Fernando Santos Costa, Bandarra, o profeta Sapateiro, in "Notícias Magazine" n.º 67 de ???, pp. ??

Bandarra
o Profeta Sapateiro

Profeta, poeta e sapateiro, de seu nome Gonçalo Anes e de alcunha Bandarra, perpetuou em trovas o futuro de Portugal. Para os que se interessam pelo porvir, confiram nas suas trovas sibilinas o destino que nos espera. Do passado, vos trago os respingos da sua odisseia com o Santo Ofício.

 
I Texto de Fernando Santos Costa
 
 

Quem foi Gonçalo Anes, a quem os seus contemporâneos alcunharam de Bandarra) Sapateiro de correia - eufemismo com o significado de fabricante de calçado - com loja aberta em Trancoso, terra da sua naturalidade, deu em versejar umas "esquisitices" de bom agrado para os cristãos-novos e de mau agoiro para a Inquisição. Mais tarde, foram aproveitadas as profecias para servirem o mito nebuloso do regresso de D. Sebastião, o "Encoberto", a causa dos revoltosos e restauradores de 1640, a derrota de Napoleão em terras lusas e o mito do Quinto Império, incendiado pelo Padre António Vieira e por Fernando Pessoa.

Sabe-se que nasceu no início do século XVI, viveu meia centena de anos e livrou-se, por um triz, de arder na fogueira da Inquisição. Da figura deste "Nostradamus português" possuímos a gravura do séc. XVII, de autor desconhecido, para satisfazer o rosto da obra de D. João de Castro, o primeiro editor das trovas do profeta. Salvou-se o grafismo da sua assinatura nos autos do Santo Ofício; por esta santa instituição ficamos a conhecer os passos e as alvíssaras do acusado, entre 1538 e 1541. Resta-nos a maternidade do túmulo na Igreja de São Pedro, em Trancoso, em granito lavrado, que regista o ano da morte no ano de Nosso Senhor de mil quinhentos e quarenta e cinco.

 

Bandarra - bandurra - tunante

Com a sua veia profética, Bandarra não ganhou, para além dos dissabores, um ceitil. Morreu pobre, em ignoto casebre no Vale do Nogueirão, cerca de Trancoso, sustentado por duas filhas (uma delas casou no mesmo dia em que a outra entrava para o Convento de Santa Clara de Trancoso) e, possivelmente, por alguma companheira, da qual não reza a História.

Deve ter nascido em berço de ouro, mas fazendo jus à alcunha (bandarra-bandurra-tunante) deve ter desbaratado a fortuna em boa-vai-ela até à penúria. Daí que, ainda cedo, "para acudir à sua pobreza, tomou o oficio de sapateiro de correia". Nos interins do calçado, instruía-se em leituras avulsas, designadamente a da Bíblia em linguagem vulgar (por não a saber ler em Latim) e da qual lhe ficaram "as principais partes na cabeça".

Deu em versejar e em vaticinar coisas e loisas, algumas de extremo agrado para os judeus, então a braços com a perseguição na Península Ibérica, que viam nestes escritos a vinda do Messias e a finalização do seu calvário. Dai que, em 1531, era o sapateiro convidado para se hospedar em Lisboa, na casa do livreiro judeu João de Bilbis e na de João Cansado, ourives lavrante da Rainha D. Catarina, sob o pretexto de lá ir para "negociar algumas cousas". Repetiu a visita em 1538, ouvido com atenção por cristãos-novos como João Lopes Caixeiro, Francisco Mendes, Levi Travassos e Abraão Vermelho, todos eles interessados em espalhar "a boa nova". Primeiro, entre o restrito grupo lisboeta, às escondidas; depois, aos quatro ventos, alto e bom som. Com a oralidade dos poemas seguia a alcunha do autor, e caso desse para o torto, como deu, não sendo ele cristão-novo ou "gente de nação", tinha costas largas para as apanhar.


Abrenúncio!

Tropearam as trovas por todo o lado, de modo que chegaram ao sul. Um tal Afonso de Medina, que andava por terras alentejanas em correição e pregação, deu por elas em forma de manuscrito. Ora, aquele não gostou do que leu. Segundo era fama, tratava-se de um manifesto profético, panfletário e uma espécie de roteiro revolucionário para a judiaria. Com desembaraço, como se impunha, Medina alertou os superiores.

No Palácio dos Estaus, em Lisboa, onde o Santo Oficio exercia o mester, a nova caiu como uma bomba: um sapateiro, possivelmente de letras gordas, das Beiras − onde, conforme escreveu, mais tarde, D. João de Castro "comummente a gente não é muito polida nem atentada no escrever.", passe a aleivosia − trazia alvoroçados os judeus de Portugal. Abrenúncio!

O despacho carecia de celeridade. Daí, ter saído a ordem: prenda-se o dito sapateiro versejador e traga-se acorrentado; que venha à viva força, bem amolgado de costelas, até à enxovia do Santo Oficio, onde será mantido a pão e água como conduto e a açoites como sobremesa, para a seu tempo ser julgado por tão alta traição.

Estaria redigida destarte a ordem que fez trazer à força o Bandarra até às sobreditas prisões inquisitoriais (onde, sabemo-lo hoje, os hospedeiros não se davam a mimos e pamplinas) e a ser julgado algum tempo depois. A encabeçar a façanhuda tríade de juízes estava D. João de Melo e Castro, desembargador de Évora e na qualidade de substituto do inquisidor-geral. Algemado e carregado de grilhões, custodiado por beleguins e outras varas da justiça, compareceu Bandarra na sala do despacho. Ia avisado do que podia suceder-lhe, muito pior do que o tratamento de tortura no potro e na polé. Todos os presos temiam a fogueira do Santo Oficio, dita da purificação dos corpos e almas (por ser santa, não deixava de ser fogueira), mas que reduzia a torresmos os condenados. Mais coisa menos coisa, negou o sapateiro ser judeu, o que deve ter sido conferido pela Inquisição. Obrigaram-no a renegar heresias e apostasias, leu-lhe a sentença o inquisidor-mor, Jesus Christi Nomine invocato, onde se condenava o réu a um humilhante passeio pelos Paços da Ribeira. Experiência maligna, porém leve, de que aliás nem é suposto as profecias tratarem.

Era um homem de sorte! Outros que tais, porventura com menos matéria de facto, tinham sido submetidos à fogueira purificadora. Soubessem os zelosos e doutos inquisidores o alvoroço que as trovas do sapateiro continuariam a dar anos adiante, mesmo após a morte do autor, e a sentença teria sido bem mais severa. A propósito, não é estulto o homem que, depois de cair das malhas da Inquisição com a acusação que levava às costas, conseguiu sair do aljube com uma leve condenação a proibir-lhe bíblicas, e a um passeio com um ridículo traje de sambenito, uma Cruz de Santo André e um cirio amarelo nas mãos. Mais se afigura que Bandarra deixou transparecer ao juiz do processo a imagem da galinha que cacareja mas não põe ovo.

 

Barba branca, sorumbático
e compenetrado

Então não era volvida uma centena. de anos, as profecias continuavam a trazer dor de cabeça ao Santo Oficio? Era preso o Padre António Vieira no cárcere da custódia de Coimbra, com a acusação de defender as profecias do Bandarra e outras falsas interpretações da Sagrada Escritura. D. João de Melo, na sepultura, devia ter dado dois esticões e apenas por ter utilizado no julgamento uma mão tão leve.

A odisseia proibitiva não era conclusa. Por edital de 1665, lido em todas as igrejas do Reino, o profeta (cujos ossos quedavam há mais de cem anos sepultos) era tratado por "idiota" e "amigo de novidades", sendo excomungado todo aquele que se dedicasse à leitura dos seus escritos supostamente idiotas. Mais tarde, em 1768, com a entrada clandestina de livros impressos com as coplas proféticas, novo edital proibia a posse e a leitura dos mesmos. Se Bandarra fosse vivo, de certo ia malhar na fogueira. Como não era, foi cevada a raiva sobre o epitáfio mandado lavrar no túmulo, picando-se este à ordem do inquisidor-geral D. Veríssimo de Lencastre. Felizmente, o encarregado do "serviço" não o executou à letra da ordem, deixando para nós ainda formas de leitura, vá lá saber-se se avassalado por respeito pelo morto se por menos zelo na arte de bem picar toda a pedra.

É um Bandarra de barba branca, sorumbático e compenetrado, que se nos afigura na gravura "oficializada". Esta gravura, da edição de 1603 (a primeira impressão das profecias) teria sido encomendada por D. João de Castro a um anónimo gravador de Paris, o qual não viu mais gordo o profeta de Trancoso. Não se sabe se circulavam algumas gravuras com o rosto do sapateiro, donde uma destas ter provavelmente servido de fonte para o gravador parisiense. Pelo sim, pelo não, tem-se como reprodução coeva, com a figura do vate devidamente identificada junto a um balcão do oficio, aperaltado para o retrato com uma espécie de chapéu tirolês na cabeça e a talhar, sem molde, quiçá um par de chapins.

Desta figura, Fernando Pessoa chegou a afiançar: "O verdadeiro patrono do nosso País é esse sapateiro Bandarra. Abandonemos Fátima por Trancoso (...). O Futuro de Portugal − que não calculo mas sei − está escrito já, para quem saiba lê-lo, nas trovas do Bandarra (...). O Bandarra, símbolo eterno do que o povo pensa de Portugal".

De tão evidente, o seguinte verso do Bandarra poderá ter sido um dos seus derradeiros auspícios, cumprido e perpetuado que se encontra:

Em dois sítios me achareis,
Por desgraça ou por ventura:
Os ossos na sepultura,
A alma nestes papéis.

Melhor do que eu, que nem a taluda sei profetizar, Bandarra sabia o que predizia. Grande profeta ou não, em uma das suas coplas parece confirmar a continuidade do pretérito português:

Sou sapateiro, mas nobre
Com bem pouco cabedal:
E tu, triste Portugal,
Quanto mais rico, mais pobre.

De profeta, nada tenho. Quanto a saber do destino da muito querida Pátria, basta-me o aforismo: mais vale um bom desengano, que toda a vida andar enganado.

 

Bandarra e o conserto das botas

Na terra da naturalidade do profeta, onde tudo parece assumir, como topónimo, apelido, identidade comercial, cultural ou institucional, a sua alcunha, corre esta lenda, assacada com foros de veracidade para determinar o poder sibilino do mui lembrado conterrâneo.

Deu-se o caso de ter parado em Trancoso um almocreve ou recoveiro, que jornadeava de passagem no cumprimento de um frete. Trazia nas mãos um par de botas para o conserto e meia dúzia de grossas bolhas nos pés, o pobre do homem! Sabendo da existência de um despachado e competente sapateiro-remendão, entregou-lhe o serviço. Feito este, prontificou-se o almocreve a pagar o justo valor pela prestação do trabalho, de qualidade e asseado, como se o par de botas acabasse de deixar a matriz. Porém, Bandarra, em vez de lhe cobrar sequer um ceitil, profetizou, nesta copla, o saldo da sua dívida:

Irás e virás / Na praça me acharás / Meio dentro e meio fora / E então me pagarás.

Foi-se o arrieiro satisfeito por ter poupado alguns cobres e a julgar desaparafusado do juízo aquele sapateiro. Só que, anos volvidos, passando novamente por Trancoso, o mesmo almocreve viu na igreja, situada na praça, meio dentro e meio fora da porta do templo, o esquife que lhe disseram ser de Bandarra. Lembrou-se dos versos do vate, puxou da bolsa e pagou as despesas do funeral.


SABE-SE QUE NASCEU NO INÍCIO DO SÉCULO XVI, VIVEU MEIA CENTENA DE ANOS E LIVROU-SE, POR UM TRIZ, DE ARDER NA FOGUEIRA DA INQUISIÇÃO.
 



As filhas do Bandarra

Conta-se por tradição ter Bandarra deixado duas filhas. Chamavam-se as cachopas Isabel e Maria. Seriam moças de lavoura, rijas e maninhas, pelo que viveriam no casebre deixado como bem de raiz pelo progenitor.

Foi o caso de Maria ter sido presa devido ao facto de ter colaborado na representação de um auto, naturalmente proibido pelos representantes do sagrado. Para cumprirem ordem do tribunal, dois soldados foram destacados para trazerem a rapariga detida, debaixo de armas, sem glória nem sobressaltos.

Já entre a custódia dos dois soldados, Maria sossegou a irmã e tratou de vaticinar, tal como seu pai, desta guisa:

Mais uma e outra vez
Ou será antes ou depois;
Daqui saímos três,
À chegada seremos dois.

Desde o sítio onde viviam até Trancoso era tudo a subir, mas a bom subir, por carreiras abertos com os pés dos passantes entre pinheiros, fetos e urzes. Assim, andaram um bom bocado, a detida entre os dois militares e estes receosos que ela fizesse por cumprir a profecia anunciada e fugisse.

Chegados ao cimo da ladeira, sem que se dessem ao cuidado de uma leve pausa na marcha e na vigilância, um dos soldados caiu ao chão. Parecia que um raio o tinha fulminado. Ainda lhe acudiu o companheiro, mas o coitado logo ali morreu.

"Ó mulher, agora entendo as tuas palavras", proferiu o soldado sobrevivente. Saímos três pessoas e chegamos duas.

E podendo ela escapar das mãos do guarda que restava, não o fez. Veio, segundo se cronica, a ser libertada da enxovia graças a peitas e influências. Posta em liberdade, procurou então a clausura, desta vez voluntária, no Convento de Santa Clara de Trancoso, tendo ali entrado em 1540, no mesmo dia e hora em que sua irmã Isabel contraía casamento.

 

Fotografias da estátua de Bandarra, em Trancoso - /////
 

 

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21-03-2012