Não sei qual será
o futuro da poesia em particular nem o da literatura em geral e
menos ainda o da arte.
Do que estou
convencido é que a arte durará enquanto a espécie humana existir
porque nem a ciência nem a religião esgotam os vários aspectos que
as contradições humanas assumem.
A reflexão, os
sentimentos, as emoções reflectem-se no homem de um modo que para as
superar ou para as entender ou para as neutralizar o homem necessita
da arte como, de resto, sempre necessitou desde antes ainda das
pinturas de Lascaux e portanto muito antes da escrita.
Estes lugares
comuns, porque de lugares comuns se trata, vêm a propósito deste meu
livro chamado As Casas Pressentidas.
Tenho do fenómeno
poético algum conhecimento e algumas ideias que me têm guiado nesta
escrita que exerço há mais de 40 anos.
Em primeiro lugar
e como se adivinha por duas das três epigrafes, o autor tem uma
concepção ascética, se o palavrão não é excessivo, da poesia; os
versos de Alexandre O’Neill não fazer bom e bonito, / mas fazer bom
e expressivo… traduzem de modo fiel o sentimento de incomodidade que
o autor experimenta com toda a literatura delicodoce que vagueia
pelas livrarias e que tem o mesmo papel que a graxa com que aquele
homem engraxava o burro na pretensão de o vender como novo. Também a
epígrafe de Gonzalo de Berceo vai no mesmo sentido: procurar o miolo
e desperdiçar o invólucro.
Assumir uma
posição deste tipo é obviamente um risco porque se perdem, de uma
assentada, aqueles leitores a quem interessa sobretudo as
manifestações de folclorismo e tudo aquilo a que eu costumo chamar o
bonitinho, o efeito fácil. Há receitas para conseguir esses efeitos
e eu conheço-as, naturalmente; mas ficaria mal com a minha
consciência se seguisse por aí. Não significa isso que eu encontrei
o caminho certo; significa apenas que dentro das minhas
possibilidades, por mais modestas que sejam, eu procuro ser coerente
e dar testemunho do meu tempo e das minhas preocupações através de
uma linguagem que pretende ser a linguagem poética.
Este livro aborda
o tema das casas porque toda a vida se faz em torno de um topos,
sobretudo se se trata da vida humana, mas à qual nem os outros
animais escapam como se insinua num poema chamado A Casa dos
Pássaros. Há uma topografia subjacente à amizade, ao amor, ao
castigo, à doença, à própria morte.
Todas as
civilizações assentam numa célula (seja a família, o clã, o que for)
que tem a ver com uma casa, mesmo que seja uma habitação troglodita.
Todo o homem está
condicionado por mil laços que se entretecem tendo muitas vezes por
fundo uma casa. Ela constitui um centro de gravidade mas é também
uma metáfora de um locus amoenus, algumas vezes ganho, quantas vezes
perdido.
Ela tem a ver com
o paraíso perdido que todos nós, uns mais outros menos,
transportamos connosco.
Ela é o último
reduto ameaçado de uma certa privacidade que os meios de comunicação
ameaçam irreversivelmente.
Por isso, o autor
não pode deixar de apelar para a memória, único baluarte onde o
equilíbrio existe, e por uma operação de cosmética (a metamorfose da
criação artística), recriar um mundo perdido.
Ao fazê-lo, o
poeta pode assumir as suas próprias contradições (no fundo é delas
que vive) e esperar que o vento sopre// enfune as velas// ou as
destrua/ definitivamente.
Pela casa
circulam, obviamente, coisas que a tornam habitável quais sejam uma
reprodução de um quadro de Brüghel, um quinteto de Schubert, livros
dos poetas meus amigos e também de muitos que não conheço ou que não
conheci porque já não pertenciam ao mundo dos vivos quando eu nasci.
Não são
promissores os tempos que correm; melhor dizendo: não são limpos os
tempos que correm. Por isso o poeta fala de regresso (como se o
tempo pudesse andar para trás!):
Regresso/ a uma
paisagem/ com árvores/ e terra limpa.
A reconstrução de
um tempo, repita-se, só é possível pelos passos de mágica da arte e
daí que o escritor afirme: Com palavras/ reescrevo/ as paredes da
casa porque há um texto/ que perpetua! a casa. (Perdoe-se-me a
eventual falta de decoro em me citar a mim mesmo).
Universidade de Aveiro, 28 de
Outubro de 1999.
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