Mil parabéns.
Ganhámos Catembe», assim dizia o telegrama enviado em 1964 a
Manuel Faria de Almeida por António da Cunha Telles. De Lisboa
para Paris, onde o cineasta estagiava no IDHEC, anunciava-se o
apoio ao filme Catembe – Sete Dias em Lourenço Marques. Na mesma
altura, a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado)
enviava ao ministro do Interior Santos Júnior uma nota secreta
dizendo que «havia conhecimento de que uma equipa de filmagem da
metrópole tencionava deslocar-se a Lourenço Marques a fim de
produzir um filme sobre o tema "a paixão de um pescador negro da
Catembe, de vida miserável, por uma prostituta, parece que de raça
branca", tendo conseguido apoio das entidades competentes
metropolitanas». A nota seguiu para o SNI (Secretariado Nacional
de Informação) com um cartão do ministro que dizia «Que diabo é
isto? Sabe o que se passa?»
Ainda o filme
Catembe não tinha começado a ser rodado e já o seu destino estava
traçado. Apesar do apoio financeiro do SNI, conseguido pelas
Produções Cunha Telles, o filme foi censurado, remontado e,
finalmente, proibido durante o Estado Novo. Os 103 cortes a que
foi sujeito fizeram-no entrar no Guiness Book of Records na
categoria de filme com mais cortes feitos pela censura na história
do cinema.
|
«Sempre gostei
muito da região da Catembe. É o lado de lá de Lourenço Marques»,
diz Manuel Faria de Almeida, autor do filme.
Natural da
capital moçambicana, cresceu a observar a vida que decorria na
outra margem. «É uma aldeia de pescadores. Têm muito trabalho, mas
conseguem muito pouco peixe ou camarão. A recompensa é muito
pequena para o esforço diário que fazem.»
|
Faria de Almeida,
autor do filme
que mais cortes sofreu na história do cinema. |
O filme que
idealizou pretendia fazer um retrato da vida nas duas margens
irmãs, usando alguns aspectos documentais e pequenos episódios de
ficção – o chamado cinema directo. A acção começava no Rossio, em
Lisboa, onde se entrevistavam pessoas que mostravam não fazer
ideia do que se passava em terras do ultramar. Seguia-se depois a
história ficcional de Catembe, a personagem feminina, cujo nome
fazia a ligação com a terra, e que se encantava por um rapaz.
«Apesar do financiamento, havia muito pouco dinheiro. Tinha a
planificação e nada era repetido. Tudo era feito à justa. Ainda
tentámos alguns apoios junto da Câmara Municipal, mas ninguém deu
nada, à excepção do hotel onde ficaram a dormir o Augusto Cabrita
e o Tropa. Eu fiquei em casa dos meus pais.»
Filmaram durante cerca de três semanas, seguidos de perto pela
imprensa local e pelos habitantes da região. Contou-se, aliás, com
a colaboração destes para a realização de algumas cenas
ficcionadas, as pequenas histórias dentro da história.
Dado que o orçamento era limitado, nem tudo foi filmado. Três das
cenas foram acrescentadas posteriormente. «Aproveitámos a
oportunidade de ter a Filomena Lança, a actriz que encarna
Catembe, a estudar em Lisboa, e filmámos o que faltava nos
terrenos da Tobis, onde colocámos umas barracas a fazer lembrar
Lourenço Marques.»
Filmagens - Rodagem de cenas de
Catembe, em Moçambique
Depois de
montada a primeira versão, o filme foi visionado por
representantes do Ministério do Ultramar, que propuseram algumas
emendas. De seguida, foi visto pela Agência Geral do Ultramar, que
levantou inúmeros problemas. Manuel Faria de Almeida cita um
exemplo, tal como vem referido no documento da censura: «Em vários
passos das entrevistas feitas no início do filme, os entrevistados
referem-se à metrópole falando "em Portugal", como se Lourenço
Marques não fosse também Portugal. Crê-se que este inconveniente
deverá e poderá ser eliminado.» O «inconveniente» foi eliminado,
em conjunto com todos os outros. Ao todo, foram 103 cortes no
projecto original, que tinha a duração de uma hora e vinte. «Um
grupo de entidades visionou o filme cortado e disse que estava
bem. Mas, como é evidente, não era possível apresentá-lo assim.
Remontei o filme que ficou com 45 minutos», revela Faria de
Almeida. No entanto, o esforço foi inglório. A 28 de Fevereiro de
1966 a Censura comunicou ao distribuidor que decidira «suspender o
filme por não ser oportuna a sua exibição».
Só depois do 25
de Abril foi possível conhecer esta obra que olhava as colónias de
uma forma diferente do cinema de propaganda do regime. «A primeira
vez que passou na Cinemateca, depois de uma entrevista ao Canal
Dois com o jornalista Carlos Pinto Coelho, a sala encheu. As
pessoas tiveram de se sentar no chão, nas coxias. Correu muito
bem». Já em Setembro de 2010 o movimento Chão passou o filme no
cinema Nimas e a 27 de Novembro a investigadora Maria do Carmo
Piçarra também o apresentou na IV Mostra de Cinema e II Simpósio
Novos Cinemas nos Países Lusófonos (Anos 60-70), na Universidade
de Coimbra, onde contou com a presença do autor.
«Eu gosto do filme assim como está mas, quando foi apresentado à
Censura que o proibiu, peguei no negativo e depositei-o na
Cinemateca.»
|
|
|
|
|
|
Catembe -
Os actores que no filme encarnam o pescador negro e a
prostituta. |
|
Manuel Faria de
Almeida nunca mais fez nenhum filme, embora tenha realizado
diversos documentários. A Lourenço Marques só voltou. mais uma vez
em trabalho, em 1968. "Fica-se desesperado quando se leva assim um
revés. Deixei de pensar em fazer mais filmes.» De qualquer forma
não fugiu totalmente ao seu destino, traçado desde cedo na terra
natal. Foi membro fundador do Cine Clube de Lourenço Marques em
1957. Mais tarde, contou com o apoio do Fundo do Cinema Nacional
para estudar cinema na London School of Film Technique e ganhou o
primeiro prémio do Festival Cinestud de Amesterdão, com o filme
feito durante o curso, Streets of Early Sorrow, inspirado no
massacre de Sharpeville na Africa do Sul. Estagiou em França, no
IDHEC (Instituto de Altos Estudos Cinematográficos) e trabalhou
nos arquivos da Cinemateca. Foi presidente da Tobis Portuguesa e
do Instituto Português de Cinema, chefiou o Centro de Formação da
RTP – Radiotelevisão Portuguesa e participou na criação da
Televisão de Macau. Trabalhou ainda no lançamento da Europa TV e
da RTP Internacional e passou pela Direcção de Programas e
Direcção de Cooperação.
Tem várias obras sobre a história do cinema e sobre realização. A
qualidade da obra e o currículo do autor justificam a curiosidade
sempre que Catembe se mostra. Ainda assim, é com modéstia que
Manuel Faria de Almeida se apresenta. «Pouca gente sabe que o
filme existe, já foi feito há cinquenta anos. Mas quando se diz
que vai passar, ainda há muita gente que o vai ver. E claro que há
muitos outros que, com certeza, nem se mexem.»
|