EXUMANDO de
antigos e amarelecidos jornais, que viveram e reflectiram a opinião
pública aveirense na segunda metade do século passado, a romântica e
ingénua poesia que por um instante pretendemos reanimar insuflando-lhe o
minuto de vida por estas páginas emprestado, demais sabemos nós que em
muitos dos leitores do ARQUIVO irónico sorriso acolherá os versos a
seguir reproduzidos.
São outros os
ritmos que a geração de nossos dias procura e aprecia, é outra a
estética literária contemporânea; reconheço-o 'sem esforço, e creio até
na sinceridade dos que, nascidos fora do signo do romantismo, repudiam
estas formas, esta cadência muito certa, martelada, batida em passo
de marcha, segundo o cânon poético daquela época.
E todavia
− volubilidade
do humano espírito
− a Salineira
de BERNARDO XAVIER DE MAGALHÃES foi no seu tempo altamente apreciada,
sinceramente compreendida e sentida.
Era aveirense
o seu autor. Nascido, em 23 de Outubro de 1830, segundo me diz a
certidão com que se matriculou na Universidade, em Coimbra deve ter
encontrado vivos os ideais estéticos do grupo do Trovador, e lá
terá recolhido o gosto poético por esses temas locais, que de certo modo
poderemos classificar de biográficos, se os considerarmos do plano em
que o herói da fabulação é colocado e se movimenta.
A Salineira
seria, assim encarada, uma espécie de réplica a O Marinheiro, de
FRANCISCO GOMES DE AMORIM, ou a outras composições poéticas do género,
então em voga, a que o autor permanecera fiel.
Sente-se por
vezes perpassar o lirismo de JOÃO DE LEMOS no leve saudosismo que
enternece estas estrofes.
Os dois poetas
ficam, no entanto, a considerável distância , um do outro...
/ 16 / Há, todavia,
a considerar o tema; de viva cor e recorte local, não envelheceu ainda:
é de ontem e é de hoje, e, sem que o desdouro de inestético lhe
coubesse, bem poderia ser tomado por algum poeta de nossos dias, de
trepidante e assimétrico verso.
Merece que nos
detenhamos um instante na sua leitura, quando por mais não seja, em
homenagem ao autor, prematuramente falecido em 15 de Abril de 1882, e
hoje na imensa legião dos literatos injustamente esquecidos.
Descontem-se-lhe certas ingenuidades de que a malícia de hoje sorri, e
não se perca de vista a escola literária a que estas composições deram
corpo; assim se compreenderão melhor os versos de BERNARDO DE MAGALHÃES.
A Salineira
permaneceu no gosto local até muito tarde, como, aliás, aconteceu às
demais poesias da sua índole.
Outras escolas
haviam surgido já, a Arte nova entrara mesmo as fronteiras, e por toda a
província se recitava ainda ao piano A Lua de Londres, A Judia,
o Noivado do Sepulcro!
Assim também
nos foi dado ouvir a Salineira de BERNARDO DE MAGALHÃES, há bons
trinta anos, a um serão, em noite de piano e de Judia...
No escrínio
das nossas reminiscências de infância a fomos ainda encontrar, envolvida
na saudade do tempo que não volta mais, e sem esforço evocamos a
sociedade de então.
Era-se decerto
mais sincero, apesar do romantismo...
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Diz a poesia:
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Eu sou filha
dum pobre marnoto,
E nasci cá nas praias do mar;
O meu berço era a proa dum barco,
E dormia do norte ao soprar.
Ai! que lindo não era o meu barco,
Que travesso na ria a saltar!
Fui crescendo, crescendo, e contava
Já doze anos em certo verão,
E meu pai então disse: Maria,
Vem comigo ajudar teu irmão.
Tu já és mulherzinha, já podes
Ajudar na marinha
− pois não!
E eu saltava de alegre e contente,
E lhe disse: meu pai, vamos lá!
Eu já sou mulherzinha, já posso
Ajudar meu irmão, e verá,
Olhe que eu tenho força bastante,
E já posso pegar numa pá.
/ 17 /
[Vol. Il - N.º
5 - 1936]
E meu pai foi
à loja comigo,
Foi comprar-me a canastra do sal,
Tão polida, tão branca, e tão linda!
Parecia-me um berço real!
Esse dia p'ra mim foi de festa,
Foi de festa melhor que o Natal!
E cá vim trabalhar p'ra a marinha!
Já seis anos cumpridos lá vão!
Há que tempos eu sou salineira,
Ajudando meu pai, meu irmão!
O nordeste tornou-me trigueira,
Calejou-me a canastra na mão.
Ai! Jesus, mas a mim que me importa,
Se esta vida se vive a folgar!
Meia noite bateu!
− leva acima!
Lá vai tudo de noite a saltar!
E que lindas não são estas noites
Nas marinhas d'Aveiro ao luar!
Sou trigueira, ando pobre e descalça:
− Eu conheço o
que sou
−
Inda bem!
Mas bem ouço os rapazes da terra:
«Que travessos os olhos que tem!»
E bem sei que meus olhos são lindos
Mas são só de... quem são;
− mais ninguém.
Andam nus os meus pés na marinha,
Andam nus, e cortados do sal:
Mas são eles informes e grandes?
E parecem talvez muito mal?
Vai lá ter co' as cachopas de fora,
Vê se encontras por lá pé igual!
Pobrezinhas das damas da terra,
Quando eu quero trajar de função!
Quando visto o meu fato de pano,
Tenho dó das senhoras então!
A tricana é o enlevo dos olhos,
A tricana é que inspira paixão.
Mas não gosto d'andar oprimida
Nesses fatos de luxo,
− não eu.
−
− Nada, nada
− cá vou p'ra a
marinha:
−
É aqui que se vive no céu;
Estes montes de sal pequeninos
Ninguém sabe estimá-los como eu!
/ 18 /
Vinde cá, raparigas e moços,
Vil}de cá, dêmos todos a mão;
− Esses bailes e
danças fidalgas
Ao pé destas não prestam, pois não?
O viver é dançando na eira
Cana verde, ai! Jesus, Marião.
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Folhear de
velhos papéis trouxe-nos à mão, recentemente, uma colecção do
Almanaque ilustrado do Ocidente; percorrida toda, pela curiosidade
das gravuras, com o mais justificado espanto se nos deparou, na pág. 73
do volume correspondente ao ano de 1885, esta série de nove quadras,
alinhadas na perfeição...
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SALINEIRA
Eu sou filha dum pobre marnoto,
Fui criada nas praias do mar;
O meu berço era a proa dum barco,
Eu dormia da brisa ao soprar.
Ai! que lindo não era o meu barco,
Lá no meio da ria a saltar...
E ela ria ao marulho das águas,
E cantava ao sussurro do mar.
Bem pequena,
«oh! meu pai, eu já posso
C'uma vara, dizia, na mão;
Eu já posso também nas marinhas
Ajudar a meu pai, meu irmão»!
Há dez anos que eu sou salineira,
Já dez anos cumpridos lá vão;
Rôdo e pá, vertedouro e canastra,
Calejaram-me já esta mão.
Que prazer eu senti nesse dia
Que me deram canastra p'ra o sal!
Tão bem feita, tão branca, tão linda,
Parecia um bercinho real.
Era ainda eu então bem pequena,
Todos riam ao ver-me passar!
Mas agora ao seguir p'ra a marinha
Ouço os moços meu todo gabar.
Vejo as damas vestirem, trazerem
Castor, sedas, veludo e flamão;
De roupinhas e saia de pano,
Ai! que dó delas tenho eu então!
Eu bem sei quem já segue meus passos,
Quem na igreja já espera por mim...
Outros muitos queriam, queriam,
Mas só junto do altar dou o sim.
Ai! Jesus, que saudades inda tenho
Dos folguedos no adro e no lar...
Meia noite já deu, leva arriba,
p'ra a marinha vai tudo marchar.
Porto de Muge.
JOSÉ MANUEL DE
DEUS |
Como o
leitor vê, escritas em Porto de Muge por JOSÉ MANUEL DE DEUS...
Assim mesmo!
Falta-lhes apenas dizerem donde foram infamemente plagiadas...
Quis saber
− era natural
− quem fora JOSÉ
MANUEL DE DEUS.
Informações
que solicitei da Repartição do Registo Civil dizem-me que, de facto, tal
cidadão existiu, mas há muito é falecido. «Dedicava-se à literatura»,
diz o meu informador; todavia, na localidade «não conhecem nenhuma das
obras que ele escrevesse».
E contudo, se
todas lhe tiverem dado o trabalho que a Salineira lhe deu... avultada
deve ser a bibliografia do poeta de Porto de Muge...
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BERNARDO DE
MAGALHÃES publicou pela primeira vez a sua poesia em "O Campeão das
Províncias"; explicava-a assim:
«Sr. Redactor
− Esta poesia,
que tenho a honra de lhe en'viar, não tem mérito algum como V. Ex.ª
sabe, não o tem principalmente perante o leitor estranho a essa terra,
por isso lhe rogo queira mandar inserir no seu periódico, junta
/ 20 / à poesia, a
declaração de que ela foi escrita quase para ser entendida somente pelos
meus patrícios.»
Assim é, em grande parte, e como poesia puramente local a arquivamos
nós.
Existe
certamente ainda quem tenha conhecido o autor; e possivelmente para
algum dos nossos leitores, das gerações imediatas, como para mim, estes
pobres versos terão também delicado sentido, avivarão uma saudade,
recordarão uma data, um nome... marcos da pobre e frágil condição
humana...
A. G. DA ROCHA
MADAHIL
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