QUASE inteiramente
desconhecido dos portugueses, existe na igreja de S. Domingos de Aveiro
um formoso túmulo que rivaliza com os melhores de Portugal: é o de João
de Albuquerque, fidalgo e militar valoroso que tomou parte nas guerras
de África no tempo de el-rei D. Afonso V, e foi senhor de Angeja,
Pinheiro, Figueiredo e Assequins. No senhorio destas terras sucedeu-lhe
seu filho Henrique de Albuquerque, e por morte deste as terras
reverteram para a Coroa, sendo novamente doadas por D.
Manuel a Jorge Moniz, que as usufruiu até a data da sua morte, em 1509(1).
João de Albuquerque, que foi
casado com D. Helena Pereira, escolheu para local da sua sepultura e de
sua esposa, a igreja do Convento de Nossa Senhora da Misericórdia de
frades dominicanos, na então vila de Aveiro; tal igreja havia sido pouco
antes edificada, pois o Convento foi fundado pelo infante D. Pedro em
1423.
João de Albuquerque
contratou com os frades que na Capela de Santa Maria − depois Capela de
Jesus − fosse colocado o seu túmulo e de sua mulher, e que cada dia lá
dissessem uma missa rezada, e em dia de defuntos uma missa cantada com
oferta de um quarteirão de trigo, um puçal de vinho, duas dúzias de
pescadas, e um responso sobre a sepultura. Deviam
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ainda os frades dar cada ano a S. Francisco de Coimbra, dois tostões, e
meio tostão por uma missa cantada por alma dos pais de João de
Albuquerque, que lá se encontravam enterrados, e cento e cinquenta reis
de esmolas.
Em contra-partida, João de
Albuquerque doou ao convento de Aveiro, para ocorrer à conservação da
capela e aos encargos do contrato, a sua quinta de Canelas que havia
comprado a Pero Peixoto em 1452, por 27000 reis, e a sua marinha do
Puxadouro que havia comprado a Pero Vasques, por 40000 reis.
O contrato foi feito em
Aveiro, por escritura pública, de 20 de Agosto de 1477; a doação das
duas propriedades foi feita por escritura de 8 de Dezembro do mesmo ano,
e confirmada em 3 de Fevereiro de 1484 por el-rei D. João lI, então de
passagem em Aveiro.
No seu testamento, João de
Albuquerque confirma a doação, e toma providências para indemnizar o
convento de Aveiro, no caso de ela não poder ser mantida, o que de facto
veio a suceder.
Não sei quando nasceu João
de Albuquerque, mas suponho que faleceu em 1483, pois em 9 de Junho
deste ano fizeram os frades um treslado do testamento, e em 1484
confirmou D. João II a doação, naturalmente após a morte do doador.
Quando Jorge Moniz tomou conta das terras que haviam pertencido àquele e
a seu filho Henrique de Albuquerque, pôs acção contra o Convento para
reaver a quinta de Canelas, já na posse do Convento há vinte anos, e
justificou tal acção alegando que João de Albuquerque não podia dispor
de tal quinta − por ser da Coroa. Foi dada sentença contra o Convento,
tendo-lhe apenas sido reconhecido o direito às benfeitorias que nela
haviam feito.
Os frades, vendo-se lesados,
puseram acção contra D. Catarina Henrique, viúva de Henrique de
Albuquerque, para que os indemnizasse da perda da referida quinta. Tendo
sido condenada D. Catarina na Relação por sentença de 27 de Abril de
1504, ela deu ao convento, em lugar da quinta que valia 95000 reis,
terras equivalentes, em Fermelainha e Angeja.
João de Albuquerque e sua
esposa foram de facto sepultados na sua capela de Jesus, em um magnífico
túmulo de pedra calcária, em forma de caixa, sobre cuja tampa está uma
estátua jacente do fidalgo, vestido com sua armadura, e segurando em uma
das mãos uma espada, e na outra uma lança provavelmente. É de notar que
presentemente já não existe a espada nem a outra arma por se terem
partido.
Os pés da estátua apoiam-se
sobre um lebreu, também já muito mutilado na parte anterior.
A arca tumular tem de
comprimento 2,130 m, de largura 0,190 m e de altura 0,95 m, e assenta
sobre três leões (primitivamente
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eram quatro); é de estilo gótico, e na parte superior das suas faces
laterais e em toda a volta, tem uma larga inscrição em caracteres
alemães, em que se menciona o nome do tumulado e alguns dos factos da
sua vida.
Infelizmente a inscrição
está muito mutilada pelos estragos causados com as mudanças e aberturas
que o túmulo tem sofrido, e em parte tapada com cimento.
Nas duas primeiras linhas
esculpidas na face da esquerda, em relação à estátua, lê-se:
† Aquy; jaz: o muito:
onrado.. Sõr: E vallente: Cavaleyro: Joam: Dalboquerqe:: Do cõselho::
del Rey: E do seu: .............. Do Rey: Da dita Canarea: E o
desbaratou: E trouxe: Preso: Ao arayal: Soo p [er] sy: E aly nas: Partes
Dafrica....
|
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Face posterior do túmulo de João de Albuquerque |
Vê-se, pois, que João de
Albuquerque tomou parte nas expedições a África, e em especial em alguma
das enviadas às Ilhas Canárias, onde praticou actos de valentia
notáveis.
O túmulo tem esculpidos na
mencionada face da esquerda, dois brasões; o do lado da cabeceira, é o
de João de Albuquerque: esquartelado, tendo no primeiro e quarto quartel
as armas de Portugal antigo; no segundo, cinco flores de lis em sautor,
e no terceiro nove cunhas em três palas; o outro brasão é o de D. Helena
Pereira, sua esposa, tendo a metade da direita do brasão as armas de
João de Albuquerque, e a metade da esquerda a cruz florenciada dos
Pereiras. Na face da cabeceira está outro brasão de João de Albuquerque,
encimado por uma viseira, segura por dois anjos; na face oposta, está um
escudo em lisonja, com as armas da mulher de João de Albuquerque, como
já descrevemos. O escudo é seguro na sua parte esquerda, por uma menina,
e na parte direita, por um menino.
A face da direita do túmulo
não é presentemente visível, por estar encostada a uma parede, mas é de
supor que tenha ornatos e brasões iguais aos da face da esquerda.
Nas armas de João de
Albuquerque figuram as dos Cunhas, porque era descendente de D. Teresa
de Albuquerque e de seu marido Vasco Martins da Cunha.
Verifiquei que no Museu de
Machado de Castro, em Coimbra, se encontra um brasão de pedra, tendo na
metade direita as armas dos Albuquerques, − as armas de Portugal antigo,
e
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cinco flores de lis em sautor, − e da da esquerda as dos Cunhas. O
escudo tem à volta uma legenda que não se pode ler. Este brasão tem a
seguinte nota explicativa: «Sec. XVI − Brazão encontrado nas demolições
do Claustro da Sé Velha». É sem dúvida de alguns ascendentes de João de
Albuquerque, muito possivelmente dos pais. Mas então não é do século XVI,
mas sim do século XV. E seria do túmulo dos pais, na hipótese de ter
sido removido da igreja de S. Francisco para a Sé Velha, quando a igreja
de S. Francisco teve de ser abandonada por causa das aluviões do rio
Mondego?
Não se sabe em que ano foi
feito o túmulo de João de Albuquerque, nem quem foi o seu autor.
Teria sido feito ainda em
vida do tumulado, ou teria sido feito após a sua morte, por ordem de seu
filho, ou por ordem dos frades, ou por outrem?
Como a doação foi feita em
Dezembro de 1477 e o Convento já se encontrava de posse da quinta de
Canelas havia 20 anos, quando Jorge Moniz a reclamou, o que deve ter
sucedido em 1497, conclui-se que o filho de João de Albuquerque faleceu
antes de 1498; portanto, se foi o filho quem mandou fazer o túmulo, este
deve ter sido feito no último quartel do século XV; se foram os frades,
poderia ter sido feito nesta época, ou no princípio do século XVI.
Mas o seu autor? Seria um
artista nacional ou estrangeiro? Eis um problema interessante para
resolver. É evidente que o autor foi um artista de nomeada,
correspondente à nobreza e altos merecimentos de João de Albuquerque;
talvez um dia se consiga descobrir quem executou tão primorosa obra de
arte.
O que é certo é que a
história da escultura portuguesa está por fazer, e é tempo de meter
ombros a tal empresa.
O túmulo de João de
Albuquerque encontra-se presentemente na capela de Nossa Senhora da
Misericórdia, que é a primeira à esquerda de quem entra na igreja de S.
Domingos, hoje igreja paroquial da freguesia de Nossa Senhora da Glória.
Está pessimamente situado, pois se encontra encostado à parede, não se
podendo ver a face lateral direita. Mas não foi este o local primitivo;
várias vezes tem sido mudado o túmulo, e das mudanças têm-lhe resultado
graves mutilações.
O primitivo lugar era o meio
da capela de Jesus, a última à direita de quem entra na igreja; depois
um prelado mandou encostar o túmulo a uma parede desta capela. De
passagem diremos que a igreja actual não é a primitiva, visto que esta
foi reconstruída nos séculos XVI, XVII e XVIII.
Na referida capela de Jesus,
reconstruída em 1559, visto que esta data se encontra nos pedestais das
colunas da entrada, ainda hoje se encontra uma lápide sobre a porta de
comunicação
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com a capela anterior, com a seguinte inscrição em letras capitais
romanas:
ESTA CAPELA HE D
IOAM DALBVQVERQE
TEM MISSA CADA DIA
ELE A DOTOU.
Já frei LUÍS DE SOUSA, na
sua História de S. Domingos, 2.ª parte, liv. llI, cap. XIII, se
referiu ao túmulo, e se insurgiu contra o abandono em que se encontrava
no seu tempo. Assim escreveu:
«E pois tratamos de renda,
justo é que por obra de agradecimento digamos que entre os bens, que
possuem, são a Quinta de Canellas e uma marinha, que lhe deixou João d'
Albuquerque, cuja é a capella, que primeiro se chamou da Annunciação, e
agora de Jesus; e n'ella jaz em um grande túmulo de marmore. Este tumulo
teve em seus principios por sitio o meio da capella; veio um Prelado,
que á custa do tumulo, que era grande, quiz fazer largueza de serviço na
capella, que era estreita, tirou-o do seu logar, e arrimou-o a uma
parede com tanto descuido, que a face, em que estava um letreiro, que
nos pudera agora servir de chrónica de um fidalgo muito illustre e muito
cavalleiro, ficou abraçada com a parede. Eu se acceitei escrever, foi
para fallar verdade, e não palear defeitos onde os houver. Assim ficará
este culpado em publico, ou para se remediar por algum Prelado zeloso,
ou para ser ocasião de se não cometter outro semelhante.»
Os frades não se importaram com a recriminação do cronista, e o túmulo
lá continuou encostado à parede e no vão da porta travessa, até que em
1859, foi colocado entre as duas portas que ficam em frente do altar.
Em 1878 tiraram o túmulo
para fora da sua legítima capela, e colocaram-no na capela de Nossa
Senhora da Graça, que é a primeira à direita de quem entra. Em 1880
levaram-no para junto da antiga sacristia dos frades, e finalmente, em
1885 trouxeram-no de novo para a igreja, colocando-o onde hoje se
encontra, isto é, na capela de Nossa Senhora da Misericórdia.
E lá está lamentavelmente
abandonado, e esquecido, na obscuridade de uma capela sem luz, esperando
que alguém justamente o faça reconduzir para o seu devido lugar na
igreja, ou melhor ainda para o Museu de Aveiro, onde figurará como a
mais valiosa relíquia aveirense de arte em pedra, e uma das melhores de
Portugal.
Barbaridades iguais às que
sofreu o túmulo de João de
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Albuquerque tem-nas sofrido outros. Basta mencionar o do rei D. Dinis,
mandado fazer por este mesmo rei, e actualmente em lastimoso estado com
as mudanças que sofreu na igreja do mosteiro de Odivelas.
Felizmente vai ser reposto
dentro de breves dias no seu primitivo lugar que era no meio do corpo da
igreja. É interessante registar que o túmulo foi aberto num dos dias do
mês de Maio do corrente ano, tendo-se encontrado os restos mortais do
rei em razoável estado de conservação.
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AVEIRO
Outro aspecto do túmulo de
João de Albuquerque e de sua mulher Dona Helena Pereira |
Também o túmulo de D. Duarte
de Meneses em estilo gótico que estava na capela das almas do Convento
de S. Francisco, em Santarém, foi mudado em 1889 para o Museu da mesma
cidade, instalado na antiga igreja de S. João de Alporão.
Ora o Museu de Aveiro está
instalado no antigo convento de Jesus, onde ainda hoje se respira
santidade e religiosidade, e nele ficaria muito bem o túmulo de João de
Albuquerque e sua esposa, junto aos túmulos de muitas religiosas que lá
dormem o sono eterno, e próximo do túmulo da Princesa Santa Joana cujo
pai, − el-rei D. Afonso V − João de Albuquerque serviu na paz e na
guerra com lealdade e valentia.
Parece que João de
Albuquerque esteve primitivamente sepultado na capela de Jesus em um
pequeno túmulo, e que
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passado tempo é que os seus restos mortais foram transladados para o
actual túmulo, no qual se sepultou também a sua esposa.
Poderá admitir-se que
tivessem sido os frades que mandaram fazer este túmulo para dignamente
guardarem as cinzas dos seus benfeitores? Frei LUCAs DE SANTA CATARINA,
continuador da obra de FREI LUÍS DE SOUSA escreveu a este respeito, na
História de S. Domingos, parte IV, liv. I, capo XIX:
«Não deixaremos em silencio
outra obra, que sobre ser honroso desempenho da Casa, ficou tambem
servindo de adorno á Egreja na parte, que corresponde á porta das graças
(que fica na Capella do Rosário) e vem a ficar na do Santo Christo. No
vão que faz para correspondencia da outra porta, se levantou e lavrou de
boa pedra, sobre quatro leões (um honrado mausoleu) uma pollida e bem
lavrada caixa, em que se recolheram os ossos de João de Albuquerque.
Estiveram em pequeno tumulo no meio da Capella, depois servindo-lhe
arrimo a parede, finalmente passados a este nobre depósito, como cinzas
de um grande bemfeitor do convento.»
Vou transcrever o que se
refere ao contrato de João de AIbuquerque com o Convento de N. S. da
Misericórdia, do manuscrito existente na Direcção de Finanças de Aveiro,
e intitulado:
«Livro de toda A fazenda da
Renda que este mostr.º de N. Sr.ª da misericordia da uilla daVeiro da
ordem de S. Domingos tem em Canelas, e fa[r]malainha, e anieia, de
casaes, terras, vinhas, e casas e do trigo, milho, centeo, ceuada,
vinho, galinhas, capões, porcos e dinheiro
feito pello p.e fr. Thomé dos Reis, Prior do
dito mostr.º em 8 de Janr.º de 1613»,
T.º da quinta de canelas, e
da marinha velha das cortes da
cap. de João dalbuqüerque
& sua molher dona Illena P.ra
([ Esta quinta de Canelas...
Daqui para a frente, o manuscrito existente na Direcção de Finanças de
Aveiro, devido aos caracteres impossíveis de reproduzir, vai em formato
PDF
CONTRATO DE
JOÃO DE ALBUQUERQUE EM FORMATO PDF
[651 KB]
/ 110 / Se é interessante e
necessário integrar o túmulo de João de Albuquerque na história da arte
portuguesa, não menos interessante e justo é conhecer-se a biografia
deste português ilustre. Mas quem a poderá fazer?
Aveiro, 2 de Junho de 1938.
FRANCISCO FERREIRA NEVES
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