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A toada de Portalegre

de José Régio

"Sol XXI", n.º 15, Dez. 1995 e "Litoral" de 22-12-1995 

 

 

Entre a obra, vasta, de José Régio assume indiscutível importância o poema Toada de Portalegre do livro Fado, cuja 1ª edição é de 1941. O poema adquiriu uma grande popularidade, em boa parte, graças à divulgação que lhe foi dada pelo declamador João Villaret.

Mas, sinceramente, não cremos que a sua popularidade seja devida unicamente a essa divulgação.

O carácter narrativo do poema que o aproxima de uma romanza, a estrutura rítmica com forte incidência de repetições anafóricas de vário tipo, o crescendo que termina num hino de amor a uma pequena acácia, tudo isso constitui um conjunto de ingredientes que fizeram deste poema uma obra-prima da nossa poesia do séc. XX.

Vejamos, com algum detalhe, como esta toada foi construída.

São, no seu todo, 246 versos distribuídos por 15 estrofes.

No entanto, destes 246 versos, 152 repetem-se duas, três e mais vezes. Curiosamente, diga-se desde já, que 152 é o produto de 246 por 0,618, o célebre número de ouro que teve larga aplicação em toda a arte desde a arquitectura à literatura (ver Jorge de Sena a propósito de Camões) e que constituía a chave da proporção harmoniosa. Apenas 94 versos aparecem uma única vez. Esta constatação põe-nos em evidência, de imediato, o carácter fortemente repetitivo do poema. Deve, no entanto, dizer-se que este carácter repetitivo se processa de uma forma complexa, sendo as unidades ou núcleos repetitivos conjuntos de 1, 2, 3, 4, 5, e 11 versos, núcleos que se alternam, conjugam ou imbricam das mais variadas maneiras.

No sentido de melhor compreender este mecanismo, considerámos a existência de 9 núcleos assim distribuídos:

 

núcleo A - versos 1 a 4 (repetição em 46-48, 75-78, 158-160 e 220-223);

núcleo B - v.5 a 7 (repetição em 34-36, 137-139 e 179-181);

núcleo C - v.8 a 18 (repetição em 79-81 e 224-231);

núcleo D - v.23 a 33 (repetição em 91-103, 98, 104, 140-150, 155-156 e 203-204);

núcleo E - v.39-40 (repetição em 49-50, 69-74, 107-112, 131-136 e 176-178);

núcleo F - v.43-44 (repetição em 122-123 e 171-172);

núcleo G - v.99 (repetição em 105);

núcleo H - v.118 a 125 (repetição em 129-130, 173-174 e 182-184);

núcleo I - v.147 (repetição em 151, 157 e 161).

 

A repetição processa-se quer com versos de estrofes diferentes, quer com versos da mesma estrofe.

Os núcleos vão-se alternando de uma forma variada e não monótona, o que confere ao poema uma estrutura rítmica rica, apresentando-se esses núcleos, quer na sua totalidade quer parcialmente.

Se designássemos os núcleos por letras de A a I (como atrás fizemos) e designássemos por um traço todos os versos ou conjuntos de versos que aparecessem apenas uma única vez, a Toada de Portalegre poderia ser simbolizada por uma sucessão de letras que mostraria uma distribuição praticamente aleatória dos núcleos, frequentemente separados por versos não repetitivos. Tal representação seria a seguinte:

 

ABCA-DB-E-F-AE-EAC-DGDG-E-HF-H-EBDIDI-DIAI-FH-EBH-D-AC

 

em que AE-EA constitui uma simetria por reflexão e por outro lado DGDG e DIDI-DI podem ser encaradas como simetrias por translação. Esta expressão mostra, a nosso ver, a existência de distribuições complexas de ritmo.

Também o tamanho dos núcleos mostra tendência para diminuir à medida que nos aproximamos do final do poema.

Alguns núcleos mantêm quase sempre a mesma extensão (o núcleo A, por exemplo, apresenta-se 5 vezes com extensões alternadas de 4 e 3 versos; o núcleo B apresenta sempre a mesma extensão; o C apresenta sucessivamente 11, 11 e 8 versos; o núcleo D tem uma clara tendência para o desaparecimento, pois o número dos seus versos vai decrescendo de 11 para 8 para passar depois a 5, 7, 3, 2 e 2. Os restantes núcleos mantêm-se sensivelmente constantes na sua extensão.

Há que referir, no entanto, que os versos que se repetem, nem sempre o fazem de modo textual. Régio, ao longo do poema, não raro lhe introduziu pequenas variantes. Isso é tão interessante que delas damos conta nas linhas que seguem. Assim:

                                                                                              Variantes

Em Portalegre, cidade (v.1,19,46,75 e 158)

Que em Portalegre, cidade (v. 220)

De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros (v. 3, 48, 77, 160 e 222)

De montes e de oliveiras (v. 21)

Morei numa casa velha (v.4)

Na casa em que morei, velha (v.78)

Aos pés lá da casa velha (v.223)

Velha, grande, tosca e bela (v.5)

Na tal casa tosca e bela (v.34)

Da tal casa tosca e bela (v.137 e 179)

À qual quis como se fora (v.6,35,87,138 e 180)

Quis-lhe bem, como se fora (v.16)

Lá vem o vento soão! (v.23)

Que havia o vento soão (v.91,98 e 104)
Como é que o vento soão (v.140)

Em Portalegre, dizia (v.30 e 100)

Em Portalegre sofria (v.148)
Cidade onde então sofria (v.31 e 101)

Coisas que terei pudor (v.32,102,149 e 155)

 

Que será bom ter pudor (v.203

De contar seja a quem for (v.33,103,150 e 156)

De as contar seja a quem for (v.204)

Uma pequena varanda (v.39)

Era uma bela varanda (v.49)
Daquela/Bela/Varanda (v.69-71)

Àquela/Minha/Varanda (v.107-109)
Naquela/Bela/Varanda (v.131-133)
E o vento a traz à varanda (v.175)

Diante duma janela (v.40)

Naquela bela janela! (v.50)
Daquela/Minha/Janela (v.72-74,110-112, 134-136 e 176-178)

E ao vento que anda, desanda (v.43)

Que o vento que anda, desanda (v.122)
Ao vento que
anda, desanda (v.171)

Lá num craveiro que eu tinha (v.118)

Lá no craveiro que eu tinha (v.182)

Onde uma cepa cansada (v.119 e 182)

Furando a cepa cansada (v.129)

Mal dava cravos sem vida (v.120 e 184)

Que dava cravos sem vida (v.130)

Poisou qualquer sementinha (v.121)

Confia uma sementinha (v.173)

Errando entre terra e céus (v.125)

Perdida entre terra e céus (v.174)

De se lembrar de fazer? (v.99)

De fazer (v.105)

Me trouxe a mim que, dizia (v.147)

Me trouxe a mim essa esmola (v.151)

 

A profusão de variantes de cada verso, aliada ao modo como se articulam os núcleos é, pois, responsável por um ritmo não apenas bem marcado como ainda suficientemente complexo para evitar o tom monocórdico de uma litania, por exemplo.

Ao mesmo tempo, Régio prepara sabiamente com indiscutível "suspense" o efeito final dado pela salvação e crescimento da pequena acácia:

 

                        Trazer [...]/O testemunho maior (v.106 e 113)

                        Poisou qualquer sementinha (v.121)

                        Eis que uma folha miudinha/Rompeu (v.127-128)

                        Me trouxe a mim essa esmola (v.151)

                        Ao vento [...]/Confia uma sementinha (v.171-173)

                        E o vento a traz à varanda (v.175)

                        Nasceu essa acaciazinha (v.185)

                        Que depois foi transplantada/E cresceu (v.186 e 187)

                        A minha acácia crescia (v.232)

                        E a cada raminho novo/Que a tenra acácia deitava (v.237-238)

                        Como se fizera um poema,/Ou se um filho me nascera (v.245-246)

 

Efeito final que tem a força de um poema (ou de um filho) e que se contrapõe à solidão do poeta ([...]obrigado / Pela doce companhia, v.234-235 e Na longa e negra apatia / Daquela miséria extrema / Em que eu vivia, / E vivera, v. 241-244).

Enquanto isso, o poeta, pela contínua repetição, dá a imagem obsessiva do Alentejo onde se cruzam serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros e também essas terríveis noites do vento soão, com seu cortejo de desgraça e desespero.

É essa simples acaciazinha, grito de amor e esperança para quem desespera da humanidade mas ainda não da vida, a mensagem muito bela contida neste poema porque

 

                        Quem desespera dos homens,
            
            Se a alma lhe não secou,
            
            A tudo transfere a esprança
            
            Que a humanidade frustrou:
            
            E é capaz de amar as plantas,

                        [...]

                                                            (v.194-198)

Luís Serrano, 1995. 

 


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