Gonçalves Lavrador, Sobre o cinema de Vasco Branco, in: Vasco Branco. Retrospectiva Cinematográfica. Comemorações dos 100 anos do cinema português, Aveiro, Maio de 1996, pp. 3-7. |
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Sobre o cinema de Vasco Branco |
Pedem-me
para escrever duas palavras sobre a personalidade de Vasco Branco como cineasta.
Embora afastado já há muito tempo da actividade de ensaísta e de filmólogo,
não posso recusar um tal convite. Na
multímoda actividade artística e intelectual de Vasco Branco, a criação cineástica
não desempenhou um papel dos mais importantes, temos que reconhecer. Foi
exercida, quase sempre, senão mesmo sempre, nos intervalos de descanso de
outros trabalhos a que se dedicava com mais empenho porque, aparentemente, pelo
menos, os considerava mais importantes. Estes trabalhos incluíam, nomeadamente,
a elaboração das suas obras de escritor (contista, novelista, romancista,
articulista de diversos jornais e revistas), a criação das suas pinturas e
outras obras plásticas, as tarefas, igualmente criativas, de ceramista. No meio
de todas estas múltiplas actividades, houve efectivamente alguns dias em que se
dedicou, podemos mesmo dizer, com algum entusiasmo, ainda que passageiro, ao
cinema, não apenas como cineasta, mas também no campo da divulgação
cultural, da participação na defesa do cinema como arte, e no fomento dum público
culto e consciente. O seu esforço desenvolve-se então em duas acções
aparentemente afastadas uma da outra mas, na realidade, profundamente
imbricadas: a do cinema de amadores, por um lado, e a do cineclubismo, por
outro. E aí a sua intervenção é, de facto, de salientar e de elogiar. Mas
trata-se sempre de ‘intervalos” entre outras actividades, de acções
exercidas com entusiasmo e total e desinteressada dedicação, mas sem
continuidade, sem persistência e luta corajosa pela ultrapassagem das inevitáveis
condições limitativas que sempre surgem no caminho a percorrer. Pelo contrário,
os restantes trabalhos de Vasco Branco são sempre exercidos por ele com uma
segura persistência e uma bem visível continuidade — facto ajudado pelo
desenvolvimento mais lento e mais individualista desses mesmos trabalhos. Há,
porém, duas razões que talvez expliquem esta nossa opinião, este aspecto
característico da actividade de Vasco Branco. São elas as seguintes: 1ª
- o ambiente, sempre desanimador, sempre ingrato e hostil, do cinema português
no tempo do fascismo salazarista, duas vezes nocivo, quer no plano da criação
cineástica, quer mesmo no que respeita à reflexão filmológica e até à
simples existência dum pequeno público verdadeiramente interessado pela
semiose fílmica; e 2ª
- uma certa tendência, como que congénita, de Vasco Branco para um determinado
“isolacionismo”, para um excesso de ‘individualismo” artístico na criação
semiótica que se não coaduna com o aspecto inegavelmente “colectivo” da práxis
fílmica seja ela qual for, embora em certos casos mais do que noutros (em
contradição com artes de práxis verdadeira e profundamente
“individualista” como, por exemplo, as artes plásticas e a literatura). Mas
o que é certo é que, apesar destes óbices, sempre reconhecemos talento em
Vasco Branco como cineasta, sobretudo quando se trata de filmes de animação,
de filmes ditos “abstractos” (isto é, adiegéticos ou protodiegéticos (1)
e documentários. Nos primeiros é de salientar um humor subtil, sempre
inteligente, e uma saborosa e ingénua poesia; nos segundos, uma notável
sensibilidade estética, um certo sentido do ritmo e um amor por essa grande
arte paradigmática para todas as artes que é a música (2); nos últimos, um
olhar sensível e como que romântico sobre os homens e a paisagem, um amor pela
natureza e pelas manifestações da arte popular e tradicional. Sobre a ficção
nada poderemos dizer pois a pobreza de meios imposta pelo “amadorismo”
sempre impediu, como o leitor com certeza bem compreenderá, um acesso pleno do
cineasta aveirense a um tal tipo de cinema mesmo em curtas metragens. Muitas
vezes tivemos ocasião de pedir a Vasco Branco que deixasse a filmagem no
modesto formato de 8 mm (e, mais tarde, de super-8 mm) com viragem do filme, e
passasse a adoptar, por exemplo, o formato, então semi-profissional, de 16 mm
com negativo. Tal formato permitiria uma determinada qualidade técnica que nos
parecia indispensável e garantiria uma certa perenidade e expansão dos filmes,
além de nos oferecer a possibilidade de manipulação mais fácil da montagem
final (inclusivamente, a montagem audiovisual) e de adopção de som síncrono.
Por último, se tal se revelasse necessário, até havia a possibilidade de
ampliação do filme de 16 mm para filme de 35
mm, como, aliás, aconteceu com algumas películas do chamado “novo cinema
português”. Além desta passagem ao 16 mm, aconselhávamos também a Vasco
Branco que procurasse um “trabalho de equipe” na produção dos filmes,
evidentemente dentro das modalidades possíveis no nosso meio. Mas isso nunca
foi possível. Uma única tentativa de filmagem em 16 mm com negativo foi
inteiramente inutilizada por deficiências de natureza técnica, sobretudo no
que respeitava à captação de som síncrono (que, na altura, constituía um
problema técnico difícil de resolver para os amadores). Mas de modo nenhum
podemos irrogar as culpas da frustração desta tentativa a Vasco Branco, antes
a todas as pessoas que participaram, entre as quais figurava o autor destas
linhas. O nosso primeiro contacto com o cinema de Vasco Branco verificou-se há já muitos anos e foi, para nós, nessa altura, uma agradável surpresa. Admirávamos então certos documentários que denominávamos de “documentários sinfónicos” (como, por exemplo, “A Sinfonia duma Capital” de Walter Ruttmann, “Douro, Faina Fluvial” de Manuel de Oliveira, os filmes de Dziga Vertoff e de Joris Jvens, etc.) e algumas obras do “cinema abstracto”, isto é, do cinema adiegético e protodiegético (este último na fronteira entre o diegético e o adiegético cujo expressado se situa, como se sabe, em plena região dos puros abstractos emocionais). Entre esses documentários, que muito apreciávamos, incluía-se “O Espelho da Holanda”, realizado em 1950 por Bert Haanstra, notável cineasta holandês, película contemplada com o Grande Prémio de Documentário do Festival de Cannes de 1951. Foi, portanto, com muita curiosidade, mas também com certo receio, que assistimos, pela primeira vez, à projecção dum filme de Vasco Branco, precisamente “O Espelho da Cidade”, realizado em 1961, em que o cineasta aveirense aplicava à sua própria cidade os métodos semióticos que Haanstra aplicara anteriormente ao seu país, a Holanda. O nosso receio derivava principalmente da possibilidade, bastante provável, aliás, de que o realizador português nem sequer se conseguisse aproximar da pureza e da qualidade estéticas da obra de Haanstra. Este abre o seu filme com um plano vulgar: a reflexão na água dum canal de Amsterdão dum edifício holandês dos mais típicos, tal como essa reflexão nos aparece, na realidade, à vista desarmada. Invertido, portanto: a parte inferior do edifício para cima e a parte de cima colocada, na água, em baixo. Mas o realizador depressa roda o quadro e passa a mostrar-nos os edifícios não-invertidos, isto é, na posição correcta. Apenas a ondulação da água, transmitida à reflexão das figuras, cria caprichosas ondulações plásticas. lentas ou rápidas, serpenteantes ou ziguezagueantes, densas ou leves, líquidas ou mesmo pastosas, planares ou estereotípicas, sempre variáveis e bem ritmadas. A Holanda é-nos então mostrada, sinfonicamente, através desta permanente e estruturada deformação plástica que uma vezes se acentua, outras se atenua, chegando a atingir certos “climaxes” expressivos muito próximos da completa adiegetização. Perante esta descrição, ainda que resumida, pode-se imaginar o receio com que assistimos, alguns anos depois de ter visto o filme de Haanstra, a um outro documentário onde se aplicava o mesmo processo: “Espelho da Cidade”. Mas Vasco Branco superou tudo o que poderíamos imaginar e não nos desiludiu nem justificou, no mais pequeno pormenor que fosse, os nossos receios iniciais. Realizou uma obra que nada fica a dever à do mestre holandês, tendo-o ultrapassado, porventura, sob certos aspectos, em primeiro lugar pela aplicação, bastante feliz e enriquecedora, da cor, e, em seguida, por, em certos momentos cruciais, quando sentiu uma tal necessidade semiótica, não hesitar em atingir uma completa desdiegetização, uma perfeita expressão adiegética (aqui, mais uma vez, grandemente valorizada pela exploração de inesperados efeitos cromáticos). Na
mesma ocasião em que assistimos à projecção de “Espelho da Cidade”,
vimos também um filme de animação de Vasco Branco, realizado em 11960
(anterior, portanto, ao “Espelho”), feito com recortes de papel de lustro.
Referimo-nos a “Circo & Etc.” que, salvo melhor opinião, nos parece a
obra-prima de Vasco Branco no campo da animação, com o seu ritmo característico
e bem marcado, o seu humor inteligente e a sua poesia ingénua. Este filme
confirmava, portanto, o talento do realizador, mas agora no campo das curtas
metragens de animação. O resto da filmografia do cineasta aveirense não
desmente, de resto, esta afirmação. É claro que nem todos os pequenos filmes
que realizou apresentam o mesmo valor semiótico. Alguns mesmo têm objectivos
principalmente didácticos ou de estudo etnográfico (como, por exemplo,
“Panos Cerâmicos” e “O Jugo Vareiro”). De qualquer modo, mesmo com seus
“altos” e “baixos”, neles está sempre presente o artista talentoso e
sensível, permanentemente atento aos problemas mais angustiantes do homem
contemporâneo em todas suas dimensões: na dimensão social, na dimensão política,
na dimensão estética e semiótica e, acima de tudo, na dimensão ética. Para
qualquer artista ou mesmo pensador, a melhor homenagem que lhe podemos prestar
deve consistir, acima e antes de tudo o mais, em apresentar e divulgar as suas
obras, o seu trabalho criador e o seu pensamento. Por mais egocêntrico que seja
o artista (neste caso, o cineasta), por mais solipsista que se revele nas suas
atitudes e nas suas opiniões, por mais elitista (digamos assim) que se revele o
seu estilo e a sua mensagem por se dirigirem a uma pequena minoria pre-escolhida,
por mais isolado que se encontre na vida pública e até mesmo na própria vida
privada, jamais os seus trabalhos artísticos deixarão de constituir um modo de
comunicação, uma semiose, e, por isso, só se justificam se tiverem um público,
mesmo que este seja relativamente pequeno. E quanto maior for esse público,
melhor, desde que isso não implique a traição aos ideais e conceitos estéticos
e ideológicos mais profundos inerentes ao artista considerado. Mesmo que
afirmem o contrário (como um realizador português que, há anos, proclamou que
não lhe interessava ter público para os seus filmes!) isso constitui apenas
uma blague pour épater les bourgeois. De
facto, todos os realizadores destinam as suas obras a um público, seja ele qual
for, de contrário não valia a pena apresentá-las a espectadores e muito menos
realizá-las... Também
no caso de Vasco Branco julgamos que a melhor homenagem que a Câmara Municipal
de Aveiro lhe poderia prestar seria a edição duma videocassete com os seus
filmes, se possível acompanhados por conversas e comentários sobre esses
mesmos filmes cuja figura central seria, naturalmente, o próprio Dr. Vasco
Branco. E claro que todos reconhecemos que a videocassete não constitui, hoje
em dia, uma reprodução satisfatória e persistente das obras fílmicas. Por vários
motivos, que não interessa agora esmiuçar. O mais importante, quanto a nós,
é a sua degradação progressiva com a passagem do tempo (inconveniente que só
desaparecerá quando se adoptar o videodisco opticodigital, cuja tecnologia já
existe). De qualquer modo, seria interessante que a obra cinematográfica
completa (ou quase completa) de Vasco Branco se divulgasse entre todos os
apreciadores de cinema do país (que não serão muitos, mas alguns ainda serão),
mesmo com os inconvenientes resultantes do processo tecnológico usado na gravação.
Por outro lado, esta gravação garantiria (através duma cuidadosa pósprodução
de vídeo dirigida pelo próprio realizador) o rigoroso e permanente sincronismo
imagem-som que, como se sabe, é bastante precário e variável quando se adopta
a projecção de filmes de 8 mm ou de super-8 mm que, em si mesmos, não sejam
sonoros. Aqui
fica a sugestão Aveiro,
14 de Abril de 1996 GONÇALVES
LAVRADOR. _____________________________ NOTAS: (1)
- Sobre a noção de “diegese” ver o Apêndice ao nosso ensaio
“Estudos de Semiótica Fílmica. Introdução Geral e Prolegómenos”, Edições
Afrontamento, Porto, 1984. (2)
- Vasco Branco chegou mesmo a apresentar ao Primeiro Congresso Nacional de
Cinema de Amadores, realizado em Aveiro em Outubro de 1970, uma Comunicação
sobre “cinema abstracto”. Deve dizer-se que um tema tão importante para a
estética como é o que se refere à “arte abstracta” tem sido praticamente
ignorado por quase todos, senão mesmo todos, os grandes teóricos da semiótica
(inclusivamente os que se dedicaram ao estudo da estética). Trata-se, porém,
dum problema fundamental para quem quiser compreender, em toda a sua extensão e
profundidade, o conceito de “arte” ou “modo de expressão”. |
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