In: Separata da revista "Aveiro e o seu Distrito", 1956 (?), págs. 4 a 12.

Conferência de Jaime Cortesão

Comove-me profundamente a manifestação afectuosa que acabam de me fazer.

Comoveram-me as palavras do senhor Morais Sarmento, sinceramente o digo.

Não me lembrava já da sua recente camaradagem.

Mas no encontro tive um grande prazer.

Comovem-me também, mas por maneira diversa, as palavras do Dr. Mário Sacramento. Com todo o gosto, fazer a minha história desta maneira, creio estar ouvindo antecipadamente o meu elogio fúnebre.

E na verdade choca-me. Porque ainda me sinto vigoroso para interpretar, aqui, os sentimentos do povo e os sentimentos do povo de Aveiro numa das suas maiores datas.

Quero agradecer também ao público que me escuta e no meio do qual vejo amigos que vieram de longe para ouvir-me, agradecer-lhes comovidamente a honra que me dão. E receio muito desiludi-los, talvez eu não seja a pessoa mais própria para falar hoje aqui, mas, velho que sou, cansado, atribulado por doenças e aflições, entendi, que convidado pela comissão promotora das homenagens e da celebração da data do 16 de Maio, era meu dever comparecer aqui, era meu dever em nome dos Liberais percorrer, em nome dos democratas portugueses vir aqui homenagear a cidade de Aveiro. E aqui estou; sem prazer, digo. Já não me vangloria ver uma multidão com sede das minhas palavras. Mas sinto, sim, a alegria de quem cumpre um dever e, velho embora, vem aqui, fiel à sua velha fé de democrata, afirmá-la mais uma vez com todo o vigor de que é capaz.

Senhor Presidente, Senhores membros da Mesa, minhas senhoras e meus senhores.

 

Quando, a 16 de Maio de 1828, se sentiram os primeiros sintomas do absolutismo no governo de D. Miguel, estalou uma revolução em Aveiro, que, agora de desastre em desastre, logo de triunfo em triunfo, e, no intervalo, pisando um calvário de aflições, tragédia, horror e lances de epopeia, acabou por implantar, com a Convenção de Évora-Monte, o liberalismo em Portugal e por um século.

Muitos dos que então entraram nessa revolução vieram a pagar com a cabeça no cadafalso, com a perda de bens, com a prisão, com o sofrimento, com a miséria, o crime de terem sido fiéis às suas ideias e de lutar por elas. Foi pois desta terra regada pelo sangue e as lágrimas dos mártires, foi deste céu onde ainda hoje drapeja a bandeira da liberdade, que partiu o movimento de resgate que moldou uma face nova a Portugal e para todo um século.

Vejamos rapidamente como se passaram os factos. Falecido D. João VI, em 1826, passado mês e meio, D. Pedro, então Imperador do Brasil, renunciou à coroa de Portugal na pessoa de sua filha D. Maria da Glória e outorgou uma carta constitucional a Portugal na intenção de nomear regente seu irmão D. Miguel, que casaria coma princesa D. Maria desde que jurasse a Carta. Estava D. Miguel em Viena de Áustria, jurou a Carta, jurou a Carta não obstante já então conspirar contra as intenções de seu irmão. Passado pouco tempo, celebrava os esponsais com sua sobrinha, que era representada pelo Barão de Vila Seca. No ano seguinte veio para Portugal. Reunidas as Câmaras no Palácio da Ajuda, que ele elegera para sua residência, jurou novamente e solenemente, perante as Câmaras, fidelidade à Carta, declarando, palavras textuais, que reconhecia a legitimidade de D. Pedro IV e de sua sobrinha D. Maria como soberanos legítimos de Portugal. Não obstante, passados poucos dias deste juramento solene e público, ele começava a trair a sua palavra e, imediatamente, tratou de deitar por todos os meios mão do Poder. Demitiu da administração pública todas as pessoas que ocupavam lugares importantes, que fez substituir, transferiu oficiais, nomeou novos comandantes para os corpos, instaurou a censura, aumentou em quantidade enorme a polícia e, também imediatamente, inaugurou um sistema de repressão, o mais violento / 6 / de que há memória na História de Portugal, contra os seus inimigos políticos.

Volvidos dias, ele convocava, suprema irrisão, em nome da Carta Constitucional, mas com desprezo das Câmaras, que eram a base do regime, os velhos estados do reino, com a indicação, com a exigência de que só fossem nomeados representantes para essas novas Câmaras pessoas escolhidas a dedo mas que fossem inteiramente tementes a Deus e obedientes ao trono. É claro, reunidos os três estados, sob o peso da ameaça e pelo suborno, e escolhidos a dedo os menos capazes mas os mais subservientes, os mais falhos de carácter, podia adivinhar-se o que havia de sair daquela Câmara. E saiu, em Julho de 1828, a anulação da Carta e a escolha do Sr. D. Miguel I para Rei absoluto.

Já então, era tamanha a atmosfera de terror no país, desencadeavam-se tão precipitadamente os desmandos contra os liberais que as consciências livres, isentas, puras, que abundavam no país, começaram a sentir-se no desejo e na necessidade de reagir. É claro, como sucede sempre àqueles que ligam, que unem à intuição o medo, começaram a fugir para o estrangeiro. Mas, as consciências mais ardentes sentiram a necessidade de lutar. Faltava-lhes o mando, faltava-lhes uma consciência mais ardente que fosse capaz de unir as vontades e lançá-las na acção. Esse homem existia e habitava aqui próximo, em Verdemilho, chamava-se Joaquim José de Queirós, era um antigo desembargador da Baía e então membro das Câmaras que iam ser abolidas.

Joaquim José de Queirós foi o verdadeiro chefe da revolução e foi um verdadeiro chefe da revolução porque encontrou em Aveiro o ambiente eminentemente propício, encontrou magníficos auxiliares e uma sociedade que correspondia inteiramente aos seus anseios e às suas directivas.

Não que não houvesse aqui legitimistas, mas os homens mais activos, as consciências mais ardentes, as vontades mais decididas e capazes de sacrificar-se pertenciam ao partido liberal. Contava-se entre eles João de Morais Sarmento, que era então sargento de Caçadores 10 mas uma destas almas devotadas e ardentes que se tornou imediatamente o auxiliar de Joaquim José de Queirós.

Eu não lhes vou fazer a história da Revolução. E a história das lutas liberais, que levam seis anos, não se metem, não se encerram no espaço de uma conferência, que seis anos de lutas épicas, de miséria, de tirania, de sofrimento, de exílio, de derrotas, de vitórias, que tantas se desenrolaram durante este período. Vou, sim, dar-vos uma ideia muito rápida do que foi esse movimento. A revolução de 16 de Maio fracassou nos primeiros dias. E fracassou, porquê? É que ninguém pode lutar com um vulcão, ou com um terramoto, e o que de Lisboa subiu para o Norte não eram as forças de um exército, eram a lava incandescente, a lava formada por todos os instintos ferozes do homem primitivo, mas que se tinham amontoado no coração das massas ignorantes envilecidas por três séculos de absolutismo. As forças liberais tiveram que recuar para a Galiza, aí embarcar para a Inglaterra, da Inglaterra para a Terceira e da Terceira voltaram a Portugal para desembarcar em Julho de 32 nas Praias de Pampelido.

O que foi esse filme movimentado e dramático conta-o um dos contemporâneos e testemunha dos acontecimentos, o historiador Luz Soriano. Filme dramático, com efeito, em que aparece o êxodo de milhares de homens, guiados por uma figura extraordinária, destas que lhes peço para guardarem na vossa memória, o Major Sá Nogueira, mais tarde mutilado no cerco do Porto, mais tarde Marquês de Sá da Bandeira. Homem que faz honra à Humanidade e aos Portugueses, porque ele foi a alma, a consciência, o mando que levou estes milhares de homens para o êxodo através de dificuldades terríveis e que pôde conservar a unidade dessa falange que veio a ser o núcleo mais importante de sete mil e quinhentos bravos do Mindelo.

Nas páginas de Luz Soriano aparecem, com pormenores por vezes fastidiosos mas sempre com perfeita lealdade e fidelidade, os acampamentos álgidos sob a chuva torrencial nas montanhas fronteiriças da Galiza. À avareza dos aldeões que se aproveitaram da miséria dos soldados para lhes vender a peso de oiro o pão que eles comiam, a prepotência das autoridades espanholas, que abusaram infamemente da situação dos emigrados, vendidos como estavam a D. Miguel para roubar, é à palavra, ao regimento não só a caixa da tropa mas os próprios haveres pessoais.

E depois, o embarque de 25.000 homens famintos, esquálidos, cobertos de farrapos e de piolhos, para a Inglaterra.

A vida no célebre barracão de Plymouth, barracão à beira-mar, destinado apenas a guardar madeira de construção naval, em cujos baixos entrava a maré e no primeiro andar se amontoavam e dormiam, quando dormiam, os emigrados portugueses, mergulhados na neblina do mar e ao som dos ventos que entravam pelas frinchas das tábuas mal unidas do barracão e levantavam dentro, com as palhas do chão, com a neblina, no mesmo torvelinho ardente, as recordações das insones imagens da pátria que eles entreveriam ao longe através das tábuas da forca.

Pouco depois, renascia a esperança, formavam-se novos batalhões, os batalhões embarcavam para a / 7 / Terceira, repeliam o assalto da esquadra miguelista, conquistavam todo o arquipélago dos Açores.

   
 

Jaime Cortesão cumprimentando João de Morais Sarmento, descendente de um dos supliciados do 16 de Maio.

 

Depois, D. Pedro, que renunciara o trono Imperial do Brasil, vem à Terceira tomar o comando das tropas e formar seu Governo, o seu Governo para a qual entra imediatamente um nome que todos nós devemos guardar também na memória com veneração: o de Mousinho da Silveira.

7500 bravos do Mindelo saltam a 7 de Julho de 32 nas praias de Pampelido. Conta-se que muitas deles se lançaram por terra, chorando, para beijar a areia da costa, a areia, o chão da pátria portuguesa.

Eu compreendo o que é essa emoção e compreendo muito mais e todos o compreendemos quando soubermos o que entretanto se passara em Portugal. Porque, se os emigrados tinham sofrido, os que ficaram cá sofreram mais. A reacção mais brutal, repito, que jamais se desencadeou em Portugal, acirrada pelos sermões de maus padres e maus frades desencadeou-se sobre os liberais, desencadeou-se em primeiro lugar, de maneira oficial. A célebre alçada do Porto começou a julgar os homens que tinham entrado na revolução. Foram muitos condenados à morte e a 7 de Maio foram justiçados os dez primeiros, pouco depois mais alguns.

Rezavam as sentenças que esses homens, cujo crime era de ter ideias próprias políticas contrárias ao Governo absolutista e ter lutado por elas, esses homens perderiam todos os direitos, honras e privilégios, seriam levados pela cidade com baraços e pregão e depois conduzidos à forca onde seriam enforcados para depois lhes cortarem a cabeça e as cabeças serem espetadas num tronco nos lugares onde havia sido praticado o delito.

Dessas cabeças couberam seis ao distrito de Aveiro, uma delas foi a do desembargador Gravito, a outra a de João Morais Sarmento. No dia 7 de Maio, pois, no Porto, deu-se o suplício dos condenados. Foram levados pela cidade, as tropas abriam e fechavam o cortejo, no meio iam eles vestidos com a alva e o capucho do suplício e embrulhados na cinta pelo cordão com que haviam de ser enforcados. Junto ia a tumba ou as tumbas onde os restos mortais haviam de ser conduzidos. Os frades salmodeavam de uma maneira lúgubre e atrás do povo entoavam o miserere. Foram assim conduzidos para a Praça Nova, para duas forcas e, durante 3 horas, durou este espectáculo. Os pobres condenados, vivos ou agonizantes, eram arrastados pelas escadas para a forca; aí o carrasco embrulhava-os rapidamente no capucho, traçava-lhes / 8 / a corda ao pescoço, saltava sobre eles, eram arrastados para baixo, decapitava-se-lhes a cabeça.

E, Senhores e Senhoras, havia homens que riam, mulheres estavam à janela e davam vivas a D. Miguel e à santa religião.

Houve homens, houve portugueses que misturaram o nome de Deus com este crime. Mais uma vez a religião assistiu ao Estado para exercitar os piores crimes da tirania.

Não parou por aqui o horror. As cabeças desses homens foram levadas quatro para Aveiro, duas para a Feira e uma para Albergaria-a-Velha. Em Aveiro, quiseram alguns miguelistas que a cabeça de João de Morais Sarmento fosse espetada num pinheiro em frente da casa onde morava sua mãe. Houve alguns legitimistas que guardavam ainda um pedaço de humanidade no coração que se opuseram a isso.

As lojas, as casas na cidade, tinham fechado. Foi preciso ir buscar carpinteiros à força para preparar os madeiros onde se havia de espetar as cabeças. Mas, em Albergaria-a-Velha, a cabeça de um dos justiçados foi posta em frente da casa dos pais. E eu tremo, eu sinto o arrepio nas carnes, eu sinto-me envergonhado de terem sido portugueses capazes desta infâmia. (Palmas)

Não parou por aqui o suplício dos Liberais que ficaram em Portugal. Eram perseguidos a cacete nas ruas, eram levados para a prisão, na prisão violentados de toda a forma e havia sempre um padre ou um frade incitando, pedindo que os liberais fossem levados para a forca e mais ainda como eu vos direi.

Entretanto, as tropas desembarcadas em Mindelo avançavam sobre o Porto, dava-se o cerco do Porto. Passado menos de um ano a surtida do Duque da Terceira sobre o Algarve, a sua marcha fulminante sobre Lisboa, a entrada em Lisboa passado um mês, depois da derrota de Teles Jordão na Cova da Piedade. Vêm depois as batalhas de Pernes e de Asseiceira até à convenção de Évora-Monte e o Liberalismo foi implantado em Portugal.

Como explicar esta rápida vitória, quando os liberais eram 7.500 e D. Miguel dispunha de 80.000 homens? Oliveira Martins, no «Portugal Contemporâneo», referindo estes factos mostra-os como um absurdo, não que ele o diga, mas o que ele diz é que D. Miguel, valentão, brutal, homem com tinetas e garbos de toureiro era o ideal representante legítimo do povo português, um povo que ele considerava, totalmente ou na sua totalidade, envilecido por três séculos de inquisição, de despotismo e fradaria.

E, pergunta-se ele a si próprio, porque venceu a causa liberal? Palavras textuais: pela força das coisas e por uma série de acasos.

Tanto um romantismo serôdio, um pessimismo de escritor e um amor às tintas negras pode levar a falsear a verdade e a negar a justiça.

Não que Oliveira Martins defendesse o absolutismo, mas ele foi quase sempre mais um artista que um historiador.

Respondeu-lhe imediatamente uma das almas mais nobres e puras do Portugal desse tempo: Rodrigues de Freitas.

Já nesse tempo Herculano tinha feito a distinção, a justa distinção, entre uma populaça de facto envilecida pelo absolutismo, que era capaz de acompanhar os sentimentos dos seus mentores, os poderosos, já ele tinha feito a distinção entre essa populaça e o verdadeiro povo, aquele que trabalha e que produz. O verdadeiro povo que trabalha e que produz, que foi o que deu a vitória aos liberais.

E o próprio Herculano, o grande, o austero, o monolítico Herculano, a ele se aponta, ainda que por maneira indirecta, algumas das causas que deram a vitória aos Liberais.

Essas causas podem resumir-se da seguinte maneira.

A viciosa, a viciosíssima estrutura económico-social da Nação, formada durante 3 séculos de absolutismo, tomou-se patente, viu-se a nu, quando o Brasil declarou a sua independência. Reconheceram-se então os males, melhor, os males de que enfermava o país e também qual o remédio a aplicar.

Eu gostaria muito, por tendência de historiador, de dilatar neste momento a minha conferência para explicar-vos o que foi a formação económico-social do país durante a Idade Média, a organização democrática das classes na base do trabalho, a preponderância destas classes imprimindo directiva ao próprio Governo e destinos da Nação e como ela se transformou quando dos descobrimentos passámos às conquistas, e o espaço que teve de amparar, nutrir e guiar uma nova classe, a fidalguia guerreira que mantinha essas conquistas. Vou poupá-los a essa dissertação erudita. O essencial está dito.

A estrutura económico-social de Portugal era tão viciosa que Herculano disse: Nos vinte ou trinta anos anteriores ao Governo Liberal Portugal tinha para alimentar-se apenas o suficiente para uns tantos meses; nos últimos três meses do ano os portugueses não tinham que comer e tinham que o importar a peso de ouro.

A agricultura definhara, as indústrias tinham morrido, mercê do tratado de Methwen, e o clero, sobretudo os frades, os conventos, as ordens, tinham prosperado de maneira, que é também o testemunho insuspeito de Mousinho da Silveira, que era aliás católico, que declarou num dos seus relatórios que o clero absorvia mais, mais rendimentos que a própria / 9 / Nação, quer dizer, que o próprio Estado, e que a sua acção era tal que prejudicava em dois terços a capacidade tributária do Estado.

Para se compreenderem as medidas de Mousinho da Silveira e mais tarde de Joaquim António de Aguiar é preciso entrar na intimidade desses factos. Esse Portugal do princípio do século XIX, roído pela parasitagem fidalga e das ordens, sofre sucessivamente a catástrofe das invasões francesas. A agricultura esmorece de novo, cessam as poucas indústrias que existiam, a propriedade imobiliária devastada pelo saque e pelo fogo reduz-se ainda mais. Mas, dá-se então um caso extraordinário: verifica-se que o povo português existia, porque o povo português ergue-se como um só homem contra, os invasores, e o marechal Soult, o glorioso marechal de Napoleão, diz nas suas memórias que, ao entrar em Portugal, toda a Nação se levantou contra as forças francesas, e homens e mulheres alucinadas se precipitavam contra as baionetas e as armas de fogo com desprezo da morte. Mas esse povo, heróico mas mísero, estava então sem chefe.

D. João VI e a corte portuguesa tinham emigrado para o Brasil. E diz Herculano: Portugal tornara-se duplamente colónia. Colónia do Brasil, porque o Rei estava lá e porque se tinham invertido os papéis, e em vez de vir o dinheiro de lá, era daqui que ia dinheiro, como por exemplo 50 contos mensais para a expedição ao Uruguai. Enquanto durou essa Guerra, dizia Herculano, era colónia do Brasil e colónia da Inglaterra, porque quem governava aqui eram os ingleses, era o marechal Beresford e os seus oficiais. Governavam a Nação, diziam eles, para defender os interesses portugueses, mas de facto para defender os interesses da Ilha, para proteger a Ilha contra qualquer surpresa de invasão. E faziam-no e governavam esta colónia como os ingleses então governavam as outras colónias que tinham pelo mundo, sem respeito pelos direitos humanos, oprimindo, chamando a tropa como se fosse no seu país e, se aparecia alguma consciência pura e recta que quisesse protestar, como aconteceu com Gomes Freire de Andrade, ele mandava-lhes tapar a boca e a garganta com a corda da forca. Foi então que veio a revolução de 20, de 1820, o Rei estava fora, o Governo, o País sob a pata do estrangeiro. E esses revolucionários idealistas e cândidos fizeram uma revolução cordial, lírica, sem efusão de sangue, mas sem ir de maneira nenhuma à raiz, ao descobrimento e ao castigo das causas.

É certo que eles expulsaram os ingleses, acabaram com a inquisição, ainda então havia inquisição em Portugal, e chamaram o Rei, D. João VI. O bonachão do D. João VI voltou a Portugal, voltou a Portugal mas durou pouco, e começa então a desenrolar-se esta tragédia.

Mas voltemos novamente ao nervo lógico do que lhes estou dizendo.

Neste momento o que eram as causas da rebelião primeira vão coincidir com as consequências. Entrado Mousinho da Silveira para o Governo, viu imediatamente qual era o mal e ele próprio o diz: que a separação do Brasil, a independência que o Brasil tinha proclamado era mais fértil em consequências do que tinha sido o seu descobrimento. Ele dizia também que era necessário que Portugal readquirisse pelo trabalho o que antigamente lhe vinha em ouro do Brasil e do trabalho escravo nas colónias.

Visão perfeita, visão que define o génio do estadista e visão também que nos faz entrar no segredo íntimo da própria revolução e que nos explica porque foi um desembargador da Baía, Joaquim José de Queirós, o Chefe da Revolução do 16 de Maio. É que ele estava em condições magníficas para compreender que o mesmo mal que afligia o Brasil afligia Portugal; que os brasileiros tinham sacudido o regime absolutista e que o remédio para os portugueses era também sacudir o governo absolutista. E ninguém como uma pessoa inteligente e um homem que tinha experiência das coisas do Brasil podia vislumbrar melhor as consequências que representavam para Portugal a separação da antiga colónia. Mais ainda, nós compreendemos melhor a lógica íntima da revolução, e vemos que não só é natural e perfeito que tivesse sido um desembargador da Baía mas que ele encontrasse o melhor ambiente em Aveiro.

Aveiro, porto marítimo, e os portos marítimos são sempre muito mais sensíveis a estes movimentos ideológicos que lhes vêm de fora. Além disso, em Aveiro, desde a abertura da Barra em 1808, começara a dar-se uma reestruturação das classes. Isso explica o ambiente magnífico que encontrou aqui o desembargador, e se a Sociologia nos diz que assim viria a acontecer, a História o comprova. No livrinho de Marques Gomes sobre a revolução de 16 de Maio eu vi que entre os conspiradores avultavam os comerciantes, não faltavam também os homens das profissões liberais, os do Foro e também os mecânicos, os pintores, os sapateiros e, o que é extremamente significativo, os estudantes, à frente dos quais José Estêvão — já era então estudante de Direito em Coimbra.

Entrado Mousinho da Silveira no Governo e ainda na Terceira ele começa imediatamente a legislar, e a legislar no sentido de curar as velhas taras absolutistas que pesaram sobre a terra e sobre o trabalho em Portugal. Numa série de leis de que eu lhes vou dar muito rapidamente o resumo, ele acabou com os dízimos, dízimos que chegavam por vezes a 50 % do rendimento bruto da propriedade, com os dízimos e com os direitos senhoriais, e é Herculano que nos diz: / 10 / eliminando dízimos e direitos senhoriais ele libertava a terra, libertava o trabalhador da terra e o das pequenas indústrias e o comerciante de duas terças partes dos impostos que pesavam até então sobre o trabalho produtivo fosse qual fosse. A seguir, ele elimina em grande parte as sisas, sisas que tinham sido um imposto democrático, no tempo da revolução do Mestre de Avis, mas que se tinham tornado um elemento opressor. Ele acaba com as ordenanças, que tinham sido também um elemento democrático mas que por intermédio dos capitães-mores pesavam esmagadoramente sobre as populações rurais. Ele acaba com a arbitrariedade dos cargos, tomando-os apenas pessoais, ele regula as funções da magistratura e separa a magistratura das funções administrativas. Ele realiza um pacto e suprime os bens da coroa afectos às ordens monásticas. É ele quem dá o primeiro golpe, mais tarde terminado por Joaquim António de Aguiar, sobre as ordens religiosas. É ele também que dá o primeiro golpe sobre o morgadio. Enfim, ele foi o verdadeiro revolucionário, o mais substancial, o que foi verdadeiramente às causas económicas e sociais da revolução, fazendo acompanhar a revolução política de uma profunda revolução económica e social. Mouzinho da Silveira ia ao ponto de dizer que só tinha direito à terra aquele que a trabalhava com o seu suor, porque a terra sem isso não tinha verdadeiro valor. Mas aqui, como lhes dizia, as causas confundem-se com as consequências. É Herculano que nos diz que, quando esses decretos começaram a circular entre a tropa miguelista, os homens do povo compreenderam que estavam a lutar contra si próprios, e o que lhes convinha era trabalhar pela vitória Liberal. E foi o que fizeram.

Temos então que a revolução liberal iniciada a 16 de Maio pôde, como eu disse de princípio, moldar depois de 6 anos de luta uma face mais justa e mais humana a Portugal. Essa grande glória cabe a todos, evidentemente, mas, mais do que a ninguém, a esse estadista de quem acabo de falar.

Mas, meus Senhores, se a revolução liberal não tivesse essa grande conquista, entre os benefícios que trouxe a Portugal uma outra coroa de glória lhe cabe: a grande renovação das ideias, políticas, sociais e literárias, que se deu imediatamente após a sua implantação. O liberalismo é por essência um regime de convívio e discussão com o inimigo político, de tolerância, e isso permitiu que o ideal republicano como o socialista pudessem livremente ser explicados e exaltados durante muitos anos, durante o regime liberalista em Portugal. Nasceu daí uma plêiade de apóstolos.

Eu não irei agora enumerá-los, mas quero chamar a vossa atenção, como o mais significativo dos efeitos do liberalismo e das virtudes da liberdade, para a grande floração literária que então se deu em Portugal, por algumas gerações, a primeira das quais é a que saiu directamente da revolução; a dos chamados românticos, que pertenciam, é certo, a uma escola de romantismo, mas tiveram o mérito de chamar as letras, de uma maneira peculiar e portuguesa, para a interpretação da vida e da vida junto da terra.

Nesse Instituto de altos estudos, sim, de altos estudos, que foi a emigração, mas em que os pupilos em vez de subsídio oficial tiveram, sim, a elucidá-los os paralelos e as experiências dolorosas, os paralelos de um estado de civilização que eles tinham visto e presenciado no estrangeiro, estes pupilos de altos estudos chamavam-se nomes tão gloriosos, como Almeida Garrett, Herculano, José Estêvão e Luz Soriano, para citar apenas os principais.

Todos eles são filhos da Liberdade. Garrett, mais romântico que nenhum dos outros, porque viveu o romantismo como um estilo de vida novo, abriu mais caminhos, os mais diversos, às gerações futuras.

Ele foi poeta e prosador de ritmos novos que, nas «Viagens à Minha Terra», escreveu as viagens na minha terra, com aquele fôlego curto e vivo e palpitante da linguagem falada.

Ele foi o folclorista «avant Ia lettre», aquele que pela primeira vez apreendeu em Portugal o penetrante sentido e encanto da poesia popular.

De espécie, de sebe de estevas e madressilva em flor pelas azinhagas dos casais, ele foi o dramaturgo que reatou, até à sobriedade, da tragédia grega «O Frei Luís de Sousa», o génio do teatro português, que se havia perdido com Gil Vicente. Ele foi o parlamentar que, ombreando com José Estêvão, erguem a eloquência política até uma das supremas afirmações da consciência livre; Garrett, espontâneo até à ingenuidade, elegante até ser janota, foi mestre no verso de João de Deus, precursor na prosa de Eça de Queirós, foi o precursor também de uma escola de teatro que vai desde Marcelino Mesquita a Lopes de Mendonça. E no estudo do folclore iniciou uma ciência que teve o seu grande mestre em Leite de Vasconcelos.

Esse Garrett foi uma espécie de rosa de ventos aberta a todas as inspirações das artes e da vida pública. Herculano, esse moldou-se a si próprio, como uma estátua, um símbolo vivo de exemplaridade austera, de vivência na história da consciência política da actualidade. Tem-se dito e tem-se increpado Alexandre Herculano porque, acusam-no, ele foi violento e apaixonado no julgamento de D. João III na sua «História da Inquisição em Portugal». Eu direi: bem haja o escritor quem a cólera impeliu a pena e bem haja o chicote com que ele flagelou esse monarca chamado, por antífrase, o piedoso, que comprou a / 11 / peso de ouro o direito de afogar a fé alheia e a consciência livre no patíbulo ou na fogueira.

Mas passemos agora para a outra, a mais bela geração produzida pelo Liberalismo em Portugal. Eu refiro-me à que vai da chamada Escola de Coimbra aos Vencidos da Vida e a que pertencem Eça de Queirós, o neto de Joaquim José de Queirós, que foi educado em Verdemilho, o filho da Ria de Aveiro, como ele próprio se chama. Eça de Queirós, Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão, Antero, Teófilo, tantos outros!

   
 

Da esquerda para a direita: Júlio Calisto, Álvaro Neves, Mário Sacramento, João Sarabando, Jaime Cortesão, Costa e Melo, Manuel Figueiredo, Armando Castela, João Morais Sarmento, Manuel das Neves e Joaquim José de Santana.

 

E peço-lhes que sigam agora o meu raciocínio. Como é que esse Ramalho, o íntegro Ramalho, o forte, o sadio, o puro, o franco, o aberto, o despejado, que tinha arte de escrever, como quem fala sem papas na língua, como é que Junqueiro, em cuja lira ressoam as angústias da Pátria vilipendiada, como é que o próprio Oliveira Martins, que escreveu «Portugal Contemporâneo» com um sentido tragicómico, misto de genial e caricatura, como é que Antero, o Santo Antero, o poeta, o crítico, filósofo, o homem que ergueu o conceito da liberdade às últimas culminâncias na sua obra sobre as tendências actuais da filosofia em Portugal no século XIX, como é que eles poderiam escrever essas páginas supremamente livres num regime nem que não dominasse, já não digo a liberdade de imprensa, mas em que o livre espírito crítico fosse por assim dizer a suprema afirmação da cultura e da civilização?

O caso de Eça de Queirós, meus senhores, é mais típico porque ele, espécie de Jeová malicioso, pegou nesse barro da estupidez humana e dos vícios que ele encontrara à sua volta e moldou essa galeria de tipos que fazem ainda hoje o nosso encanto e o encanto de todo o mundo lá fora; tão verídicos, tão palpitantes de vida e de grotesco que os próprios contemporâneos, muitos deles, tiveram de se rir ao espelho, de envergonhados, ao ler a sua própria imagem pintada no romance.

Digam-me, como é que podíamos conceber o autor do Crime do Padre Amaro, dos Maias, da Relíquia, do Mandarim, num regime miguelista, no regime anterior, em que dominava a censura, em que dominava o arrocho, a perseguição da polícia e, sobretudo, o medo, esse medo que enxovalha e humilha a criatura humana! Esse medo que abafa a voz nas gargantas e nas consciências e faz dos homens míseras rezes de um rebanho. Ah! Adeus Conselheiro Acácio, bexiga de ridículo e grotesco. Adeus Pacheco, cujo imenso talento brilhava apenas nos cristais dos seus óculos. Adeus cínico Primo Basílio, adeus cínico padre Amaro, adeus repulsivo Salsede e tantos outros.

Que digo eu, adeus cóleras sagradas de Herculano, / 12 / adeus risadas sadias de Ramalho, adeus veemências proféticas de Junqueiro! Ah! tudo isto desaparecia! E eles seriam, quando muito, magníficos amanuenses, que talvez nas horas vagas pudessem compor poesias líricas para o «Almanaque de Lembranças».

Na sua vez, na vez desses réprobos, réprobos para o miguelismo, tínhamos uma literatura cediça e bolorenta, de conformismo, de erudição gulosa, de homilia e Iausperene, de panegírico baboso dum lado, e, do outro, ah! E do outro! A «Besta Esfolada» do Padre José Agostinho de Macedo, que pedia que houvesse, para regalo do povo, todos os dias, carne fresca de liberais enforcados.

Ou a contramina do Padre Fortunato, Frei Fortunato de São Boaventura, que pedia ao Senhor, que pedia a Deus, que as florestas dessem todas as vergônteas necessárias aos cacetes que eram necessários para esmagar os miolos dos que não seguiam a verdade miguelista.

Melhor ainda, a que pedia o Padre Alvito Ruela, na sua «Defesa de Portugal» que chegava a pedir que se arrancassem os fetos dos ventres das mulheres dos liberais para que se lhes acabasse com a raça.

Senhores: e se houvesse algum recalcitrante, algum recalcitrante das Ietras, lá estava o General Peres Jordão, o devotado guarda da Torre de S. Julião da Barra, para amassar os ossos e abafar os gritos nas masmorras subterrâneas, aos contumazes que não acreditassem com a fervor bastante nas virtudes e nos benefícios sublimes do Salvador da Pátria, e do Messias e enviado de Deus, o Senhor D. Miguel.

Meus Senhores, isto já vai longe e eu vou terminar.

Oliveira Martins, que eu aqui citei mais que uma vez, quando dá o balanço às lutas liberais, pergunta:

Mas que é a Liberdade? Segundo ele, é uma palavra vaga e cujo conceito varia e que de facto não resolveu, por si só, os problemas portugueses.

Eu direi: Se Oliveira Martins tivesse penado nas prisões, as violências do cárcere, a fome, a miséria, se de tivesse tido de negar, infamado, ferido na sua honra e incapacitado de a defender, se ele tivesse sido acusado de traidor à Pátria e no entanto a tivesse defendido e procurado exaltar constantemente em toda a sua vida e durante o exílio e não pudesse sequer dizer que não e defender-se, ele saberia o que era a Liberdade.

Eu sei a que é a Liberdade!

Vou terminar por onde comecei, o agradecimento à cidade de Aveiro.

Aveiro, cidade precursora!

Bem hajas pelo teu grito anunciador, Aveiro, cidade sempre igual a ti mesma, no passado e no presente, bendita sejas pela tua constância e a tua fé.

Aveiro, mártir regada de sangue e de lágrimas, ensina-nos com o teu exemplo, diz-nos que a liberdade não morre porque ela é tão certa como a manhã depois da noite e eu sei que desde o fundo lôbrego das idades, através de milénios, todo o esforço dos homens tem sido a conquista progressiva da liberdade.

E eu te vejo, Aveiro, como a própria figura ideal da Liberdade, coroada de esperança e na frente a estrela refulgente da certeza no futuro.

E eu oiço, nos teus canais, na tua Ria, nos teus campos, nos teus barcos, nas tuas oficinas, nos teus tribunais, nos teus consultórios, a alma e a voz de José Estêvão difundida mas clamando com voz mais imperiosa e eloquente do que nunca: — pão, justiça, Liberdade!

Jaime Cortesão

 

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01-Julho-2008