José Pereira Tavares, Um escritor e um apóstolo. Dr. Jaime de Magalhães Lima, Vol. II, pp. 50-56.

UM ESCRITOR E UM APÓSTOLO

O Dr. Jaime de Magalhães Lima nasceu em Aveiro, no dia 15 de Outubro de 1859(1). Acerca dos seus ascendentes deixou ele escrito o seguinte: «Nasci em Aveiro, no centro desta região que agora nos interessa,  filho dum pai nascido em Eixo, terra à beira do Vouga e pertencendo ao coração desta região. Em Eixo habitaram e se multiplicaram os meus antepassados, no correr de cerca de três  séculos, querendo a tradição que o meu quarto avó fosse estrangeiro, sem todavia lhe designar a nacionalidade. Teria sido  esse homem, e isso leva a crer que veio de fora, teria sido ele que fundou e exerceu na vila a indústria de artefactos de cobre, que se propagou e prosperou, e que os filhos e netos continuaram até ao meado do século XIX. Este meu quarto avô foi povoador notabilíssimo; teve filhos sem conta e parece que só em um dia casou cinco filhas, o que me instituiu parente declarado de metade da freguesia, que tem apenas cerca de duas mil almas. Mas meu avô paterno não se contentou com as raparigas da vizinhança e foi casar a Vagos, a três léguas da sua casa, mas sempre à beira de águas do Vouga; e casou com uma mulher que lhe trazia um abastado dote de sangue francês, manifesto, de inoculação recente, e ainda agora patente em parentes meus, cuja face estampada numa gazeta parisiense poderia passar pela máscara da gente que habita as terras mais retintamente gaulesas. Depois, ampliando a confusão, meu pai casou no Rio de Janeiro com mulher brasileira, mas filha dum português naturalizado brasileiro, o qual era de Avintes, e por isso mesclando a minha família com uma pequena inoculação de / 51 / sangue que não era temperado com águas do Vouga, mas destilado das torrentes do Douro» (2).

 

Tendo-se matriculado em Direito na Universidade de Coimbra, terminou a sua formatura em 1880.

 

A seguir, viajou pela Espanha, França, Itália, Áustria, Inglaterra, Rússia, Bélgica, Suíça, Holanda e norte de África.

 

A política atraiu-o. Foi vogal do Conselho do Distrito de Aveiro em 1881-1885, presidente da Câmara em 1892 e Deputado regenerador por Aveiro em 1893, 1894 e 1897. Servindo a política de João Franco, chefiou o Partido Regenerador-Liberal no Distrito de Aveiro. A queda do franquismo (1908), porém, determinou o seu afastamento da política. Pouco depois, abandonava Aveiro e fixava a sua residência em Eixo, na quinta de S. Francisco, não, disse ele, porque menosprezasse e esquecesse o afecto que os conterrâneos lhe dispensavam, mas «para zelar um bocado de terra que o destino confiava à sua guarda  e para menos contingentemente ver acabar os seus dias».

 

Do fecundo escritor que ele foi informa-nos o esboço bibliográfico com que terminamos este artiguinho. Do seu pensamento e das suas predilecções dão-nos segura conta os volumes de As doutrinas de Leão Tolstoi, S. Francisco de Assis, José Estêvão, Alexandre Herculano e todas as obras em que nos fala da Natureza. São indispensáveis para o estudo perfeito da sua, personalidade os trabalhos em que estudou a língua e a grei. Como era dotado de grande bondade, lhaneza e simplicidade, daí o seu aferrado amor à terra, tantas vezes manifestado. «A nossa lei escreveu (3) , a nossa lei suprema é a caridade com todas as obrigações que da sua instância dimanam. Será pela caridade que se apagam as distinções entre os homens e nos sentimos filhos dum mesmo e único ser, obedecendo a leis comuns, e colaborando em termos de necessidade e igualdade na criação e na sua beleza». A terra amava-a, porque «esse amor da terra é e será sempre, demonstra-o a História, o único resgate seguro de toda a adversidade, tristeza e desgraça, a mais salutar das consolações que dó abatimento pode restituir-nos à vida». (4)

 

Em Eixo, pois, se fixou e passou a viver até a morte, entregue ao estudo e à direcção dos trabalhos agrícolas. Ali foram pensadas, elaboradas e escritas muitas das obras que publicou, além das páginas sem conta espalhadas por numerosos jornais e revistas. Sobre agricultura e silvicultura é também vasta a sua bibliografia, especialmente na "Gazeta das Aldeias". / 52 /

Um aspecto da casa onde faleceu o Dr. Jaime de Magalhães Lima,
em Eixo, na Quinta de S. Francisco (Fotogravura inédita).

/ 53 / Há pouco mais de dez anos, começou o Dr. Jaime de Magalhães Lima a notar a sua decadência física, que não escondia de ninguém, antes a todos a confessava. No Coro dos Coveiros de 1923, «Introdução», escreveu:

 
 

«Os anos!...
Pressinto-os, meus coveiros paternais,
a absolver na última indulgência
o filho a quem guardam sepultura
em caridoso chão.
Para a eternidade ali vão dissolver
a sombra amortecida de outra sombra,
na qual morou por um fugaz instante
o divino mistério que no peito
deu morada e deu voz à consciência
e a deixou escutar a voz de Deus.
Agora os ouço, em comunhão sagrada,
e humilde lhes recebo
o último conselho, unção e paz;
e aqui murmura a derradeira prece
seu arrastado servo, inquieto e pobre,
que por condição de engenho tão mesquinho
a custo disse
seu louvor ansioso e a gratidão,
prostrando-se em silêncio nesta Terra,
esposa do Amor,
onde viu renascida e o acompanhou,
luz do seu coração,
a infinita e impecável formosura
que os Céus mandam à Terra,
e é o resplendor
da face do Senhor.»

 

Em 1926, terminou a sua conferência A arte de repousar com estas palavras: «...no dia em que Deus me levar deste mundo, que ai de mim! já não pode vir longe!» (5).


Falando sobre Alberto Souto, exclamava, mas aí manifestando bem, ante os que, embevecidos, o escutavam, a sua decrepitude:
«Peregrino exausto, já no extremo da vida, se vida é um frouxo respirar em atmosfera descorada, da qual há muito a claridade desertou...» (6).


Teve uma grande alegria nos últimos anos de vida o venerando escritor: a homenagem pública que lhe prestou Aveiro e
/  54 / Eixo, no dia 17 de Junho de 1934, na quinta de S. Francisco, à sombra do arvoredo que cinge a tebaida do pensador, aonde acorreu a cidade em peso e muitos admiradores de fora, e onde se ouviram, entre outras, as autorizadas vozes dos Drs. João da Silva Correia, Director da Faculdade de Letras de Lisboa, e Joaquim de Carvalho, da Faculdade de Letras de Coimbra.


Finalmente, quase sem se esperar, faleceu o escritor e apóstolo na madrugada de 25 de Fevereiro deste ano de 1936. O seu funeral, no dia seguinte, foi outra grandiosa manifestação, não já de consagração, mas de saudade.


E os seus desejos, manifestados em testamento feito em 13 de Dezembro de 1927, foram cumpridos:
«Desejo ser sepultado no cemitério do lugar em que falecer e instantemente rogo, a quem do meu funeral houver de ter a caridade de cuidar, que este seja humilíssimo, em caixão sem o mínimo adorno, acompanhado dum só sacerdote da Igreja Católica, à qual pertenço, e dado o meu corpo à terra, de modo que esta o consuma o mais rapidamente possível. Aos meus parentes e amigos peço que por minha morte não usem o mais pequeno sinal de luto, nem em si, nem em casa, e antes tudo e todos continuem como se eu vivo fosse e com eles estivesse, e contente. A morte não é pena: é uma glorificação na saudade. Oxalá a merecesse daqueles que eu amei e me amaram, e aos quais, pelo seu amor, beijo as mãos».

 


ESBOÇO BIBLIOGRÁFICO

EDIÇÕES


1886
Estudos sobre literatura contemporânea.

1887 O Sr. Oliveira Martins e o seu projecto do fomento rural.

1888 A Democracia (estudo sobre governo representativo).
         A Arte de estudar  −  por Alex. Bain (trad.).

1889 Cidades e paisagens.
1892
As doutrinas de Leão Tolstoi.

1884 − Jesus Cristo por Didon (trad.).

1899 O transviado (romance).

         Notas dum provinciano.
1990
Elogio de Edmundo de Magalhães Machado.

1901 Sonho de Perfeição (romance).

1902 Vozes do meu lar.

1903 Na paz do Senhor (romance).

1904 Reino da Saudade (romance).

1905 Via Redentora.

1906 Apóstolos da Terra.

1908 S. Francisco de Assis.

1909 José Estêvão.

1910 Alexandre Herculano.

         Rogações de Eremita.

1912 O Vegetarianismo e a moralidade das raças. / 55 /
1915
Salmos do prisioneiro.

         A Guerra Depoimentos de hereges.

1918 Do que o fogo não queima. (7)
1920
Arte e alentos de pousadas da minha terra  −  Rasto de Sonhos.
1923
A língua portuguesa e os seus mistérios (8).
         Coro dos Coveiros (versos).

1924 Alberto Sampaio e o significado dos seus estudos na interpretação da História Nacional (conferência).

1925 Camilo Castelo Branco (conferência) (9).

1926 A arte de repousar (conferência).
1928
José Estêvão (conferência)(10).
1931
Princípios e deveres elementares (conferência).

         Dificuldades étnicas e históricas da insinuação do nacionalismo na arte portuguesa contemporânea.

1933 O amor das nossas coisas e alguns que o bem serviram (11).

1934 Dr. Alberto Souto: o seu espírito, o seu carácter, a sua obra.


 

COLABORAÇÃO

 

I NA «REVISTA DE PORTUGAL» (Dir.: Eça de Queirós): Vol. lI (1890): A filosofia de Tolstoi (pág. 172 e 329); Vol. lII (1890): As comunidades de Goa (pág. 40); A escola de Barbizon (pág. 319); Ideias e factos (págs. 289, 413, 595 e 703); A vida conjugal (comentário à Sonata de Kreutzer, de ToIstoi) (pág. 211); Vol. IV (1892): Politica interna (págs. 105, 233, 371 e 513).


lI
No «lN MEMORIAM» DE ANTERO (1896): Um justo (pág. 211-218).

 

III Na «ANTOLOGIA PORTUGUESA», de Agostinho de Campos: Carácter literário de Fernão Lopes (VoI. II de, «Fernão Lopes», 1922, pág. IX-XXI); Ecce Sacerdos! Lugar de F. Lopes na Lit. Portuguesa (Vol. III de F. L., 1922, pág. XLV-LXXIII).


IV
Em «Trabalhos da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia», VoI. II, fasc. IV: Os povos do baixo Vouga, 1926, pág. 287-335.


V
NA «ILUSTRAÇÃO MODERNA» (Dir.: Marques de Abreu): VoI. I (1926-1927): O poder dum retrato de papel (pág. 59); O Sr. Marques Gomes e a sua obra capital A organização do Museu Regional de Aveiro (pág. 100); Cândido da Cunha, o pintor do mistério da paisagem (excerto de conferência) (pág. 183); O Sr. D. João de Lima Vidal (pág.  218); A degolação dos inocentes (pág. 376); S. Francisco de Assis, cálice da vida (Pág. 426). VoI. II (1928-1929): Um novo pintor o Sr. Porfírio de Abreu (pág. 136); Do feudo à nação (1128-1928); A batalha de S. Mamede (pág. 150); Génios da Montanha (pág. 414); Sagração da paisagem (pág. 442). Vol. III (1930-1932): A alma duma árvore e o seu poder nos homens / 56 / (pág. 50); António Correia de Oliveira (pág. 77); Categoria estética da arte fotográfica (pág. 127); Valor educativo da arte fotográfica (pág. 198); A aventura estética dum peregrino Lugar e valor do eucalipto na paisagem (pág. 352); João Augusto Marques Gomes Poder e vitórias duma vocação (pág. 384); Teixeira Lopes e as metamorfoses da sua arte (pág. 428); Bastardias da arquitectura na actualidade (pág. 482).


VI
NA REVISTA «LABOR» (Aveiro) (Dir.: José Tavares e Álvaro Sampaio):  

Vol. I (1926): D. Carolina Michaëlis (pág. 67).

Vol. III (1928): Júlio Henriques o seu saber, o seu carácter, a sua felicidade (pág. 212).

Vol. V (1930): Prioridade da música sobre o pensamento na linguagem (pág. 417); Ciência e arte (a propósito dum artigo de Anselmo F. de Carvalho) (pág. 428).

Vol. VI (1931): Novos aspectos da ciência da linguagem (pág. 65); A arte do dicionário e os métodos de estudo da linguagem (pág. 261); Uma arte descurada A leitura (pág. 369); estrutura científica do ritmo (pág. 508); A propósito duma conferência (carta) (pág. 516).
Vol. VII (1932-1933): Aperfeiçoamento recíproco do palácio e da praça na linguagem (pág.261).
Vol. VIII (1933-1934): Poesia e Música
Simetria dos seus sistemas específicos de articulação e flexão (pág. 5).


Não conhecemos a restante colaboração, política e não política, dada em jornais e revistas, por exemplo no Instituto. Apenas sabemos que os principais jornais onde o Dr. Jaime de Magalhães Lima escreveu foram: Província, Novidades, Reporter, Nacional, Jornal da Noite, Diário Ilustrado, Vitalidade (Aveiro), e no que respeita a artigos de agricultura e silvicultura,  a Gazeta das Aldeias, de que já se falou. Mas é possível que esta enumeração ainda fique incompleta.

 

Aveiro, 11 de Março de 1936.

 JOSÉ TAVARES

__________________________________

 

(1) Cópia da certidão de idade: − «Aos doze de Novembro de mil oitocentos e cinquenta e nove, nesta paroquial igreja da Vera Cruz e de minha licença, o padre José Joaquim Ferreira Tavares, natural da freguesia do Bunheiro, baptizou solenemente e pôs os santos óleos a Jaime, que nasceu no dia 15 de Outubro último, filho legítimo de Sebastião de Carvalho e Lima e de D. Leocádia Rodrigues de Magalhães, moradores na Rua do Carmo desta minha freguesia; neto paterno de Sebastião Gonçalves de Figueiredo Lima e de D. Liberata Ludovina da Rosa Vidal, da freguesia de Eixo, deste bispado, e materno de Guilherme Pinto de Magalhães e de D. Rosa Rodrigues de Magalhães, da cidade do Rio de Janeiro, Império do Brasil. Foram padrinhos Francisco de Castro Abreu Bacelar e D. Bárbara de Castro, prima materna do mesmo baptizado, tocando por eles, na qualidade de seu procurador, o bacharel José Pereira de Carvalho é Silva, morador nesta freguesia da Vera Cruz. Para constar fiz este assento. O encomendado − João José  Marques da Silva Valente» (Ano 1850. livro n.º I, fls. 207).  

(2) «Os povos do Baixo Vouga», in «Trabalhos da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia», vol. lI, fasc. IV, pág. 293-294 

(3) Princípios e deveres elementares, 1931, pág. 5. 

(4) O amor das nossas coisas, pág. 25.  

(5) Pág. 31 

(6)  Pág. 4 

(7)  Em duas partes: I - Do que o fogo não queima; Il - Valores restaurados - Renascimento da Educação Clássica. 

(8) Contém: RESSURREIÇÃO DUM MILAGRE (a propósito do vol. Trancoso, da "Antologia" de Ag. de Campos); O CANTO E A LETRA NA LINGUAGEM (a propósito dos Paladinos da Linguagem; de Ag. de Campos); UM HOMEM DE LETRAS (Agostinho de Campos); A BÍBLIA DA PÁTRIA (a propósito do aparecimento do vol. 5.º de Na hora incerta da nossa Pátria, de Correia de Oliveira («A Fala que Deus nos deu.») 

(9) No Liceu de Aveiro, em 16 de Março de 1925. 

(10) No Liceu de Aveiro, na sessão solene de homenagem ao seu patrono, em 17 de Dezembro de 1927.  

(11)  Compilação de estudos, que contém: A) Ramalho Ortigão − I − Os demolidores do liberalismo; lI − O repouso do gladiador; lll − Ramalho Ortigão e o amor das nossas coisas (1916); B) Camilo Castelo Branco (1915); C) Eça de Queirós − l − Eça de Queirós e o renascimento da língua portuguesa; lI − O estilo de Eça de Queirós e os seus contrastes e paralelos; D) Antero de Quental − I − (1886); Il − (1899); Ill − (1921); IV − A cultura sistemática do desprendimento e o mistério da morte de Antero (1929); E) Oliveira Martins − l − Oliveira Martins 1893); Il − A influência de Oliveira Martins (1897) IlI − Oliveira Martins (1891-1902) − Oito anos de repouso; IV − Oliveira Martins − O seu carácter (1910); V − O 1º Tomo dos «Dispersos» (1923); F) Afonso Lopes Vieira − l − «Em demanda do Graal» (1923); II − O «Amadis de Gaula» (1923); G) Manuel da Silva Gaio − A conversão dum Poeta (1916); H) António Correia de Oliveira (1930).    

 

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