Esta é a última obra de Orlando
Neves, senhor de uma vasta obra envolvendo a poesia, a ficção, o
teatro, a literatura infantil, a crónica, o dicionário e muitas
outras obras de classificação mais difícil como o ensaio histórico,
a biografia, etc., etc.
Logo na capa há uma indicação de
que se trata de uma obra de ficção. É verdade que hoje ninguém está
mais preocupado com a classificação usual de género, isto é, os
géneros interpenetram-se de tal modo que podemos encontrar
características de um e outro no mesmo texto.
Ora, esta obra de Orlando Neves não
conta propriamente uma “estória” como aquelas a que estamos
habituados, por exemplo ao lermos as short stories americanas e por
outro lado a obra apresenta uma linguagem altamente polissémica
permitindo ao leitor trilhar várias pistas que lhe dão entendimentos
múltiplos da obra. Isto é conseguido utilizando frequentes
neologismos que decorrem da junção de duas palavras, por esta via
transformadas numa única. Citemos alguns casos a título de
exemplificação: semialmas, acordacorda, corpamado, maremorto,
bocamor, milchamas, noitedalma, apassolento, amormorte, bramuge,
florigrinaldar, etc., etc., etc.
Por outro lado ainda há imagens e
metáforas que muito aproximam esta linguagem da linguagem poética.
Em qualquer dos casos, esqueçamos
este pormenor do género, que não nos ajuda em nada, e passemos ao
que é essencial. Esta obra é uma reflexão muita séria sobre a
condição humana e também isto nos não deve causar admiração pois é
disso que trata a maioria das obras do autor pelo que há nela também
muito de ensaio. Embora o autor negue ser um ensaísta, a verdade é
que pensa e está atento ao que se passa no mundo.
Queria chamar a atenção do leitor
para as p. 36, 37 e 38 (cap. 32): é a descrição de uma enfermaria de
hospital onde se encontram lado a lado vítimas da guerra (soldados,
certamente), uns já mortos, outros muito próximos da morte, a
memória do que foram, dos familiares que estão lá longe. É um relato
pungente cuja força raramente encontro numa obra de ficção. Ignoro
se o autor passou por situações destas mas estou inclinado a
acreditar que não seria possível recriar nestas páginas um tal clima
sem uma experiência da guerra que lhe estaria subjacente.
Porventura, a experiência da guerra colonial.
Esse carácter quase ensaístico é
particularmente evidente nas p. 59 a 61 (cap. 54) onde o autor
reflecte sobre a humanidade e para que o leitor tome melhor
consciência do tipo de problemas que constituem algumas das grandes
preocupações do autor, passo a citar:
[...] A História é o ranço do
homem, o talhador que corta a pedra em nome de evidências jamais
comprovadas.
[...] Não, não há – não haverá –
esperança. [...] Por isso, as revoluções, em nome de uma qualquer
justiça, só foram serão um dos maiores logros criados pelo homem
contra o homem. Nenhum dos conceitos morais de crenças ou ideologias
é sério – sabem-no os seus autores que, deliberadamente, se enganam
e enganam. A que se reduz [...] a ideia de esperança? A uma busca da
felicidade, concepção de paz e prazer. Como fazer a paz e o prazer
se o homem se opõe a si mesmo? Como valorizar essa luta entre o
branco e o negro, em nome da esperança? Se há guerra, jamais haverá
esperança.
[...] Esses sabiam [...] que o
único valor humano [...] é o respeito absoluto e último e final pela
vida. Esses sabiam que só o pessimismo como ponto inicial pode
aglutinar os homens. [...] A vida em busca da eternidade, a perda do
medo da utopia – pela destruição de todos os valores que até agora
nos regeram.
Trata-se, ao fim e ao cabo, de um
belo livro de reflexões que sugiro ao leitor. Livro para se ler
devagar, meditando, como se faria com um livro de horas se ainda
estivéssemos no século XIV.
E por falar no século XIV, não
quero deixar de referir a tradução feita por Orlando Neves, do
português medieval para o português actual, de um conjunto de 50
poemas, correspondente a 20 autores e a que deu o nome de Cantigas
Obscenas de Escárnio e Maldizer. Estas cantigas são retiradas da
edição do Prof. Rodrigues Lapa (1965), edição que foi repetida pela
Profª Luciana Stegagno Picchio (1995; 4ª ed. de 1998).
Trata-se de uma tradução
relativamente livre tentando manter a vivacidade e o ritmo do
original. Tem a grande vantagem de trazer ao grande público uma obra
que ele teria dificuldade em ler no original. Como a obra apresenta,
lado a lado, o original e a tradução, o leitor pode, em cada
momento, cotejar as duas versões e retirar daí o maior prazer. É uma
edição da Editorial Notícias que em boa hora aceitou esta proposta
de Orlando Neves que assim acrescenta ao seu já extenso currículo
mais um trabalho em prol da divulgação da literatura portuguesa.
Naturalmente,
pelo carácter obsceno dos poemas, não nos parece curial dar aqui
exemplos da qualidade da tradução. O leitor interessado encontrará à
venda este livro em qualquer livraria..
Luís Serrano, Jan. 1994.
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