A
Organização das Nações Unidas (ONU) decidiu recentemente adiar
por mais dois anos a discussão da proposta do governo dos EUA
para banir a clonagem. O que achou desta opção?
Acho bem. Ainda é cedo para tomar uma
decisão. Esperemos que nestes dois anos, a questão da clonagem
seja dessacralizada e desmontada em termos de riscos, perigos e
benefícios.
Como?
Através de informação. As pessoas têm
de compreender que os argumentos que são levantados não colhem
quando nós fazemos perguntas realistas. E podemos discutir várias,
o direito à identidade, o ser contra a natureza, o medo dos exércitos
de clones.
Acha
que são medos baseados na ignorância?
Não só. Isso é um argumento um bocado
paternalista do ponto de vista dos cientistas. Pode também ter a
ver com o mundo que não queremos que exista.
E,
sendo um dos países que lidera esta investigação à volta da
clonagem, como vê o facto da proposta de proibição partir
precisamente dos EUA?
Não me admiro nada. O principal
conselheiro do presidente Bush em questões de bioética tem vindo
a pronunciar-se contra
a manipulação genética em humanos. Acha que o DNA é quase como
a alma que andávamos à procura. É claro que é muito tentador
dizer que eles são atrasados, mas também posso acreditar que
eles adoptam uma determinada maneira de olhar para o mundo. Têm o
direito de o fazer mas não de impor isso nem ao resto dos
americanos nem ao resto do mundo.
Gostaria
de ser clonado?
Não me importava de ser um clone. Como não
me importava de ser africano, chinês, um bebé proveta…mas não
quereria ser clonado.
Porquê?
Não me acho assim tão especial e também
ainda não conheci ninguém que valesse a pena clonar. Todos
tivemos enormes alegrias, enormes sofrimentos, perdemos pessoas
ganhámos outras. Tudo isso cria a identidade. E que não está no
ADN. As pessoas têm de perceber que clonar não significa criar
alguém idêntico ou igual. Até o ADN é diferente. À medida que
se envelhece cada uma das nossas células sofre milhares de alterações.
O ADN de uma célula de um indivíduo aos 20 anos não é o mesmo
do que tinha aos zero ou que vai ter aos 40.
Mas
o essencial permanece. A base é a mesma…
É. Há já crianças que nasceram nos
Estados Unidos que têm ADN de duas mães e um do pai. Na minha
percepção são clones. Foram buscar só um bocadinho do ADN
mitocondrial mas, afinal, qual é a percentagem necessária para
passar a ser um clone?
Para
que poderia servir então a clonagem?
Posso dar dois exemplos. Um homem já com
uma certa idade e que toda a sua família foi exterminada num
campo de concentração. Os seus espermatozóides já não
funcionam e desejaria deixar descendentes geneticamente
relacionados com ele. Este homem teria alguma razão em pedir para
ser clonado. Um outro exemplo é no caso de se tratar de um casal
homossexual.
Seria
abrir um precedente incrível…
Abre um mundo novo.
Um
admirável mundo novo?
Ou assustador. Vai depender da maneira
como isso for utilizado.
Quem
é que vai controlar isso? Quem é que vai decidir se o homem que
perdeu a família pode recorrer à clonagem?
Poderá ser uma coisa muito parecida com o
que já existe na Holanda em relação à eutanásia. Precisa da
opinião de três médicos. Podia ser um processo semelhante.
Uma
junta médica?
Talvez. Um grupo de consulta, de
aconselhamento. Mas que, no fim, se a tecnologia existisse, a
decisão era dele. È como a questão do aborto.
Em
Portugal, o aborto não é uma questão legal, a não ser em
determinadas circunstâncias, mas toda a gente sabe que acontece.
A clonagem pode acabar assim?
Provavelmente. Se continuar a ser proibida
vai ser como tudo o resto. Em Portugal faz-se eutanásia, faz-se
abortos. Não são poucos e até são fáceis. A clonagem vai
existir num mercado paralelo se for proibida.
Por
isso, aprova a clonagem reprodutiva…
Os motivos para fazer clonagem só são
maus se o queremos não é um fim mas um meio. Cada ser é um fim
em si. Não vejo diferença nenhuma em criar um ser novo por uma
metodologia clássica ou outra., assistida ou não. Mas, para já,
não sou a favor de uma liberalização da clonagem reprodutiva. Não
por razões éticas mas por razões técnicas. A tecnologia ainda
está muito longe de garantir algum tipo de qualidade. Podemos até
chegar à conclusão de que a clonagem reprodutiva nos humanos não
é possível ou que tem dificuldades que não podem ser
ultrapassadas.
No
caso da clonagem reprodutiva, essas duas pessoas que escolhem
criar um ser novo não vão criar uma nova pessoa que mistura os
genes dos dois, um filho, mas um “gémeo” idêntico de um
deles…
Não tenho dúvidas que vai causar muitos
transtornos. Como uma criança adoptada também pode causar numa
família.
É
a mesma coisa?
Não sei. Mas isso não quer dizer que um
deve ser feito e o outro não. Estou convencido que o número de
pessoas que se vai querer clonar vai ser infinitamente pequeno.
Isto de um homem e uma mulher se juntarem para fazer filhos
funciona em 90 por cento dos casos. Os outros 10 por cento podem
adoptar, têm reprodução assistida…Quem é que vai querer
clonar-se?
Não
acha que está a considerar apenas o lado “bom”? O que alguns
temem é a criação de exércitos de clones “maus”…
Há listas de espera de milhares de
pessoas que querem clonar os seus animais de estimação. Isso será
óptimo porque vão perceber que o clone do periquito, ou o cão
ou o gato que morreu, não vai ser o mesmo animal. Quando essa
mensagem passar, o desejo de fazer exércitos passa a ser não
realizável. E não podemos esquecer que já é possível fazer exércitos.
A clonagem cultural é a coisa mais poderosa que temos para fazer
clones. No século passado tivemos um Estaline e um Hitler que
mataram cem milhões de pessoas na Europa. Porque uns acreditavam
que a raça ariana era a única e pura. Outros que a ditadura do
proletariado é que ia salvar o mundo. Não foi necessário
clonagem genética. Foi clonagem na cabeça. Estou muito mais
preocupado com a clonagem cultural.
Quer
dizer que já há milhares de clones da pior espécie?
Há. E da melhor também. Por exemplo, um
dos grandes dramas em África são as crianças que foram educadas
na guerra. O número de jovens que foi “clonado” para matar é
muito significativo e perturbante. Vai demorar anos a reparar
isso.
Com
a clonagem genética seriam criados para isso, clonados à nascença…
Não sei o que é pior.
Na
religião também há essa “clonagem cultural”? A questão da
fé que une milhões de pessoas…
A fé tem a ver com clonagem mental.
Porque se acredita sem questionar. O que é que há de melhor para
definir clonagem cultural do que a fé? Todos acreditam na mesma
coisa. A Igreja Católica durante a inquisição matou,
exterminou… Hoje os mais agressivos serão os islâmicos que têm
regras absolutamente desumanas.
E
não tem medo que a clonagem reprodutiva possa ter os mesmos
efeitos?
Aceitamos que os outros acreditem noutras
coisas. É porque toleramos a clonagem cultural que eu acho que
devíamos tolerar a clonagem genética. A manipulação da informação,
a publicidade são formas de clonagem cultural. As duas formas de
clonagem têm perigos. A eugenia ( aplicação racional das leis
da genética à reprodução humana com o fim de obter melhoria
das estirpes) já existe. O que são as quotas de imigrantes
impostas pelos governos ou limpeza étnicas senão formas de
eugenia?
Mas
não será mais fácil fazer um clone cultural a partir de um
clone genético? Para uma seita formar o exército?
Não sei. Já houve seitas que não
necessitaram de clonagem genética para fazer isso. E o que é que
a gente vai fazer? Proibir? Alguma vez o proibir funcionou?
Acha
que, daqui a dois anos, a ONU irá aprovar a proposta de proibição?
Não acredito. Se calhar vão fazer mais
uma moratória, mais dois ou três anos porque ainda não têm
informação suficiente.
Há,
portanto, que investir nesta descoberta?
Essa é outra questão. Há muitos outros
problemas no mundo muito mais interessantes. Hoje 90 por cento do
dinheiro que se investe em saúde é para tratar os problemas de
dez por cento da população mundial.
Os
verdadeiros problemas quais são?
A
Sida, a malária, a tuberculose, a cólera, doenças
cardiovasculares, as doenças de quem come a mais e de quem não
tem nutrição suficiente. Comparando com estes problemas a
clonagem não tem interesse nenhum.
MAS
acredita-se que alguns destes problemas de saúde podem ser
atenuados com a clonagem terapêutica…
A clonagem terapêutica pode vir a trazer
resultados muito interessantes. Mas também aí eu imagino que vai
ser para tratar dos problemas de apenas dez por cento da população
do mundo. Na clonagem terapêutica alguns invocam o problema de
estarmos a pegar numa célula que tem a potencialidade de vir a
ser um embrião. Isso não é claro. Há mecanismos químicos de
impedir isso. Acho curioso que as pessoas que estão nas clínicas
de reprodução assistida sejam
muitas vezes completamente contra a clonagem.
Por
que pode acabar por significar concorrência?
É isso mesmo. O andarmos a manipular a
natureza pode voltar a levantar as questões sobre se temos o
direito de andar a fazer a reprodução medicamente assistida.
Quem é que nos dá esse direito? A questão da clonagem levanta
essas questões todas outra vez.
Há
quem argumente que a clonagem é algo contra a natureza…
Toda a medicina é contra a natureza.
Porque é que se fazem transplantes? Porque se vacina alguém?
Estamos a impedir que a natureza vá eliminando as pessoas que são
mais fracas. Tudo isso é interferir com a natureza…
Outros,
como referiu falam de um problema de dignidade…
Quando nasceu o primeiro bebé proveta
também se discutiu isso. E agora há dezenas de milhares de
meninos e meninas tubo de ensaio que ninguém trata de maneira
diferente. A dignidade de qualquer ser humano depende da maneira
como olhamos para ele. Não é uma coisa definida por ADN. Não há
um gene da dignidade.
Acha
que já existe, em algum lugar, um clone humano?
Não acredito. Os grupos que dizem que o
fizeram não têm credibilidade científica. Mas o facto de não
acreditar não quer dizer que não exista.
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