Padre R. Vieira, Pessoas e cousas velhas ou doutro tempo IV, Vol. III, pp. 293-297.

PESSOAS E COUSAS VELHAS

OU DOUTRO TEMPO IV

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DESDE que, nestas páginas, de paciência e erudição, se deu lugar a algumas linhas a respeito de dois ou três professores do liceu de Aveiro que já dormem, há muito, o sono eterno, e de que restam ainda lembranças amistosas, verdadeiras, é da ordem, lógica e cronológica, alongar a singela ementa a mais um, que foi também do meu conhecimento e amizade, e a cuja memória me conservo sempre fiel e reconhecido.

Refiro-me ao velho Romão, ao popular, e estimadíssimo Sr. João da Maia Romão, de saudosa memória.

João da Maia Romão era um aveirense retinto, da nossa Beiramar. Despretensioso e modesto, mas de espírito vivo e agudo, era querido de toda a gente, gozando de geral prestígio  e respeito, espontaneamente, sem artifício de qualquer ordem.

Que belo homem, que belo tipo de bom homem, na atitude, nos modos, nas palavras e nas acções! Parece que estou ainda a vê-lo, na transparência graciosa e cativante, do seu carácter, do seu talento: se não era um grande artista, disse alguém de autoridade, e sentimento, tinha, todavia, grandes qualidades de artista.

Consta da tradição contemporânea que José Estêvão o definira assim, ao tempo: «para ser um artista completo só lhe falta ser... mais dado às bebidas».

De condição humilde ou obscura, originário do Bairro Piscatório, onde o seu nome ainda tem representação e reflexo, e em toda a cidade e cercanias; revelando, logo cedo, a flâmula do génio; depois dos estudos elementares, frequentou a Academia / 294 / de Belas Artes do Porto; e lá desenvolveu, e confirmou, os seus talentos naturais, nas aulas de Desenho e de Pintura.

Sem o mínimo prurido de lisonja, ou de vaidade, lembro-me, com verdadeiro carinho, e ufania, de que nessas lides lhe deu afectuoso auxílio meu tio. avô, o P.e João Dinis, da travessa da Moita da Oliveirinha, que era capelão militar de infantaria, cura-coadjutor da paróquia de Cedofeita, e depois capelão do Hospital Militar de D. Pedro V, onde algumas vezes o visitei.

Por exiguidade de meios, ou por outras causas que desconheço, e mal se podem hoje averiguar, João Romão não prosseguiu na sua carreira artística; e, passando a viver em Aveiro, viveu vida um tanto de boémio, ocupando-se, também, a dar lições particulares de Desenho; e em trabalhos de gabinete, avulsos; e na Repartição das Obras Públicas do Distrito, onde teve colocação oficial, modesta, mas honrosa.

Depois dessas emergências, foi nomeado professor de Desenho do liceu de Aveiro, exercendo o cargo longos anos, contando numerosos discípulos e amigos, dos quais, e das respectivas famílias, foi sempre querido e estimado.

Não se julgue, todavia, que Romão, vindo, aqui, na série dos professores de Latim, era também versado, ou apaixonado, da língua de Virgílio e Horácio. Não. Parece-me que nem mesmo seria, por cerimónia, seu hóspede...; suponho que dessa língua não tinha nem leves noções, nem disso se doía. ou preocupava.

Lembro-me até duma frase sua, vulgar e característica, que o definia: perguntando-lhe alguém se conhecia certa passagem do livro clássico usado nas aulas, respondia singela e sucintamente: «Não; não temos cópia».

E nas conversas de matéria vasta ou estrita, aplicava este estribilho a causas ou pessoas que não lhe eram familiares:

«Não; não tenho cópia...»

Nesta ordem de ideias, era, em suma, um conversador agradável, atraente, com ditos de espírito, e observações a propósito, que naturalmente cativavam e eram sempre repetidos e festejados, na cavaqueira dos passeios, no clube. e na Arcada.

Uma vez, em dia de chuva, um grupo de amigos, observava, dali, a comissura do tempo. Da rua do Cais vinha a passo vago um aldeão, de óculos, com o seu farto guarda-sol azul, de barbas de baleia, e ponteira luzidia de metal amarelo, enrolado debaixo do braço.

Olhem lá aquele bruto, disse um dos circunstantes; está a chover, e ele sem abrir o guarda-sol que é uma barraca.

Vocês é que não sabem: observou Romão: não vêem que o pobre homem é míope!

Doutra vez, depois dum passeio e visita de grupo a certos / 295 / retiros de sólidos e líquidos, 'parando no Rossio, a aliviar, saiu-se com esta:

Ó rapazes, olhem que quem inventou esta operação de verter águas, não era tolo nenhum.

Fora dos momentos do gracioso, Romão encarregava-se e concluía trabalhos sérios, de circunstância e responsabilidade.

Numa das primeiras e muito complexas obras de investigação e estatística da Ria de Aveiro, levantou a planta minuciosa da Laguna, ilhas, mouchões, marinhas de sal, formas de barcos, e variados utensílios de pesca e de transporte. Teve a parte principal e preponderante nessa obra; desenhou, do natural, para a reprodução, como ainda se pode verificar, consultando o relatório que então se publicou, e se guarda nos arquivos oficiais, barcos moliceiros, saleiros, bateiras, caçadeiras, chinchas, redes de todas as espécies, instrumentos de pesca, engaços, gadanhas de moliço, etc.

No projecto, e pormenores do monumento a José Estêvão, na Praça Municipal, e no seu seguimento, Romão foi sempre figura de destaque, no conselho, na acção, na autoridade, e sempre com a mesma complacência e bondade, e testemunho de gratidão para o glorioso tribuno, cuja memória se liga indissoluvelmente à vida da cidade de Aveiro e seus nativos.

Manuel Homem de Carvalho Cristo, Domingos Leite, Anselmo Ferreira, Francisco da Maurícia, assim o consideraram e seguiram.

O nome de Romão está também ligado ao projecto e direcção do magnífico edifício dos Paços do Concelho de Estarreja, do tempo do seu ilustre presidente, Dr. Francisco Barbosa da Cunha Soto-Maior; ao Palacete do Visconde de Vale de Mouro, da Rua Larga desta cidade; e a dezenas ou centenas de outras edificações do mesmo tomo.

Era, em suma, duma bondade extrema, de toda a gente conhecida e falada.

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Essa bondade teve a sua consagração pública num jantar de homenagem, que lhe promoveram alguns dos seus muitos amigos e dedicados discípulos, e a que, outrora, se associaram condignamente, no salão do Grémio Aveirense, ao Cojo, com testemunhos manifestos de carinho, gratidão, e enternecida amizade, figurando, entre os primeiros, o Dr. Jaime Duarte Silva, Domingos Leite, Joaquim Fontes Pereira de Melo, Melos Freitas, Melos Guimarães, R. Vieira, José Bernardes da Cruz, João Gamelas, Domingos Gamelas, etc. Jantar de cento e tantos talheres; com brindes afectuosos; e discursos de que os jornais da época deram copioso relato.

Nesta festa, inesperadamente, quem escreve estas linhas, produziu e recitou o seguinte soneto, sobre o Santo do Dia:

 

Alma feita da luz da madrugada,
Sem a mais leve sombra de impureza;
Natural; amorosa, bem formada,
Duma rara modéstia e singeleza:


Foi sempre o pai e a mãe da caloirada,
Contraste do rigor e da aspereza;
Nas aulas, nos exames, desfraldada
Bandeira do perdão cobrindo a mesa.


Não teve em toda a vida um só rancor;
E não tem, que se saiba, um inimigo,
Este santo, este alminha do Senhor:


Ao Mestre, pois, tão bom, tão nosso amigo,
Consagre a gratidão o seu louvor!
Saudai o bom Romão! Saudai comigo.

 

Depois dessa manifestação de respeito, simpatia, e afectuosidade, o professor João da Maia Romão ainda viveu muitos anos. Na sua velhice mais ou menos precoce, sobrevieram-lhe doenças impertinentes que muito o angustiaram.

Os sofrimentos físicos, porém, não lhe aguaram o bom humor, e conformidade, recebendo ainda assim numerosos testemunhos de consideração e estima de muitos dos seus discípulos, e amigos, e em que se destacou pela sua assiduidade e carinho e dedicação, o Sr. Dr. Armando da Cunha Azevedo, que foi seu desvelado médico assistente e carinhoso enfermeiro; e quem escreve estas linhas, que o acompanhou nos últimos momentos.

Descansa em paz em campa modesta no cemitério da cidade; tem o seu nome, no pedestal do monumento a José Estêvão, e no coração dos que mais o estimaram, insculpido, em caracteres ou lembranças indeléveis.
/ 297 /  [Vol. IlI - N.º 12 - 1937]
 
Estas linhas escritas, agora ao declinar da tarde e da vida, como o sol que vai a sumir-se, na fímbria subtil do ocidente, sendo verdadeiramente sentidas, não podem ser, todavia, canto do cisne, mas só o extremo e exicial grasnar do pato mudo que está prestes a sucumbir.

Sunt lacrimae rerum!

*
*       *

Escritas estas linhas, e enviadas ao seu destino, deparou-se-me o retrato, em gravura, do professor Romão, que foi distribuído aos convivas do referido banquete; tem a data de 28-2.º-99, com a seguinte ementa:

      «Sinfonia de abertura, sopa à jardineira; Preludio, queijadinhas de bribigão; Cavatina, peitos de vitela recheados; Barcarola, pescada cozida, molho à financeira; Arieta, fiambre; Pastoral, galinha de molho branco; Riforçando..., vitela assada; ervas; Esparregado; saladas; conservas; Rondó, Frutas, queijo, pudings, pastéis de chila, rolos de creme. Grande concertante final: champagne, café.
      Argumento: Além do busto de João Romão, haverá também vinho de Bustos


Em 17 de Setembro de 1909, O Aveirense, 2.º ano, n.º 97, da família José Bernardes da Cruz, e Ernesto Freitas, deu também à estampa um retrato fotográfico de J. Romão, com artigos do Dr. Jaime Lima, Dr. Melo Freitas, Dr. Jaime Duarte Silva, reprodução do soneto acima exarado, etc.

Padre RODRIGUES VIEIRA

 

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