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Memória sobre Aveiro do Conselheiro José Ferreira da Cunha e Sousa

XXII - O Senhor das Barrocas

O local onde se acha a capela desta invocação, fechado a sul e nascente por grossos vaIados de silvas, conservando no largo existente entre a estrada e a capela as paredes meio derrocadas da casa da novena, e no sítio onde se acham, à esquerda de quem vai da estrada para a mesma capela, únicas casas modestas mas alegres, as ruínas da antiga casa, talvez a residência do ermitão ou sacristão da capela, apresentava um aspecto tristonho, lúgubre até, sendo geralmente considerado como sítio pesado, isto é, daqueles em que a supersticiosa ignorância dos povos piamente acreditavam que se reuniam à meia noite as bruxas e lobisomens. Era pelo menos perigoso, próprio para esperas e roubos, por ser inteiramente desabitado, não havendo casa alguma da capela da Alegria até Esgueira. Todas as que existem são de  construção posterior à da estrada; e esta, decorridos mais alguns anos será não estrada, mas uma rua, se o não é já, que há-de ligar Esgueira a Aveiro.

Digamos agora alguma coisa da casa da novena. Nos tempos áureos desta capela concorriam ali muitos romeiros, alguns de terras mui distantes; vinham cumprir os seus votos ou oferendas e exercícios de piedade, os quais costumavam durar por nove dias seguidos. Daí o chamar-se-lhes novenas. E como o local era desabitado e deserto, resolveram os administradores deste santuário edificar a casa que ocupava a maior parte do largo entre a capela e a estrada, para nela se abrigarem os romeiros. Não sei que divisões tinha, porque só lhe conheci as paredes exteriores mas já derrocadas e abrigando um silvado. Tendo esfriado esta devoção, foi a casa caindo em ruínas, assim como a do ermitão; os fundos da capela, produto das esmolas dos devotos e que eram avultadas, desapareceram pela forma por que outro tanto tem sucedido a muitos estabelecimentos pios e de beneficência, e a capela teria tido a sorte das casas se a Junta de Paróquia da Vera Cruz não houvesse tomado a louvável resolução de olhar por ela, provendo à sua conservação. Pena é que se não trate de restaurar os ornatos da porta principal; muito deteriorados pela acção do tempo.

Consta que além desta romagem outra havia da qual era objecto a imagem de Nossa Senhora das Areias, na costa de S. Jacinto. Não me foi possível averiguar se a concorrência dos romeiros à capela do areal era um anexo ou complemento da do Senhor das Barrocas, ou se era diferente, isto é, sem ligação ou relação alguma com esta; mas que existiu é de tradição, assim como que por essa ocasião todos os romeiros costumavam banhar-se na ria, atribuindo a esse banho certas virtudes, como ainda hoje acontece ao banho santo da noite de S. João no local do Farol, Costa Nova, etc. Actualmente, porém, o banho santo é no mar, enquanto o antigo era, como já disse, na ria, e no sítio chamado praia de Lavacos, mas que eu ainda ouvi por muitos anos nomear com o acento agudo na última sílaba.

Eis o que era o sítio das Barrocas; o que ele é hoje, vê-se, escusando, portanto, encarecê-lo.

O que, porém, mais poderosamente contribuiu para os melhoramentos de Esgueira, assim como para os do lugar de Sá, que era o que já se disse, e que é hoje o que se vê, foram as obras públicas: primeiramente a estrada de Aveiro a Esgueira, a primeira que se abriu nos subúrbios desta cidade, depois de 1834; a sua construção e plantio de oliveiras dos lados foi concluída em 18... Essas oliveiras, que aliás produziram abundantemente nos primeiros anos, já não existem, tendo sido arrancadas pela construção dos edifícios que hoje ornam aquela rua.

Seguiram-se depois a estrada de Esgueira a Águeda, e de Esgueira a Albergaria-a-Velha, ramificando-se em Angeja para a vila de Estarreja. Veio finalmente o caminho de ferro, dando lugar à construção da Estação e às três avenidas que dela partem, uma em direcção ao quartel, que foi a primeira construída, outra por Arnelas, afim de completar a estrada aberta desde o Rossio na cidade, até à Estação, da qual já falámos, e a terceira, que vai da Estação ao passo de nível na estrada de Esgueira.

Todas estas obras empregaram muitos braços, muitos carros, e pagaram-se expropriações, e para o caminho de ferro algumas bem caras, espalhando-se assim muito dinheiro, e animando-se os pequenos cultivadores a adquirir gado e carros para o serviço de transportes, que nunca lhes faltaram por alguns [anos] e que ainda hoje constituem um auxílio valioso para esta classe de gente. Acresceu a isto tornar-se geral o uso do leite, pois que eu ainda conheci por alguns anos haver em Aveiro um único leiteiro, por alcunha o cabreiro da Quinta do Picado, que vinha todos os dias a Aveiro, pela manhã, trazendo uma bilha de folha, com algum leite que vendia a pouco mais de uma dúzia de fregueses. E nem havia mais leite, nem quem o procurasse. Este homem, sendo já de idade, aí pelo meado do século décimo nono, forneceu de leite todos os seus fregueses durante um ano, gratuitamente, sem dar razão do seu procedimento, atribuindo-se, porém, geralmente a restituição imposta pelo seu confessor, em restituição da água com que o leite vendido era baptizado.

Pouco depois faleceu. Mas voltando a Sá e a Esgueira, hoje não tem ali vacas de leite quem de todo as não pode ter. E todo se gasta.

Além desta indústria, contribuiu também a da construção de adobes em um areal pertencente à Junta da Paróquia de Esgueira, e bem assim a outros proprietários. Neste trabalho não só se empregam muitos braços, mas também muitos carros de bois, conduzindo adobes para esta cidade e povoações vizinhas, e também para a Murtosa, sendo ali fabricados todos os que têm sido empregados nas obras efectuadas nestas localidades. Acresce a isto a condução de volumes que da Estação do caminho de ferro vêm para a cidade, e a do sal, louças e outros produtos que da cidade vão para a Estação, entre os quais não são menos importantes os de peixe fresco que daqui se exporta e o salgado que se importa quando há falta nas nossas costas.

É, pois, a José Estêvão Coelho de Magalhães que a cidade deve o importantíssimo melhoramento de o caminho de ferro se aproximar dela e não seguir pela linha que primitivamente lhe tinha sido marcada. E, com efeito, ao caminho de ferro e à sua Estação às portas da cidade que Aveiro e Esgueira devem a transformação completa pela qual têm passado nestes últimos anos.

Algumas famílias, assim de empregados públicos, assim como principalmente de oficiais militares, pela proximidade em que lhes fica o quartel, têm preferido viver em Esgueira, contribuindo assim para o aumento da povoação pela construção de novas casas e melhoramentos de algumas existentes.

Esgueira podia já considerar-se como parte da cidade; só há a lamentar que não tenha sido ali introduzido o gás, assim como pela estrada que de Aveiro a ela conduz, feito o que, entendemos que nada faltaria para que aquela povoação fizesse parte da cidade para todos os efeitos.

 

 

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