In: "Expresso", 13 de Novembro de 1982, pág. 32-R

Monsieur Tati: não nos deixam olhar, pois não?
 

Jorge Silva Melo

1 – «TUDO o que sei, tudo o que tinha, tudo o que podia, e tudo o que eu sonhava está em "Playtime" ("Vida Moderna")», dizia Jacques Tati a "A Capital" a 15 de Março de 1968. Tudo, pode dizer-se agora. E, claro, a própria morte de Tati.


2
– Na manhã do dia 16 de Março de 1968, na companhia do Eduardo Paiva Raposo, do Fernando Guerreiro e da Maria Antónia PalIa, ouvia-o eu declarar: «Os jornalistas foram um pouco duros para comigo e eu sei porquê. Porque com o dinheiro que gastei em "Playtime" toda a gente pensava que se podia ter feito mais filmes. Mas era impossível fazer "Playtime" de outro modo. Não foi para ganhar dinheiro que o fiz, não o tenho, nem me apetece. E não é por estar no Hotel Ritz que eu tenho dinheiro. Aliás, durante as filmagens andávamos por hóteis de quinta ordem. E a primeira coisa que me aconteceu aqui no Ritz foi ter dois fatos para quarenta cabides.»

 

Depois foi a história que se sabe: o público não foi, o filme saiu, Tati que após o êxito de "Mon Oncle" ("O Meu Tio"), poderia ter prosseguido uma carreira de "poesia francesa" entre MarceI Marceau e Jacques Prévert (magníficos os seus filmes, mas com "Mon Oncle" chegando ao impasse), conheceu a desgraça. Ainda faria mais dois filmes mas em condições e resultados precários. E um projecto que lhe era agora proposto "in extremis" por Jack Lang. E que a morte matou.

 

3 – Eu conheci Jacques Tati nesse dia 15 de Março. Tinha, dias antes, saído da cadeia de Caxias, onde fora parar mais por falta de ligeireza nas pernas para apoiar Ho Chi Minh do que por constituir perigo político que se visse contra um Governo que combatia noutro hemisfério em nome de 7 séculos.

 

Foi logo a seguir a sair da cadeia que vi "Playtime" e que percebi que fora preso exactamente porque na estupidez dos meus dezanove anos eu achava possível um mundo de filmes assim. Não estou a mentir, agora. Escrevi-o no "Tempo e o Modo" que saiu em Abril de 1968; com aquele inconfundível estilo de miúdo há muitos anos míope e que já carregava o seu Barthes Campo Grande abaixo: «Se soubermos que em "Playtime" o direito à observação é privilégio daqueles que como "outsiders" são definidos (Hulot e Barbara) e que ele é o jogo ou a livre actividade que se atinge colectivamente em momentos-plenos (...), temos que nele por dois lados se movimenta o mesmo conceito: essa forma de viver livre que é, segundo Jean-Luc, "regarder autour de soi"; e que essa actividade se processa e define simultaneamente dos dois lados da tela. (...) Nós próprios somos também
integrados no tempo do jogo. Desse modo, (...) a nossa actividade de espectadores alarga-o e transforma-o no filme-total. Assim se coloca o problema da oportunidade desta opção – e aqui se observaria como filmar assim é exigir dos espectadores aquilo que o jogo social anotado em "Playtime" lhes destrói: o direito do olhar. Fórmula em que se inscrevem outros tantos direitos: o da informação, o da escolha, o do julgamento. Outros tantos direitos que "Playtime" nos confere ainda".

 

(Apesar do estilo pomposo de quem já tinha feito as suas frequências de Linguística II, perceberam, não perceberam?).

Em resumo: exercendo o seu absoluto e inalienável direito à liberdade, Tati propunha-nos a liberdade filmando pessoas que olhavam para aqui e para ali e nós naquele filme de luxo gratuito ora podíamos ir olhando para a "direita ora olhando para a esquerda, ora para esta, ora para aquela personagem..., feitos que éramos espelhos transportados – ao longo de um filme, numa paráfrase que será banal mas não idiota de Stendhal.

Tati propunha-nos a liberdade, mas só o podia fazer de uma maneira: exercendo-a ele próprio. Ou seja, arriscando-a ele próprio. E Tati fez este filme impossível: 70 milímetros –esse formato de epopeias que a cada esquina nos mandava ver o Coliseu de Roma, um orçamento até então inultrapassado, uma cidade inteira construída em estúdio, arranha-céus, auto-estradas, uma história deambulatória, uma planificação ultra-elaborada e original que combatia a montagem de frente e que assim se batia com Griffith e a origem do cinema como só Brecht se quis bater com Aristóteles e me contam que Marx com Hegel.
 

4 – Mas os espectadores não foram ver. E o poder (económico, político, cultural) impediu-me finalmente de viuver num mundo em que houvesse mais filmes de Jacques Tati. Os senhores produtores, os senhores distribuidores, os senhores exibidores, os senhores ministros e secretários de Estado, os senhores jornalistas acharam que já bastava, que o melhor era Jacques Tati acabar por ali, que já tinha gasto dinheiro de mais. E assim o censuraram. E censuraram-me.

 

Mas não foram só eles. E é precisamente porque não foram só eles, porque a ditadura não tem só um lado, porque foi em nome de que eu pedi para escrever este artigo. É que a carreira de Jacques Tati foi censurada (o meu prazer de espectador foi censurado) em nome dos espectadores que não foram ver "Playtime". E é esses que eu queria acusar olhos nos olhos e sem passar de hoje. Porque vos tenho raiva.

(A todos vocês que fizeram troça do final do "Wrong Man" (O Falso Culpado) de Alfred Hitchcock. A todos vocês que acharam caricatas as "Seven Women" ("Sete Mulheres") de John Ford. A todos os espectadores, directores-gerais de espectáculos, artistas de revista, que ridicularizaram o "Amor de Perdição" de Manoel de Oliveira. A todos os que não esgotam a colectânea de poemas da Luísa Neto Jorge. A todos os que andam só agora (é tarde) com o Nicholas Ray na boca. A todos os que não "ligam" a um livro como "Terceira Idade" de Mário Dionísio. A todos os moralistas que acham que para a arte é cinco tostões para o eléctrico, e que se devem prestar contas e servir qualquer coisa. A todos os espectadores que não foram ver "O Labirinto de Creta" do Teatro da Cornucópia e a todos os críticos que disseram que o melhor era não irem. A todos os que não tratam de arranjar espaço para o Teatro do Mundo. A todos os que se resignam a isto: a este cinema, a este teatro, a esta literatura do toma-lá-cem-paus-dá-me-tempo-livre...).

Porque são os mesmos que deixaram que "Playtime" não chegasse a estar três semanas no Monumental. E em nome de quem o exibidor ia cortando bocadinhos todos os dias a partir do terceiro dia de projecção a ver se aquela obra de génio lá conseguia ir vendendo lebre por gato, que é o que me dizem sempre que é do que vocês gostam. Ou não é? Então porque é que não foram?

5 – Porque é que não vão ao que é novo? Ao que é tentativa? Ao que é falhado? Ao que é genial? Ao que oferece risco? Porque é que só investem os vossos cem escudos em coisas que já sabem? Porque é que se resignam ao velho se o novo vos bate tanta vez à porta? Tanta vez e com que esforço de Sísifo! Com que esforço para ser digno de vocês!

É porque não querem olhar, não é?

(Nos livros diz-se que é porque não vos deixam, mas eu tenho-vos em maior  consideração. Prefiro acreditar que é porque não querem).

Mas sabem que se não querem estão a censurar, não sabem? Sabem que se não querem olhar estão a não deixar que se olhe, não sabem? Sabem o que estão a fazer?

6 – E vocês, os críticos, que depois de terem navegado pelos escombros das ideologias, sempre entre a Scyla e a Caribdis de ora-Freud-ora-Barthes-ora-Karl Max, sabem o que andam a fazer agora, neste vosso frenesim de identificação com o gosto do grande público? (É ou não é a primeira vez na história do cinema que a crítica europeia em uníssono aplaude e parece só estar interessada na Série A?). E porque é que se resignam? Ou vocês não sabem que aplaudindo um lado estão também a censurar, não sabem? Ou julgam que se pode servir a dois cinemas? Julgam? Ou têm é medo de ficar sós ou a três em salas geladas?

Não estão ainda a censurar "Playtime"?


7 -– Repito: tenho-vos raiva. Pois não havia de ter se vocês são (são) o poder e a ele assim se resignam e o que eu queria era olhar à minha volta, viver sem vocês, "viver livre". E não percebem que resignando-se são censores?

8 – Tati chamava-me "mon jeune ami". E eu acho que percebi daquela vez por todas que a liberdade é aquilo. E por isso pedi – e fui eu que pedi – para escrever isto assim, de um jacto, na altura em que "mon vieil ami" morre. Porque é isto a morte. Tati já não está connosco. E só ficou enquanto trabalhou. Sempre que o não pôde, fomos nós que fomos privados de um nosso contemporâneo de génio e risco.

Ele nunca vos falaria assim – preferiria observar-vos e divertir-se observando-vos. Eu não sou tão inteligente. E vocês irritam-me. Porque não quiseram no "Playtime" olhar livremente. E não me deixaram a mim.

Foi Mozart, claro, quem soube qual era o som humano da palavra libertà. No "D.  João". E eu estou convencido disto: foram vocês, os resignados do capitalismo, ou, pior ainda, foi em vosso nome que assassinaram Mozart.
 

 


 


A Festa mais divertida

 

NUMA entrevista publicada, em 1968, no número 199 dos "Cahiers du Cinéma", Tati cita um episódio que se passou com ele quando, nesse ano, esteve em Lisboa (ver a evocação de Jorge Silva Melo), por altura da estreia de "Playtime" ("Vida Moderna"). Aqui o transcrevemos, tal como ele o viu e descreveu e porque dá bem a medida do que era a sua inspiração em que, como diz, a "imaginação vem em socorro da observação".

 

"Recentemente, estive em Portugal, e instalaram-me no hotel mais chique de Lisboa, num quarto sumptuoso, com um enorme quarto de banho e televisão (que não funcionava) – um verdadeiro "Playtime" em miniatura. Chateava-me imenso naquele quarto e decidi tomar um duche. Os azulejos eram impecáveis e as torneiras cromadas brilhavam... Bom. Abro a torneira e pfuitt!: o jacto de água não é dirigido para a banheira mas para o lado. Telefono à recepção, para explicar que o chuveiro lança a água para fora da banheira, e mandam-me um empregado. Depois de constatar que efectivamente a água sai para fora da banheira, telefonamos ao director. Acabámos por nos encontrar todos no meio do quarto e o director, um pouco incomodado, pergunta-me se eu quero beber qualquer coisa. Disse que sim.  Começamos todos a beber juntos, mas entretanto as mulheres da limpeza tinham chegado e, de um momento para o outro, aquilo transformou-se na festa mais divertida de Lisboa! Por pouco não me diziam: "Tome o seu banho, não se preocupe connosco!", ao passo que ao princípio o quarto era inabitável".

A. P. V.

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Actualizado em
24-Maio-2007