Como remate duma vida
nobremente consagrada à Arqueologia e à História locais, o Rev. Abade
João Domingues Arêde dotou com um interessante e prometedor Museu a
recente vila de Cucujães, terra que durante 32 anos pastoreou e para o
engrandecimento da qual muito tem contribuído.
A simpática e meritória iniciativa, que pode apontar-se como exemplo e
incentivo a tantos outros Municípios do Distrito, ricos de Arqueologia e
de História, mas pobres de boa vontade, será devidamente pormenorizada
nesta revista quando nos ocuparmos dos Museus do Distrito, que são,
presentemente, os de Arouca, Aveiro, Buçaco, Cucujães e Ílhavo.
Possui, já, o referido Museu de Cucujães catálogo impresso das suas
colecções, prefaciado com muita propriedade e justo enaltecimento pelo
ilustre professor e sábio arqueólogo Dr. Mendes Correia, e nele
inscreveu o seu benemérito organizador, sob o n.º 2 da secção da época
neolítica
−
período proto-histórico − «um amuleto que as devotas traziam por
superstição».
Como exemplar que é da maior raridade em Portugal (o Rev. João Domingues
Arêde crê, mesmo, ser o único encontrado no nosso país), quis agora o
ilustre arqueólogo ter a bondade de desenvolver no Arquivo a breve
rubrica do catálogo do seu Museu acima transcrita, enviando-nos a nota
aqui junta.
A época atribuída por Sua Rev.cia ao que classifica de
amuleto parece excluir a possibilidade de se tratar dum fragmento de
estátua, hipótese a considerar se, por exemplo, a época romana pudesse
ser apontada no caso sujeito.
Como o Rev. Arêde termina a sua interessante notícia solicitando o
depoimento de três categorizados e notáveis arqueólogos, cumpre-nos
apenas declarar que o Arquivo do Distrito de Aveiro, dentro do
programa que para sua acção traçou, põe
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as suas páginas inteiramente ao dispor de Suas Excelências para cabal
esclarecimento de tão curioso problema da Arqueologia e da Etnologia do
nosso distrito.
Segue-se a notícia do ilustre arqueólogo e organizador do Museu de
Cucujães.
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O amuleto encontrado no Monte Crasto, de São Martinho da Gandra, próximo
do Couto de Cucujães, do concelho de Oliveira de Azeméis, é o símbolo de
uma crença supersticiosa entre os povos idólatras da alta antiguidade.
Esses povos, de ideias rudes e dominados pela superstição, atribuíam
virtude e poder a pedras, ou a outros objectos inanimados, somente por
semelhança inteiramente superficial, como o amuleto aqui reproduzido.
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Amuleto encontrado
no Monte Crasto
próximo de Cucujães (de grandeza natural) |
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Extremidade
superior do amuleto |
Tinham, pois, o seu culto todos os objectos considerados como amuletos,
e de uma maneira mais extravagante os do mesmo género do encontrado na
proximidade de Cucujães, como, consta:
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[Vol. I − N.º 2 − 1935]
a) De muitos escritores gregos e latinos.
Os Índios lhes celebravam festas; os Egípcios os esculpiam em seus
monumentos; os Gregos lhes levantavam altares, e estátuas que designavam
muitas vezes com o nome de Hermes, as quais serviam até de marcos
nas estradas em honra de Mercúrio, núncio dos deuses e da ciência; e os
Romanos, como imitadores dos Gregos, lhes prestavam também fervoroso
culto.
E destas imagens fizeram as mulheres egípcias, que depois foram imitadas
pelas romanas, um objecto de enfeite.
(Vide ANACREONTE, BION, S AFO, OVÍDIO, SALÚSTIO, VIRGÍLIO, HORÁCIO,
JUVENAL, PLAUTO, SUETÓNIO, TERÊNCIO, etc. citados por A. DEBAY).
b) Da Bíblia sagrada.
Nos templos bíblicos o povo, dominado também pela superstição,
entregava-se à idolatria, como se lê no Levítico − Cap. XXVI − I: Ego
Dominus Deus vester: Non facietis vobis idolum et sculptile, nec titulos
erigetis, nec insignem lapidem ponetis in terra vestra, ut adoretis eum:
ego sum Dominus Deus vester.
Quer dizer: Eu sou o Senhor vosso Deus: Não fareis para vós ídolos nem
imagens de escultura, nem levantareis colunas, nem na vossa terra poreis
pedra assinalada para a adorardes: porque eu sou o Senhor vosso Deus.
Daqui a proibição ordenada por Deus aos Hebreus de erigirem colunas e
levantarem pedras, a fim de lhes tirar toda a ocasião de idolatrarem.
c) De um comentário ao mesmo versículo bíblico sobre a expressão −
pedra assinalada para a adorardes.
OUKELOS traduz − pedra de adoração. O TARGO DE JERUSALÉM − pedra de
erro. O INTÉRPRETE SAMARITANO − pedra que sirva de guia ou de sinal. Os
SETENTA, e com eles TERTULlANO − pedra que sirva de alvo.
Todas estas versões coincidem no mesmo, que é designar umas pedras que
se erigiam nos caminhos ou nos cabeços, quais ESTRABÃO atesta que vira
muitas no Egipto, e quais o mesmo autor diz que havia muitas no Monte
Líbano.
Eram como colunelos de pedra negra e dura, postos sobre outra pedra mais
grossa que media cerca de doze pés de diâmetro.
No Egipto e na Síria se tinham estas pedras em tal respeito que chegava
a adoração.
Os Gregos imitaram esta superstição nos montes de pedra que punham nas
estradas em honra de Mercúrio. Chamavam-lhes Hermes (Bíblia
sagrada, trad. do P.e António Pereira de Figueiredo, ed.
de 1852. pág. 212).
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Do exposto podemos concluir que a raça primitiva da Lusitânia, à
imitação dos antigos egípcios e de alguns antigos colonos gregos e dos
romanos, adoptou a mesma crença supersticiosa, tendo prestado também o
seu culto fálico.
O referido amuleto pre-histórico, encontrado nesta região, não
provará esta asserção?
Nesses remotíssimos tempos a mesma crença não teria tido uma base comum
entre raças de índole e civilização diferentes?
Têm a palavra os ilustres arqueólogos portugueses Dr. José Leite de
Vasconcelos, do Museu Etnológico de Lisboa, Dr. Mendes Correia, da
Faculdade de Ciências, do Porto, e José de Pinho, de Amarante.
Couto de Cucujães, 10 de Junho de 1935.
O Abade aposentado, JOÃO DOMINGUES ARÊDE
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