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Belona de Orlando Neves e
Cantigas Obscenas de Escárnio e Maldizer
 

"Região Bairradina", n.º 825, Novembro 2004

 

Esta é a última obra de Orlando Neves, senhor de uma vasta obra envolvendo a poesia, a ficção, o teatro, a literatura infantil, a crónica, o dicionário e muitas outras obras de classificação mais difícil como o ensaio histórico, a biografia, etc., etc.

Logo na capa há uma indicação de que se trata de uma obra de ficção. É verdade que hoje ninguém está mais preocupado com a classificação usual de género, isto é, os géneros interpenetram-se de tal modo que podemos encontrar características de um e outro no mesmo texto.

Ora, esta obra de Orlando Neves não conta propriamente uma “estória” como aquelas a que estamos habituados, por exemplo ao lermos as short stories americanas e por outro lado a obra apresenta uma linguagem altamente polissémica permitindo ao leitor trilhar várias pistas que lhe dão entendimentos múltiplos da obra. Isto é conseguido utilizando frequentes neologismos que decorrem da junção de duas palavras, por esta via transformadas numa única. Citemos alguns casos a título de exemplificação: semialmas, acordacorda, corpamado, maremorto, bocamor, milchamas, noitedalma, apassolento, amormorte, bramuge, florigrinaldar, etc., etc., etc.

Por outro lado ainda há imagens e metáforas que muito aproximam esta linguagem da linguagem poética.

Em qualquer dos casos, esqueçamos este pormenor do género, que não nos ajuda em nada, e passemos ao que é essencial. Esta obra é uma reflexão muita séria sobre a condição humana e também isto nos não deve causar admiração pois é disso que trata a maioria das obras do autor pelo que há nela também muito de ensaio. Embora o autor negue ser um ensaísta, a verdade é que pensa e está atento ao que se passa no mundo.

Queria chamar a atenção do leitor para as p. 36, 37 e 38 (cap. 32): é a descrição de uma enfermaria de hospital onde se encontram lado a lado vítimas da guerra (soldados, certamente), uns já mortos, outros muito próximos da morte, a memória do que foram, dos familiares que estão lá longe. É um relato pungente cuja força raramente encontro numa obra de ficção. Ignoro se o autor passou por situações destas mas estou inclinado a acreditar que não seria possível recriar nestas páginas um tal clima sem uma experiência da guerra que lhe estaria subjacente. Porventura, a experiência da guerra colonial.

Esse carácter quase ensaístico é particularmente evidente nas p. 59 a 61 (cap. 54) onde o autor reflecte sobre a humanidade e para que o leitor tome melhor consciência do tipo de problemas que constituem algumas das grandes preocupações do autor, passo a citar:

[...] A História é o ranço do homem, o talhador que corta a pedra em nome de evidências jamais comprovadas.

[...] Não, não há – não haverá – esperança. [...] Por isso, as revoluções, em nome de uma qualquer justiça, só foram serão um dos maiores logros criados pelo homem contra o homem. Nenhum dos conceitos morais de crenças ou ideologias é sério – sabem-no os seus autores que, deliberadamente, se enganam e enganam. A que se reduz [...] a ideia de esperança? A uma busca da felicidade, concepção de paz e prazer. Como fazer a paz e o prazer se o homem se opõe a si mesmo? Como valorizar essa luta entre o branco e o negro, em nome da esperança? Se há guerra, jamais haverá esperança.

[...] Esses sabiam [...] que o único valor humano [...] é o respeito absoluto e último e final pela vida. Esses sabiam que só o pessimismo como ponto inicial pode aglutinar os homens. [...] A vida em busca da eternidade, a perda do medo da utopia – pela destruição de todos os valores que até agora nos regeram.

Trata-se, ao fim e ao cabo, de um belo livro de reflexões que sugiro ao leitor. Livro para se ler devagar, meditando, como se faria com um livro de horas se ainda estivéssemos no século XIV.

 

E por falar no século XIV, não quero deixar de referir a tradução feita por Orlando Neves, do português medieval para o português actual, de um conjunto de 50 poemas, correspondente a 20 autores e a que deu o nome de Cantigas Obscenas de Escárnio e Maldizer. Estas cantigas são retiradas da edição do Prof. Rodrigues Lapa (1965), edição que foi repetida pela Profª Luciana Stegagno Picchio (1995; 4ª ed. de 1998).

Trata-se de uma tradução relativamente livre tentando manter a vivacidade e o ritmo do original. Tem a grande vantagem de trazer ao grande público uma obra que ele teria dificuldade em ler no original. Como a obra apresenta, lado a lado, o original e a tradução, o leitor pode, em cada momento, cotejar as duas versões e retirar daí o maior prazer. É uma edição da Editorial Notícias que em boa hora aceitou esta proposta de Orlando Neves que assim acrescenta ao seu já extenso currículo mais um trabalho em prol da divulgação da literatura portuguesa.

Naturalmente, pelo carácter obsceno dos poemas, não nos parece curial dar aqui exemplos da qualidade da tradução. O leitor interessado encontrará à venda este livro em qualquer livraria..  

Luís Serrano, Jan. 1994. 

 


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