DESDE
que, nestas páginas, de paciência e erudição, se deu lugar a algumas
linhas a respeito de dois ou três professores do liceu de Aveiro que já
dormem, há muito, o sono eterno, e de que restam ainda lembranças
amistosas, verdadeiras, é da ordem, lógica e cronológica, alongar a
singela ementa a mais um, que foi também do meu conhecimento e amizade,
e a cuja memória me conservo sempre fiel e reconhecido.
Refiro-me ao velho Romão, ao popular, e estimadíssimo Sr. João da Maia
Romão, de saudosa memória.
João da Maia Romão era um aveirense retinto, da nossa Beiramar.
Despretensioso e modesto, mas de espírito vivo e agudo, era querido de toda a gente, gozando de geral prestígio
e respeito, espontaneamente, sem artifício de qualquer ordem.
Que belo homem, que belo tipo de bom homem, na atitude, nos modos,
nas palavras e nas acções! Parece que estou ainda a vê-lo, na
transparência graciosa e cativante, do seu carácter, do seu talento: se
não era um grande artista, disse alguém de autoridade, e sentimento,
tinha, todavia, grandes qualidades de artista.
Consta da tradição contemporânea que José Estêvão o definira assim, ao
tempo: «para ser um artista completo só lhe falta ser... mais dado às
bebidas».
De condição humilde ou obscura, originário do Bairro Piscatório, onde o
seu nome ainda tem representação e reflexo,
−
e em toda a cidade e
cercanias; revelando, logo cedo, a flâmula do génio; depois dos estudos elementares, frequentou a Academia
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de Belas Artes do Porto; e lá desenvolveu, e confirmou, os seus talentos
naturais, nas aulas de Desenho e de Pintura.
Sem o mínimo prurido de lisonja, ou de vaidade, lembro-me, com
verdadeiro carinho, e ufania, de que nessas lides lhe deu afectuoso
auxílio meu tio. avô, o P.e João Dinis, da travessa da Moita da
Oliveirinha, que era capelão militar de infantaria, cura-coadjutor da
paróquia de Cedofeita, e depois capelão do Hospital Militar de D. Pedro V, onde algumas vezes
o visitei.
Por exiguidade de meios, ou por outras causas que desconheço, e mal se
podem hoje averiguar, João Romão não prosseguiu na sua carreira
artística; e, passando a viver em Aveiro, viveu vida um tanto de boémio, ocupando-se, também, a dar
lições particulares de Desenho; e em trabalhos de gabinete, avulsos; e
na Repartição das Obras Públicas do Distrito, onde teve colocação
oficial, modesta, mas honrosa.
Depois dessas emergências, foi nomeado professor de Desenho do liceu de
Aveiro, exercendo o cargo longos anos, contando numerosos discípulos e
amigos, dos quais, e das respectivas famílias, foi sempre querido e
estimado.
Não se julgue, todavia, que Romão, vindo, aqui, na série dos professores
de Latim, era também versado, ou apaixonado, da língua de Virgílio e
Horácio. Não. Parece-me que nem mesmo seria, por cerimónia, seu
hóspede...; suponho que dessa língua não tinha nem leves noções, nem
disso se doía. ou preocupava.
Lembro-me até duma frase sua, vulgar e característica, que o definia:
perguntando-lhe alguém se conhecia certa passagem do livro clássico usado nas aulas, respondia singela e sucintamente: «Não; não temos cópia».
E nas conversas de matéria vasta ou estrita, aplicava este estribilho a causas ou pessoas que não lhe eram familiares:
−
«Não; não tenho cópia...»
Nesta ordem de ideias, era, em suma, um conversador agradável, atraente, com ditos de espírito, e observações a propósito, que
naturalmente cativavam e eram sempre repetidos e festejados, na
cavaqueira dos passeios, no clube. e na Arcada.
Uma vez, em dia de chuva, um grupo de amigos, observava, dali, a
comissura do tempo. Da rua do Cais vinha a passo vago um aldeão, de
óculos, com o seu farto guarda-sol azul, de barbas de baleia, e ponteira
luzidia de metal amarelo, enrolado debaixo do braço.
−
Olhem lá aquele bruto, disse um dos circunstantes; está a chover, e ele sem abrir o guarda-sol que é uma barraca.
−
Vocês é que não sabem: observou Romão: não vêem que o pobre homem é
míope!
Doutra vez, depois dum passeio e visita de grupo a certos
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retiros de sólidos e líquidos, 'parando no Rossio, a aliviar, saiu-se com esta:
−
Ó rapazes, olhem que quem inventou esta operação de verter águas, não era tolo nenhum.
Fora dos momentos do gracioso, Romão encarregava-se e concluía trabalhos sérios, de circunstância e responsabilidade.
Numa das primeiras e muito complexas obras de investigação e
estatística da Ria de Aveiro, levantou a planta minuciosa da Laguna, ilhas, mouchões, marinhas de sal, formas de barcos, e variados utensílios de
pesca e de transporte. Teve a parte principal e preponderante nessa
obra; desenhou, do natural, para a reprodução, como ainda se pode
verificar, consultando o relatório que então se publicou, e se guarda nos arquivos oficiais, barcos moliceiros, saleiros,
bateiras, caçadeiras, chinchas, redes de todas as espécies,
instrumentos de pesca, engaços, gadanhas de moliço, etc.
No projecto, e pormenores do monumento a José Estêvão, na Praça Municipal, e no seu seguimento, Romão foi sempre figura de destaque, no conselho, na acção, na autoridade, e
sempre com a mesma complacência e bondade, e testemunho de gratidão para
o glorioso tribuno, cuja memória se liga indissoluvelmente à vida da cidade de Aveiro e seus nativos.
Manuel Homem de Carvalho Cristo, Domingos Leite, Anselmo Ferreira, Francisco da Maurícia, assim o consideraram e seguiram.
O nome de Romão está também ligado ao projecto e direcção do magnífico edifício dos Paços do Concelho de Estarreja, do tempo do seu ilustre presidente,
Dr. Francisco Barbosa da Cunha Soto-Maior; ao Palacete do Visconde de Vale de Mouro, da Rua Larga desta cidade; e a dezenas
ou centenas de outras edificações do mesmo tomo.
Era, em suma, duma bondade extrema, de toda a gente conhecida e falada.
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Essa bondade teve a sua consagração pública num jantar de homenagem, que lhe promoveram alguns dos seus muitos amigos e dedicados discípulos, e a que, outrora, se associaram condignamente, no salão do Grémio Aveirense, ao Cojo, com testemunhos manifestos de carinho, gratidão, e enternecida amizade, figurando, entre os primeiros, o
Dr. Jaime Duarte Silva, Domingos
Leite, Joaquim Fontes Pereira de Melo, Melos Freitas, Melos Guimarães, R. Vieira, José Bernardes da Cruz, João Gamelas,
Domingos Gamelas, etc. Jantar de cento e tantos talheres; com brindes
afectuosos; e discursos de que os jornais da época deram copioso relato.
Nesta festa, inesperadamente, quem escreve estas linhas, produziu e recitou o seguinte soneto, sobre
o Santo do Dia:
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Alma feita da luz da madrugada,
Sem a mais leve sombra de impureza;
Natural; amorosa, bem formada,
Duma rara modéstia e singeleza:
Foi sempre o pai e a mãe da caloirada,
Contraste do rigor e da aspereza;
Nas aulas, nos exames, desfraldada
Bandeira do perdão cobrindo a mesa.
Não teve em toda a vida um só rancor;
E não tem, que se saiba, um inimigo,
Este santo, este alminha do Senhor:
Ao Mestre, pois, tão bom, tão nosso amigo,
Consagre a gratidão o seu louvor!
Saudai o bom Romão! Saudai comigo.
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Depois dessa manifestação de respeito, simpatia, e afectuosidade, o professor João da Maia Romão ainda viveu muitos anos. Na sua velhice mais ou menos precoce, sobrevieram-lhe
doenças impertinentes que muito o angustiaram.
Os sofrimentos físicos, porém, não lhe aguaram o bom humor, e
conformidade, recebendo ainda assim numerosos testemunhos de consideração e estima de muitos dos seus discípulos, e amigos, e em que se destacou pela sua assiduidade e carinho e dedicação, o
Sr. Dr. Armando da Cunha Azevedo, que foi seu
desvelado médico assistente e carinhoso enfermeiro; e quem escreve estas linhas, que o acompanhou
nos últimos momentos.
Descansa em paz em campa modesta no cemitério da cidade; tem o seu nome, no pedestal do monumento a José Estêvão, e no
coração dos que mais o estimaram, insculpido, em caracteres ou
lembranças indeléveis.
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[Vol. IlI - N.º 12 - 1937]
Estas linhas escritas, agora ao declinar da tarde e da vida, como o sol que vai a sumir-se, na fímbria subtil do ocidente, sendo verdadeiramente sentidas, não podem ser, todavia, canto do cisne, mas só o extremo e exicial grasnar do pato mudo que está prestes a sucumbir.
Sunt lacrimae rerum!
*
* *
Escritas estas linhas, e enviadas ao seu destino, deparou-se-me o retrato, em gravura, do professor Romão, que foi distribuído aos convivas do referido banquete; tem a data de 28-2.º-99, com a
seguinte ementa:
«Sinfonia de abertura, sopa à jardineira;
Preludio, queijadinhas de bribigão; Cavatina, peitos de vitela recheados;
Barcarola, pescada cozida, molho à financeira; Arieta, fiambre;
Pastoral, galinha de molho branco; Riforçando..., vitela assada;
ervas; Esparregado; saladas; conservas; Rondó, Frutas, queijo, pudings, pastéis de chila, rolos de creme.
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Grande concertante final: champagne, café.
Argumento: Além do busto de João Romão, haverá também vinho de
Bustos.»
Em 17 de Setembro de 1909, O Aveirense, 2.º ano, n.º 97, da família José Bernardes da Cruz, e Ernesto Freitas, deu também à estampa um retrato fotográfico de J. Romão, com artigos do
Dr. Jaime Lima, Dr. Melo Freitas, Dr. Jaime Duarte Silva, reprodução do soneto acima exarado, etc.
Padre RODRIGUES VIEIRA
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