sua própria letra.

Tenho ideia de ter havido no próximo lugar do Balteiro uma família Glama; mas nada de seguro pude apurar a tal respeito. Seria por ter aqui parentes que o pintor cá veio ter?

O certo é que este desenho de há dois séculos nos mostra evidentemente a capela de Santa Luzia no edifício redondo que negreja por baixo da torre de menagem.

CASTELO DA FEIRA − Túmulos

Não só temos localizada a capela, como ficamos certos de existir ainda em 1741 e, portanto, ruiu nos catorze anos decorridos entre o desenho do artista Glama e o terramoto de 1755, como já vimos no relatório do vigário Quintela.

E, existindo em 1741, estava lá uma imagem da Santa Luzia, diversa da novamente colocada pela condessa D. Joana na sua capela hexagonal.

Provavelmente provinham dessa capela redonda destruída os dois túmulos que se guardam na praça de armas do Castelo da Feira, um dos quais esteve muitos anos fora da barbacã.

O maior, ou antes, o menos partido, tem aos pés e num dos lados gravados escudos já dificilmente perceptíveis. O dos pés tem uma folha ou talvez uma flor de lis e, dos quatro do lado, tem cada um cinco folhas ou flores postas em aspa. / 10 /

Quando, em 1940, se abriu a estrada em torno das muralhas, libertando o monumento da propriedade particular que o cercava, encontraram-se volumosas pedras no sítio da antiga capela, decerto restantes dos seus alicerces.

Reconstituída assim uma parte da história da velha capela, vejamos o que se apura referente à sua imagem da Santa Luzia.

______________

 

 

 

ONTINUOU o culto da Santa advogada dos olhos perante a nova imagem exposta pela condessa D. Joana na sua capela sextavada logo à reconstrução desta, ou só depois de desaparecer a outra? Não será fácil averiguar.

Embora a festividade e romaria se fizesse, na nova capela, a 25 de Março, no dia da feira da linhaça, que era à porta do Castelo no terreiro sempre chamado Feira de Março, a veneração do povo, sem romagem, como nota o vigário Quintela, dirigia-se principalmente à Santa Luzia. Tanto que encontramos a capela, ainda existente e única junto ao Castelo desde o meado do século XVIII, crismada oficialmente com o nome de Santa Luzia. Assim diz a acta da sessão da Câmara Municipal da Feira de 25 de Janeiro de 1843:

«Foi mais presente outro ofício do mesmo governo civil com data de 12 do corrente remetendo por cópia a portaria do Ministério do Reino de 5 deste mês, pela qual S. M. A Rainha foi servida mandar declarar que pelo Ministério da Fazenda se expedissem as ordens necessárias para ser cometida à Junta de Paróquia desta vila a conservação e guarda da capela de Santa Luzia do Castelo e casa contígua. Deliberando sobre o mesmo, assentaram unanimemente, que, visto a dúvida que neste acto oferece o Administrador deste Conselho em dar posse à mesma Junta da referida capela e casa contígua, se dirigisse a S. M. A Rainha uma respeitosa representação pela via competente, a fim da mesma Augusta Senhora se dignar resolver sobre a mesma dúvida.»

Pena é não sabermos qual foi a dúvida do administrador do concelho, o famigerado José Correia Leite Barbosa, das Airas, que o sopro revolucionário da Maria da Fonte derrubou /  11 / em 1846, para só voltar à administração em 1874, sendo ministro do reino o Sampaio da «Revolução», o que valeu a este um violento ataque do deputado pela Feira, cónego Manuel Augusto de Sousa Pires de Lima. A capela do Castelo nunca chegou a ser entregue à junta da paróquia.

Ainda hoje, esquecida há muitos anos a festividade de 25 de Março, a Santa Luzia não passa um ano sem a sua missa a 13 de Dezembro.

De toda a devoção é alvo actualmente a velha imagem de pedra, mais pequena, mais antiga, que era a da capela redonda e foi arrecadada, quando esta ruiu, pelos vizinhos donos da casa que, entre ela e o Castelo, se vê no desenho de 1741. Era uma família Brandão, cujos representantes − Henrique e Alexandre − possuíam na última década do século XIX as propriedades circunvizinhas do Castelo da Feira.

O Henrique Brandão era dono da casa dos seus antepassados e dos terrenos, desde a casamata, juntos às muralhas e à terralha, pelo ocidente e pelo sul.

A norte havia umas escadarias cavadas no talude, que subiam da calçada para o terreiro da Feira de Março e, num patamar dessas escadas, ficava uma casa que o Alexandre Brandão herdou duma tia, a senhora Mariquinhas do Castelo, possuidora dum óculo de longa vista, através do qual em rapaz me entretive a observar a vila e a paisagem. No local desta casa e das escadarias construiu o Alexandre Brandão, sócio da fábrica de conservas Brandão Gomes & C.ª, um chalé mais tarde transferido para a rua 18 de Espinho.

Sendo os Brandões os mais próximos vizinhos do imponente monumento e da sua linda capela, quiseram restituir ao culto a velha imagem da Santa Luzia, ignorada do público durante mais dum século, e o Henrique ofertou-a à capela da Encarnação do Castelo e ambos abrilhantaram e fizeram estrondosa a festa em 25 de Março de 1893.

A Santa Luzia de pedra usurpou o altar próprio à imagem lá posta pela condessa D. Joana e obrigou-a a passar para o outro fronteiro.

E o culto dos povos venera de novo a antiga escultura com a mesma devoção consagrada durante dois séculos à mais moderna, amaneirada e bonita.

Feira, 13 de Dezembro de 1941.

VAZ FERREIRA

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