In: Rev. "Actual" - "Expresso", nº 1.689, 12/03/2005, pp. 18-23.

Cavalgar o tigre
PESSOA EM ÁFRICA

Texto de António Cabrita

Faz cem anos que Fernando Pessoa abandonou Durban para voltar a Portugal e os fados obstinam-se em manter encoberto o quadrante africano na sua estela. Estará na hora de afirmar que quando sobrepomos a orografia literária de Fernando Pessoa aos mapas cosmológicos que a antropologia africana tem traçado, encontramos estranhas coincidências, contágios e motivos de assombro. E que o chão onde o poeta intervala, passo a passo, é afinal mais negro do que parece. Sobrevoemos o território dos seus anos de formação, com a perscrutação veloz da ave de rapina. À placidez da primeira infância de Pessoa segue-se a tormenta e as geadas: órfão de pai aos cinco anos de idade, a morte do irmão Jorge um ano depois; luto que a mãe aplaina no afecto legítimo do comandante João Miguel Rosa, seu futuro padrasto, nesse mesmo ano. O jovem vate reanima com a invenção do seu primeiro «amigo imaginário»: o Chevalier de Pas, que «lhe escreve» umas cartas. Mas a vida não pactua e a loucura da avó paterna, Dona Dionísia Estrela, para usarmos um português policromado à altura do Chevrolet de Álvaro de Campos, põe o pé no acelerador.

A casa da Rua de São Marçal começa a ser habitada pelos fantasmas a quem a avó dirige «intermináveis perorações permeadas de obscenidades» (Ángel Crespo). E um dia o caldo entorna-se, Dona Dionísia deixa-se de intermitências e fica tão «fora de si» que a mãe de Fernando se decide pelo seu internamento no asilo de Rilhafoles. Isto após meses de uma compostura destrambelhada, com «a criança a assistir». Supomos que Fernando aliviava esta crispação latente recebendo umas cartas do seu amigo Chevalier de Pas. O episódio da loucura da avó sulcou fundo em Fernando, que tomou para si o sentimento da loucura como um destino tão funesto como inevitável, o que acentua numa nota em inglês que Ángel Crespo situa à volta de 1909: «Um dos males do meu espírito — e é de um indizível horror— é o medo da loucura, que é já a loucura». Em 1896, meses depois do internamento da avó, está em Durban, na África do Sul, onde João Miguel Rosa fora colocado como cônsul. Durban era uma cidade recente (fundada em 1846), arrancada aos pântanos e à pródiga vegetação subtropical e com uma baía por assorear, à qual só acostam baleeiros e barcos de pesca.

   
  A primeira casa de Fernando pessoa em Durban, na Ridge Road, um lugar pouco civilizado.  

A PRIMEIRA casa dos Rosa situava-se em Ridge Road, que — segundo H. D. Jennings — era à época «um lugar muito pouco civilizado, para pessoas que acabavam de chegar a África». Seria a casa colonial que imaginamos rodeada de sebes de caniço, mangueiras, palmeiras palhotas ou casas de adobe e colmo, em cujas varandas se ouvia o mar entrecortado com o ritmo dos pilões e de alguns cantos pagãos, a imagem que nos sugere a expressão de espanto de Jennings. Mudariam depois para uma outra casa do bairro comercial, mas as primeiras impressões estão tatuadas na retina e no coração de Pessoa (tal como as primeiras tempestades tropicais, que o levam a um pânico de borrascas nunca mitigado).

EM 1899, depois de ter frequentado uma escola de freiras irlandesas, Pessoa é matriculado na Durban High School, um sóbrio edifício de tijolos vermelhos e arcadas ao longo da fachada, onde se esmerou numa educação o mais vitoriana possível. Em breve se destaca pelo aprumo e nas matérias curriculares, aliás adiantando-se dois níveis em relação aos rapazes da sua idade. E, pelo que o próprio relata, já nesta altura os seus gostos diferiam dos dos seus colegas. Fernando abominava a literatura para «jovens» e o espalhafato das aventuras que exigiam alguma performance física: «Não era atraído pela vida sã e natural. Aspirava, não ao provável, mas ao incrível; não ao impossível teórico, mas ao impossível em si».

EM 1901 acabada a sua escolaridade e como o padrasto obtivera um ano de licença, a família embarca para Lisboa. Com eles viaja também o cadáver da pequenita Madalena Henriqueta, sua irmã, nascida em 1897 e finada de véspera. Em Setembro, Pessoa regressa sozinho à capital de Natal, no vapor alemão «Herzog». Tem catorze anos, uma ramagem de mortos sobre os ombros, um isolamento que a sua timidez não quebra, nem quando se exprime com a enfática locução de um futuro locutor da BBC —     e quem sabe o que imagina um rapaz dado aos prodígios da mente e fechado na cabine de um navio durante semanas. De qualquer dos modos, esta segunda estada em Durban trará enigmas que levedarão, a meu ver, no poeta em delta que Fernando se tornará. No que ratificamos Alexandrino E. Severino (Fernando Pessoa na África do Sul, edição da D. Quixote, 1983): «A partir de 1903, contudo, quando do seu regresso a Durban, depois de uma ausência de um ano em Lisboa e Açores, houve uma modificação na vida do poeta que, apesar de indefinida, deve ter sido altamente significante para o desenvolvimento da sua personalidade». Já vimos que fora um período difícil. Abandonara o curso clássico do liceu de Durban para matricular-se à noite numa escola comercial de nível elementar (primeiro ciclo).

REFERINDO-SE a este período, Fernando Pessoa anotou anos depois em um caderno escolar: «Bom foi para mim e para os meus que até à idade de quinze anos permaneci sempre em minha casa entregue sem revolta à minha velha maneira de ser reservada. A essa época, contudo, fui enviado para uma escola longe de casa e então o novo ser que eu tanto temia se manifestou e tomou forma humana». Muito embora não possamos precisar o que lhe acontecera, o novo ser de que Fernando Pessoa se sente possuído desabrocha em actividade artística. Que susto persegue Pessoa, ou o visita? Clifford Geerdts, seu colega de Durban e seu amigo natural pela inteligência e aproveitamento escolar, lembrou a Hubert Jennings, em 1964, que, estando em Oxford a estudar, recebeu uma carta de um suposto psiquiatra de um senhor Fernando Pessoa, que o sondava a respeito da lucidez do seu cliente e sobre que ideia fazia do seu comportamento em Durban. Outra carta semelhante recebeu Ormond, outro amigo de Durban, com o mesmo teor e inquirição. Geerdts adivinhou que a carta era do próprio Pessoa e ter-lhe-á respondido evasivamente.

A família em Durban: a mãe Maria Madalena Nogueira com a filha Madalena Henriqueta ao colo, Fernando Pessoa, a irmã Henriqueta Madalena, o irmão Luís Miguel e o padrasto João Miguel Rosa.

Jenning, entretanto, descobriu outros dois documentos referentes a este «caso», uma nota em francês que pretendia ser um relatório psiquiátrico sobre um paciente chamado «P», redigido com a letra de Pessoa; o segundo documento é uma resposta do professor Belcher, de Durban, a um pedido de informações emanado pelo mesmo suposto psiquiatra de Lisboa. Como escreve Crespo, há razões para crer que Fernando Pessoa foi compelido a esta correspondência não apenas por uma bizarra inspiração lúdica mas «porque atravessava anos difíceis durante os quais ele pensava efectivamente estar à beira da loucura». Sim, Pessoa desejava avaliar, com tão rebuscado artifício, se se notava e «via» nele a perturbação que transportava, o segredo que o fendia.

QUE SEGREDO? Acresce a estes dados uma precoce e singular apetência para a literatura esotérica e as leituras heterodoxas, desde o princípio da sua carreira literária, e manifestamente desde o pacto firmado por Alexander Search, «residente do Inferno» e seu semi-heterónimo (curiosamente dado como nascido no mesmo dia e ano de Pessoa), com Jacob Satanás. E como explicar o poema em inglês, «Anamnesis», escrito em 1901 — ano da morte da irmã Henriqueta — e onde se lê: «Somewhere where I shall never live / A palace garden bowers / Such beauty that dreams of it grieve.// There, lining walks immemorial, / Great antenal flowers / My lost life, before soul, recall. // There I Was Happy and the child / That had cool shadows / Wherein to feel sweetly exiled. // They took all these true things away!» / O my lost meadows! / My Childwood before Night and Day!»? É mais do que uma súmula de leituras platónicas, não se escreve «My lost life, before soul, recall», nem «My Childwood before Night and Day!» aos 13 anos por mero mimetismo literário, sobretudo quando o futuro confirma o génio e que não se é um literato. Que abalo empurra o autor para o seu destino? Abrem-se aqui dois aspectos. Primeiro, apesar da presença da morte que lhe agoirou infância e anos de formação, um interesse por temas esotéricos e heterodoxos de comum só ocorre depois de um primeiro impacto no «numinoso». O numinoso designa uma qualidade do vivido que nos desvela uma outra dimensão, uma realidade que transcende o horizonte da consciência ordinária. Esta experiência pode ser uma experiência de terror e dilaceramento: só em aceitando-a, como se aceita o luto, se volve a ferida, o impasse, na «passagem» que permite a conversão, a metanóia — uma mutação da vida e da consciência. Como na alquimia, uma calcinação precede a «conjunctio» que significa literalmente a «união de opostos» e só aí a «alma» se liberta da sua coagulação e paralisia, i. e., como diz Titus Burckhardt, das garras do ego e da mente intelectual. É por isso que não se pode ter uma «propensão intelectual» pelo esotérico ou pelo hermetismo: este é vivido, buscado, «de dentro», e absolutamente vedado para «os de fora», para os que nunca afrontaram a presença do incondicionado. O próprio Fernando Pessoa, num escrito intitulado «Um Caso de Mediunidade», releva que uma das condições básicas para adquirir os dons da mediunidade é, taxativamente: «O estado de depressão produzido por: 1) desgostos e perturbações várias, 2) a própria perturbação mental causada pelo aparecimento dos fenómenos ‘mediúnicos’, tanto por esse aparecimento, como pelo conteúdo das chamadas ‘comunicações’, e 3) o conflito entre tudo isto e o basilar e normal espírito de lucidez, lógica e necessidade de precisão científicas (...)». Depois, a inacreditável denegação com que Pessoa silenciará a sua experiência africana, o clamor das suas paisagens, do seu espaço (e Pessoa é um poeta onde abunda a evocação espacial), a força dos seus contrastes; o silêncio suspeito com que abdica de um testemunho sobre vizinhanças tão claramente nos antípodas da sua educação europeia — é uma atitude inverosímil em alguém da sua inteligência, sensibilidade e probidade, a não ser que algo, um transtorno mais forte que a razão, se tenha passado. Aliás, o «profeta» do «sensacionismo», um homem que escreve, pela voz de Álvaro de Campos, «Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir. / Sentir tudo de todas as maneiras. / Sentir tudo excessivamente, / Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas / E toda a realidade é um excesso, uma violência, / Uma alucinação extraordinariamente nítida (...)», cala voluntariamente sobre África? Só acredita nisso quem nela nunca sentou as suas próprias sensações.

É AQUI que entra a antropologia africana. Madre Teresa dos Anjos era habitada por sete demónios, cada um do seu estilo. Ainda hoje o maior crime para os cristãos, o pacto com o espírito possessor, é o maior dos bens para o tsonga, a etnia do Sul de Moçambique. Lê-se no livro da antropóloga Alcinda Manuel Honwana, Espíritos Vivos, Tradições Modernas, Possessão de Espíritos e Reintegração Social Pós-Guerra no Sul de Moçambique (Ela por Ela, 2003): «(...) ao analisar a politica de identidade na África pré-colonial, Ranger argumentava que, longe de estarem ligados a ‘uma única identidade tribal, a maior parte dos africanos entravam e saíam de múltiplas identidades, podendo definir-se a dado momento como súbditos deste chefe, noutro como membros daquele culto, num outro momento como parte deste clã e noutro, ainda, como iniciados daquela corporação profissional. Estas redes sobrepostas de associação e intercâmbio estendiam-se por várias áreas’».

E ESTA FLUIDEZ da identidade sobe de grau no caso da possessão pelos espíritos — de ancestrais que se tornaram deuses ou de inimigos mortos sem os devidos ritos funerários cumpridos. Duma forma grosseira, diga-se que no quadro do pensamento tradicional, não se verifica, tanto na zona do Sul de Moçambique, entre os tsongas, como em Durban, com os zulus, o sentimento de uma separação entre os homens e a divindade — «em virtude de se conceber que os agentes espirituais se apoderam dos corpos e das faculdades, vivem e se desenvolvem nas pessoas» (Honwana). A volição, nestas áreas, é uma modalidade da incubação com o sonho, o transe, os mitos e a vida material mesclados num tipo distinto de racionalidade. Neste preciso momento em que escrevo, 30 de Janeiro, saiu no semanário «Domingo», de Maputo, uma reportagem enorme, de Bento Venâncio, sobre o canhoeiro misterioso (uma árvore de grande porte) que em Magude, a cem quilómetros de Maputo, «conserva virtudes humanas, ‘passeia-se à noite’ e ‘não aceita’ que um dos seus ramos seja arrancado de qualquer maneira». Compreende-se então que os mundos de Mia Couto não existem só nos livros.

   
  Centro de Durban na viragem do século XIX para o século XX.  

ATÉ À INVASÃO dos nguni, um ramo dos zulus, no século XIX, os tsonga não conheciam a possessão por transe. Entre os zulus, os tais vizinhos bárbaros de Pessoa, é comum, tal como o carácter múltiplo da possessão. O que significa que cada veículo corporal pode ser tomado por vários espíritos e enredar-se numa constelação linhageira, num arquipélago identitário. Como se coubesse a cada humano incorporar a sua genealogia e às vezes a de outros — habitualmente misturam-se os espíritos locais e os estrangeiros. Isto deu origem a um novo tipo de curandeiro, o «nyamusoro», cuja institucionalização subentende «a aceitação implícita do carácter transcultural da posse pelos espíritos» (Honwana). O «nyamusoro» incorpora os espíritos «tinguluve» (tsonga), e os espíritos «vanguni» (de origem nugni) e «vandau» (de origem nnau), que os nguni trouxeram consigo, a fim de poder tratar «todos» os casos, tendo em conta as diferentes etnias. Será preciso dizer que cada espírito tem a sua caracteriologia e às vezes a sua própria língua? Henri Junod, etnólogo suíço que palmilhava a África do Sul e Moçambique precisamente na altura em que Pessoa viveu em Durban, estudou os povos bantu (que englobam todas estas etnias que temos referido), e precisa quanto aos cantos, nos rituais de exorcismo: «Estes cantos são, geralmente, em zulu e afirma-se que ainda quando o paciente não fale essa língua torna-se capaz de se servir dela nas suas conversações, por uma espécie de milagre das línguas» (Usos e Costumes dos Bantu, vol. 2, pág. 419, Arquivo Histórico de Moçambique, 1996).

E QUE DIZER quando se constata, conforme escreve Alcinda Honwana, que «os diversos tipos de espíritos, que frequentemente coexistem no mesmo indivíduo possuído, inter-relacionam-se uns com os outros» e estabelecem relações de poder, como as que o mestre Caeiro estabelecia com os restantes heterónimos? Não é claramente a etiologia da possessão que nos interessa mas a estranha coincidência entre os seus mecanismos e o dispositivo da heteronímia em Pessoa, que passeou em África dez anos da sua porosidade e inteligência. Era esta a realidade a que assistia entre a criadagem, no vozear que polvilhava as cercanias (portas-meias, segundo Hennings) da casa de Pessoa. Dez anos que calou, num mistério nunca profanado. Diga-se previamente que o transe, ou a possessão pelos espíritos, não reveste sempre uma forma espectacular manifesta. Esclarece Gerrieter Haar, referindo-se à possessão na Zâmbia (L’Afrique et le Monde des Esprits, Karthala...), que «nos homens, em particular, tende a tomar uma forma latente e pode nunca se manifestar abertamente». Na esteira da ‘histeria branda’ autodiagnosticada por Pessoa em carta para Adolfo Casais Monteiro, de 13 de Janeiro de 1935: «A origem dos heterónimos é o fundo de histeria que existe em mim (...) residindo na minha tendência orgânica para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos (...) fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher (...) seria um ataque para a vizinhança. Mas sou homem — e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia...». «Controle» corroborado pelo que se explicita no clássico de Ioan M. Lewis (Êxtase Religioso, Editora Perspectiva, 1971): «...em muitas culturas onde a possessão por espírito é a interpretação única ou principal do transe, a possessão pode ser diagnosticada muito antes do verdadeiro estado de transe ser atingido.»

QUAL PODE TER SIDO o «mistério africano» de Pessoa? Imagino a cena. É noite e Pessoa vai entregue aos devaneios, a caminho da escola comercial — uma caminhada e tanto por ruas semi-construídas e alguns atalhos onde o negrume da vegetação se mistura aos barracos em madeira e colmo, rasgados pelo bruxuleante crepitar das fogueiras. É um adolescente com uma cabeça que ferve em pouca água — felizmente refrigerada por uma fantasia que lhe amortece os sinais de uma emocionalidade à beira de desmoronar. Como tantas vezes, às vezes corta a eito, pelos sítios mais sombrios, a ruminar em versos alheios, pletóricos e enigmáticos, como estes de John Donne, «This ecstasy doth unperplel. / We said, and tell us what we love; / We see by this it was not sex, / We see we saw not what did move». De repente eclodem tambores, nas suas costas. Fernando sabe — já se informou, discretamente, nos bares de baleeiros, no cais — que o exorcismo pelo toque dos tambores é o método clássico para expulsar os espíritos, e que cada espírito tem o seu ritmo. Desde miúdo que o «sente», mas agora as peles percutem nas suas costas, numa clareira que se abre atrás duma caniçada. Resolve ir espreitar. Vê um pequeno grupo de homens em redor de uma fogueira, evocações que não compreende, cantos e inexplicáveis gestos do curandeiro e duas mulheres que estão convulsas, enquanto os tambores lhe burilam o coração. Sai detrás do arbusto e aproxima-se, hipnoticamente, fascinado, a medo. Senta-se, a cinco metros da fogueira, ninguém parece dar por ele. A cerimónia sobe de tom e os tambores retumbam na consciência impressionável de Pessoa. A noite está quente, mas o seu suor começa a esfriar nas omoplatas como uma língua de cobra, O curandeiro ergue as mãos cheias de sangue. E, de repente, «algo» entra nele, ou sai, ou flui, numa alteração subitânea da sua percepção e consciência. Não interessa se foi «possuído», se teve simplesmente uma experiência de «não-dualidade» para a qual a sua educação, lógica e embebida em senso comum, não o preparara. Quando ocorre uma situação desse tipo em quem não a previra, nem para tal fora iniciado, instala-se a «inquietante estranheza a si mesmo» («Das Unheimliche») a que Freud alude, um estudo de desconexão motivada por uma ausência de categorias para traduzir a inexorável sensação de que o exterior e o interior são inusitadamente simbióticos; com a supressão das marcas que colocava o sujeito face ao objecto e o sobressalto que daí advém. Pode então o «sujeito», de repente, ouvir as vozes dos outros como se emanadas «de dentro» de si, do jorro de vibrações que o inunda — e o susto é brutal, pois confunde essa plenitude saturada com a vacuidade.

IMPREPARADO para detectar de imediato os padrões-que-religam e para afastar os panejamentos pesados de um inesperado sentimento de irrealidade, essa nova forma de ler o real solta-lhe os ferrolhos de todas as palavras e os significantes ejectam-se aflitos e doravante flutuantes. Há uma cesura, a que decorre do «conflito entre tudo isto e o basilar e normal espírito de lucidez». Neste sentido se apura a veracidade da dissociação que Pessoa tão brilhantemente descreveu numa fala da Terceira Veladora em «O Marinheiro»: «Minha irmã, não nos devíeis ter contado essa história. Agora estranho-me viva com mais horror. Contáveis e eu tanto me distraía que ouvia o sentido das vossas palavras e o seu som separadamente. E parecia-me que vós, e a vossa voz, e o sentido do que dizíeis, eram três entes diferentes, como três criaturas que falam e andam». Vaticina Gilbert Durand em A imaginação Simbólica, a meu ver, com rigor: «A doença mental reside justamente numa perturbação da re-presentação. O pensamento doente é um pensamento que perdeu o ‘poder da analogia’ e no qual os símbolos se desfazem, se esvaziam de sentido». O poder da analogia só se exerce com um mapa à frente e coordenadas psíquicas. Quando estas se extraviam, a realidade estilhaça-se, sem nexo, «partes sem um todo» como diz Pessoa — até que aquela se reordene, reencontrando o seu intérprete. Aí o pensamento volta a reencontrar a liberdade da transumância e o seu «guardador de rebanhos». A experiência da «não-dualidade», ou a de uma «consciência alterada», se impreparada, pode desencadear uma cisão devastadora ou uma sensação de «esburacamento» da consciência onde, como nos «buracos negros», tudo se absorve — «espíritos alheios)), se a oportunidade proporcionar, ou o simulacro disso; os analistas referem a existência de um simulacro inconsciente quase constante (cf. Possessions et Simulacres, Jacques Bourgaux). E quem a sofre torna-se, como no drama estático «O Marinheiro», um Velador, um interlúdio da morte: lembremos, «(...) o novo ser que eu tanto temia se manifestou e tomou forma humana». Julgo que esta hipótese torna mais transparentes muitos versos da obra ortónima «Sinto de repente pouco, / Vácuo, o momento, o lugar. / Tudo de repente é oco — / Mesmo o meu estar a pensar. / Tudo — eu e o mundo em redor — / Fica mais do que exterior». «Além-Deus, I»; «Vasto por fora do Vasto: Sem ser, que a si se assombra...», .Além-Deus, II»; «Venho de longe e trago no perfil, / Em forma nevoenta e afastada, / O perfil de outro ser que desagrada / Ao meu actual recorte humano e vil (...) «Passos da Cruz, VI»; «Hoje sei-me o deserto onde Deus teve / Outrora a sua capital de olvido...», «Passos na Cruz, X»; «Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela / E oculta mão colora alguém, em mim.», «Passos da Cruz, XI»; «Emissário de um rei desconhecido, / Eu cumpro informes instruções de além, / E as bruscas frases que a meus lábios vêm / Soam-me a um outro e anómalo sentido...», «Passos da Cruz, XIII»; «(...) / A noção de mover-me / Esqueceu-se do meu nome. // Na alma meu corpo pesa-me. / Sinto-me um reposteiro / Pendurado na sala / Onde jaz alguém morto. // Qualquer coisa caiu / E tiniu no infinito»., «A Múmia, I»; «De quem é o olhar / Que espreita por meus olhos?», «A Múmia, III»; «Sou já o morto futuro. / Só um sonho me liga a mim — O sonho atrasado e obscuro / Do que eu devera ser — muro / Do meu deserto jardim.», «O Andaime»; «Não dormes sob os ciprestes, / Pois não há sono no mundo. / ...................... / O corpo é a sombra das vestes / Que encobrem teu ser profundo.», «Iniciação». E se deixássemos o demónio da interpretação e lêssemos estes versas de forma «literal»? Como se lê em «Para Além Doutro Oceano», do sigiloso heterónimo C. Paceco: «Sentir a poesia é a maneira figurada de se viver / Eu não sinto a poesia não porque não saiba o que ela é / Mas porque não posso viver figuradamente». Paradoxo que Jorge de Sena ilumina pertinazmente: «A poesia ortónima não é a poesia de uma personalidade, e sim a de uma personalidade que analisa a sua inexistência, precisamente porque as outras lhe existem» (in O Heterónimo Fernando Pessoa e os Poemas Ingleses que Publicou). Parecem-me por isso adequadas estas formulações de Eduardo Lourenço, no recente O Lugar do Anjo, «o ‘eu como ficção’ não é para Pessoa um achado literário — é a realidade e o lugar de uma busca, o signo de um sofrimento», (...) «De outra forma não seria possível compreendermos o eu empenhadamente na criação de outros eus marcados como o dele, por idêntica vacuidade. Aquilo que Pessoa quer convencer-se, é da realidade do mundo exterior(...)». Haverá realidade do mundo exterior para «o possesso», em África? É duvidoso, e tudo se franja de símbolos na rodada saia de Maya, a ilusão. Com Caeiro, que não emergiu à cautela como um periscópio, mas rompeu águas de uma vez como as crianças de algumas tradições orais africanas que se cansaram da «luz negra» do útero e resolvem vir cá fora banhar-se na luz do dia, as clivagens conheceram a cicatriz.

A ERUPÇÃO de Caeiro fez Fernando Pessoa «cavalgar o tigre» — formula-se no zen: se cavalgamos o tigre impedimo-lo de lançar-se sobre nós — da «loucura», exorcismou-o. Chegou então à arte de esvaziar (a «doença dos símbolos»). Caeiro fê-lo passar de figurante temeroso a demiurgo e orquestrar o «adorcismo». O adorcismo designa o acto de convocar periodicamente os espíritos e de os socializar, baptismar, pelo ritual. O medo transfigura-se em sentido, em fruição de jogo — convertido o caos em linguagem. Não esqueçamos que o actor nasce da morte da possessão efectiva.

VIRIA DEPOIS a crise de 1916, empurrada pela doença da mãe e o suicídio de Sá-Carneiro, mas houve um momento em que Pessoa pôde dizer como Pascal: «Le monde me comprend, et m’engloutit comme un point, mais je le comprends». Situou-se, finalmente, no espaço. Nesse espaço vasto que é um sistema de pontos diferentes (diria Bourdieu). Como em África, o mais vasto dos espaços porque neste continente a topologia não prescinde do invisível: «A casa branca nau preta // Felicidade na Austrália...»

António Cabrita

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20/04/2005