Quem foi Gonçalo Anes, a quem os
seus contemporâneos alcunharam de Bandarra) Sapateiro de correia -
eufemismo com o significado de fabricante de calçado - com loja aberta
em Trancoso, terra da sua naturalidade, deu em versejar umas
"esquisitices" de bom agrado para os cristãos-novos e de mau agoiro
para a Inquisição. Mais tarde, foram aproveitadas as profecias para
servirem o mito nebuloso do regresso de D. Sebastião, o "Encoberto", a
causa dos revoltosos e restauradores de 1640, a derrota de Napoleão em
terras lusas e o mito do Quinto Império, incendiado pelo Padre António
Vieira e por Fernando Pessoa.
Sabe-se que nasceu no início do
século XVI, viveu meia centena de anos e livrou-se, por um triz, de
arder na fogueira da Inquisição. Da figura deste "Nostradamus
português" possuímos a gravura do séc. XVII, de autor desconhecido,
para satisfazer o rosto da obra de D. João de Castro, o primeiro
editor das trovas do profeta. Salvou-se o grafismo da sua assinatura
nos autos do Santo Ofício; por esta santa instituição ficamos a
conhecer os passos e as alvíssaras do acusado, entre 1538 e 1541.
Resta-nos a maternidade do
túmulo na Igreja de São Pedro, em Trancoso,
em granito lavrado, que regista o ano da morte no ano de Nosso Senhor
de mil quinhentos e quarenta e cinco.
Bandarra -
bandurra - tunante
Com a sua veia profética, Bandarra
não ganhou, para além dos dissabores, um ceitil. Morreu pobre, em
ignoto casebre no Vale do Nogueirão, cerca de Trancoso, sustentado por
duas filhas (uma delas casou no mesmo dia em que a outra entrava para
o Convento de Santa Clara de Trancoso) e, possivelmente, por alguma
companheira, da qual não reza a História.
Deve ter nascido em berço de ouro,
mas fazendo jus à alcunha (bandarra-bandurra-tunante) deve ter
desbaratado a fortuna em boa-vai-ela até à penúria. Daí que, ainda
cedo, "para acudir à sua pobreza, tomou o oficio de sapateiro de
correia". Nos interins do calçado, instruía-se em leituras avulsas,
designadamente a da Bíblia em linguagem vulgar (por não a saber ler em
Latim) e da qual lhe ficaram "as principais partes na cabeça".
Deu em versejar e em vaticinar
coisas e loisas, algumas de extremo agrado para os judeus, então a
braços com a perseguição na Península Ibérica, que viam nestes
escritos a vinda do Messias e a finalização do seu calvário. Dai que,
em 1531, era o sapateiro convidado para se hospedar em Lisboa, na casa
do livreiro judeu João de Bilbis e na de João Cansado, ourives
lavrante da Rainha D. Catarina, sob o pretexto de lá ir para "negociar
algumas cousas". Repetiu a visita em 1538, ouvido com atenção por
cristãos-novos como João Lopes Caixeiro, Francisco Mendes, Levi
Travassos e Abraão Vermelho, todos eles interessados em espalhar "a
boa nova". Primeiro, entre o restrito grupo lisboeta, às escondidas;
depois, aos quatro ventos, alto e bom som. Com a oralidade dos poemas
seguia a alcunha do autor, e caso desse para o torto, como deu, não
sendo ele cristão-novo ou "gente de nação", tinha costas largas para
as apanhar.
Abrenúncio!
Tropearam as trovas por todo o
lado, de modo que chegaram ao sul. Um tal Afonso de Medina, que andava
por terras alentejanas em correição e pregação, deu por elas em forma
de manuscrito. Ora, aquele não gostou do que leu. Segundo era fama,
tratava-se de um manifesto profético, panfletário e uma espécie de
roteiro revolucionário para a judiaria. Com desembaraço, como se
impunha, Medina alertou os superiores.
No Palácio dos Estaus, em Lisboa,
onde o Santo Oficio exercia o mester, a nova caiu como uma bomba: um
sapateiro, possivelmente de letras gordas, das Beiras − onde, conforme
escreveu, mais tarde, D. João de Castro "comummente a gente não é
muito polida nem atentada no escrever.", passe a aleivosia − trazia
alvoroçados os judeus de Portugal. Abrenúncio!
O despacho carecia de celeridade.
Daí, ter saído a ordem: prenda-se o dito sapateiro versejador e
traga-se acorrentado; que venha à viva força, bem amolgado de
costelas, até à enxovia do Santo Oficio, onde será mantido a pão e
água como conduto e a açoites como sobremesa, para a seu tempo ser
julgado por tão alta traição.
Estaria redigida destarte a ordem
que fez trazer à força o Bandarra até às sobreditas prisões
inquisitoriais (onde, sabemo-lo hoje, os hospedeiros não se davam a
mimos e pamplinas) e a ser julgado algum tempo depois. A encabeçar a
façanhuda tríade de juízes estava D. João de Melo e Castro,
desembargador de Évora e na qualidade de substituto do
inquisidor-geral. Algemado e carregado de grilhões, custodiado por
beleguins e outras varas da justiça, compareceu Bandarra na sala do
despacho. Ia avisado do que podia suceder-lhe, muito pior do que o
tratamento de tortura no potro e na polé. Todos os presos temiam a
fogueira do Santo Oficio, dita da purificação dos corpos e almas (por
ser santa, não deixava de ser fogueira), mas que reduzia a torresmos
os condenados. Mais coisa menos coisa, negou o sapateiro ser judeu, o
que deve ter sido conferido pela Inquisição. Obrigaram-no a renegar
heresias e apostasias, leu-lhe a sentença o inquisidor-mor, Jesus
Christi Nomine invocato, onde se condenava o réu a um humilhante
passeio pelos Paços da Ribeira. Experiência maligna, porém leve, de
que aliás nem é suposto as profecias tratarem.
Era um homem de sorte! Outros que
tais, porventura com menos matéria de facto, tinham sido submetidos à
fogueira purificadora. Soubessem os zelosos e doutos inquisidores o
alvoroço que as trovas do sapateiro continuariam a dar anos adiante,
mesmo após a morte do autor, e a sentença teria sido bem mais severa.
A propósito, não é estulto o homem que, depois de cair das malhas da
Inquisição com a acusação que levava às costas, conseguiu sair do
aljube com uma leve condenação a proibir-lhe bíblicas, e a um passeio
com um ridículo traje de sambenito, uma Cruz de Santo André e um cirio
amarelo nas mãos. Mais se afigura que Bandarra deixou transparecer ao
juiz do processo a imagem da galinha que cacareja mas não põe ovo.
Barba branca,
sorumbático
e compenetrado
Então não era volvida uma centena.
de anos, as profecias continuavam a trazer dor de cabeça ao Santo
Oficio? Era preso o Padre António Vieira no cárcere da custódia de
Coimbra, com a acusação de defender as profecias do Bandarra e outras
falsas interpretações da Sagrada Escritura. D. João de Melo, na
sepultura, devia ter dado dois esticões e apenas por ter utilizado no
julgamento uma mão tão leve.
A odisseia proibitiva não era
conclusa. Por edital de 1665, lido em todas as igrejas do Reino, o
profeta (cujos ossos quedavam há mais de cem anos sepultos) era
tratado por "idiota" e "amigo de novidades", sendo excomungado todo
aquele que se dedicasse à leitura dos seus escritos supostamente
idiotas. Mais tarde, em 1768, com a entrada clandestina de livros
impressos com as coplas proféticas, novo edital proibia a posse e a
leitura dos mesmos. Se Bandarra fosse vivo, de certo ia malhar na
fogueira. Como não era, foi cevada a raiva sobre o epitáfio mandado
lavrar no túmulo, picando-se este à ordem do inquisidor-geral D.
Veríssimo de Lencastre. Felizmente, o encarregado do "serviço" não o
executou à letra da ordem, deixando para nós ainda formas de leitura,
vá lá saber-se se avassalado por respeito pelo morto se por menos zelo
na arte de bem picar toda a pedra.
É um Bandarra de barba branca,
sorumbático e compenetrado, que se nos afigura na gravura
"oficializada". Esta gravura, da edição de 1603 (a primeira impressão
das profecias) teria sido encomendada por D. João de Castro a um
anónimo gravador de Paris, o qual não viu mais gordo o profeta de
Trancoso. Não se sabe se circulavam algumas gravuras com o rosto do
sapateiro, donde uma destas ter provavelmente servido de fonte para o
gravador parisiense. Pelo sim, pelo não, tem-se como reprodução coeva,
com a figura do vate devidamente identificada junto a um balcão do
oficio, aperaltado para o retrato com uma espécie de chapéu tirolês na
cabeça e a talhar, sem molde, quiçá um par de chapins.
Desta figura, Fernando Pessoa
chegou a afiançar: "O verdadeiro patrono do nosso País é esse
sapateiro Bandarra. Abandonemos Fátima por Trancoso (...). O Futuro de
Portugal − que não calculo mas sei − está escrito já, para quem saiba
lê-lo, nas trovas do Bandarra (...). O Bandarra, símbolo eterno do que
o povo pensa de Portugal".
De tão evidente, o seguinte verso
do Bandarra poderá ter sido um dos seus derradeiros auspícios,
cumprido e perpetuado que se encontra:
Em dois sítios me achareis,
Por desgraça ou por ventura:
Os ossos na sepultura,
A alma nestes papéis.
Melhor do que eu, que nem a taluda
sei profetizar, Bandarra sabia o que predizia. Grande profeta ou não,
em uma das suas coplas parece confirmar a continuidade do pretérito
português:
Sou sapateiro, mas nobre
Com bem pouco cabedal:
E tu, triste Portugal,
Quanto mais rico, mais pobre.
De profeta, nada tenho. Quanto a
saber do destino da muito querida Pátria, basta-me o aforismo: mais
vale um bom desengano, que toda a vida andar enganado.
■
Bandarra e o conserto das
botas
Na terra da naturalidade do
profeta, onde tudo parece assumir, como topónimo, apelido, identidade
comercial, cultural ou institucional, a sua alcunha, corre esta lenda,
assacada com foros de veracidade para determinar o poder sibilino do
mui lembrado conterrâneo.
Deu-se o caso de ter parado em
Trancoso um almocreve ou recoveiro, que jornadeava de passagem no
cumprimento de um frete. Trazia nas mãos um par de botas para o
conserto e meia dúzia de grossas bolhas nos pés, o pobre do homem!
Sabendo da existência de um despachado e competente
sapateiro-remendão, entregou-lhe o serviço. Feito este, prontificou-se
o almocreve a pagar o justo valor pela prestação do trabalho, de
qualidade e asseado, como se o par de botas acabasse de deixar a
matriz. Porém, Bandarra, em vez de lhe cobrar sequer um ceitil,
profetizou, nesta copla, o saldo da sua dívida:
Irás e virás / Na praça me
acharás / Meio dentro e meio fora / E então me pagarás.
Foi-se o arrieiro satisfeito por
ter poupado alguns cobres e a julgar desaparafusado do juízo aquele
sapateiro. Só que, anos volvidos, passando novamente por Trancoso, o
mesmo almocreve viu na igreja, situada na praça, meio dentro e meio
fora da porta do templo, o esquife que lhe disseram ser de Bandarra.
Lembrou-se dos versos do vate, puxou da bolsa e pagou as despesas do
funeral.
SABE-SE QUE NASCEU NO INÍCIO DO SÉCULO XVI, VIVEU MEIA CENTENA DE
ANOS E LIVROU-SE, POR UM TRIZ, DE ARDER NA FOGUEIRA DA INQUISIÇÃO.
As filhas do Bandarra
Conta-se por tradição ter Bandarra
deixado duas filhas. Chamavam-se as cachopas Isabel e Maria. Seriam
moças de lavoura, rijas e maninhas, pelo que viveriam no casebre
deixado como bem de raiz pelo progenitor.
Foi o caso de Maria ter sido presa
devido ao facto de ter colaborado na representação de um auto,
naturalmente proibido pelos representantes do sagrado. Para cumprirem
ordem do tribunal, dois soldados foram destacados para trazerem a
rapariga detida, debaixo de armas, sem glória nem sobressaltos.
Já entre a custódia dos dois
soldados, Maria sossegou a irmã e tratou de vaticinar, tal como seu
pai, desta guisa:
Mais uma e outra vez
Ou será antes ou depois;
Daqui saímos três,
À chegada seremos dois.
Desde o sítio onde viviam até
Trancoso era tudo a subir, mas a bom subir, por carreiras abertos com
os pés dos passantes entre pinheiros, fetos e urzes. Assim, andaram um
bom bocado, a detida entre os dois militares e estes receosos que ela
fizesse por cumprir a profecia anunciada e fugisse.
Chegados ao cimo da ladeira, sem
que se dessem ao cuidado de uma leve pausa na marcha e na vigilância,
um dos soldados caiu ao chão. Parecia que um raio o tinha fulminado.
Ainda lhe acudiu o companheiro, mas o coitado logo ali morreu.
"Ó mulher, agora entendo as tuas
palavras", proferiu o soldado sobrevivente. Saímos três pessoas e
chegamos duas.
E podendo ela escapar das mãos do
guarda que restava, não o fez. Veio, segundo se cronica, a ser
libertada da enxovia graças a peitas e influências. Posta em
liberdade, procurou então a clausura, desta vez voluntária, no
Convento de Santa Clara de Trancoso, tendo ali entrado em 1540, no
mesmo dia e hora em que sua irmã Isabel contraía casamento.
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