Acesso à hierarquia superior.


André Ala dos Reis, Ainda vida, 1980.
Falar do André

É difícil falar dum amigo que já lá vai.

Porque ficou, dele, em nós.

É difícil.

O André escolheu, na multidão das suas leituras, um pouco de Lorca:

(………………… pero que todos sepen que no he muerto;
que hay un establo de ora en mis labios;
que soy el pequeño amigo del viento Oeste;
que soy la sombra inmensa de mis lagrimas.
(…………………..)

Nisto está muito, tudo, do que um jovem quis dizer e, por conta do que foi dizendo, nada a vida lho deixou dizer.

Sejamos objectivos.

Lembramo-nos, todos nós, seus companheiros e amigos, do seu ar bonacheirão.

No seu rosto sentia-se a intranquilidade duma calma que, não sendo dele — a calma —, nos procurava transmitir.

Profundamente honesto consigo, exigente.

Rigoroso na relação estabelecida.

Algo paternalista.

Mas bom!

Disse exigente. Só quem não com ele viveu — e eu vivi — não compreende o nível da exigência inteligencial que o André punha em tudo o que fazia, em tudo com que e com quem lidava.

Mesmo quando brincava, o André deixou vendida a imagem de como o brinquedo era a sua «compra» de amizade.

Seriíssimo, intelectualmente, ele, criança grande que eu balbuciava, em todo o momento procurava-se nos outros.

Lembro-me, como se hoje fora, que, um dia, me deu uma caixa vazia de charutos.

Disse-me:

— A tua avó dá-te vinte e cinco tostões por semana. Vamos lá abaixo, e vais juntar essa «massa» para comprar livros na «Feira de Março», porque são mais baratos. Mas são os mesmos. A caixa fica aqui na minha estante.

Foi assim. Eu era menino de cerca de 10 anos.

Marcou-me. A mim, mais do que, possivelmente, qualquer outro.

Desenhámos, juntos.

Ouvi poesia, dele.

Falei inglês, por ele.

«O teu accent é muito americano», dizia ele. «Já és embrionariamente, portanto, empresário». Assim razoava. Brincando...

Deliberadamente optei por isto: por aquilo que ele mais me disse.

Pelos passeios, a pé, de quilómetros ao longo da nossa Ria, parando aqui e além, tirando uma que outra fotografia: Vista Alegre, Barra, Costa, Forte. De tudo há registo.

Das tardes, ouvindo Shakespeare, por ele lido com amor. Do seu Thomas Mann que o endemoninhou, até ao fim.

Do nosso «lunch», depois de lavar as mãos, nas chávenas da madrinha com o gato desenhado na asa.

No cágado que morreu no quintal.

Na cave dos segredos onde se perdia a memória do seu tio, em livros, revistas, papelada infindável.

Na neo-camoneana, do tio.

No rádio que ouvíamos. No chapéu do padrinho Amadeu.

A cave era lúgubre. As escadas que levavam ao quente café-com-leite da madrinha, muito íngremes. Caí algumas vezes.

Mas isto mesmo, com o calor da amizade, foi mesmo, mesmo, mesmo, a estúpida coisa que fui capaz de escrever por conta da inteligente — sua — amizade que sempre soubemos manter.

Eu sou «eI pequeño amigo del viento Oeste».

Ele será, é, «la sombra inmensa de mis lagrimas».

É tudo...: «de mis lagrimas».

GASPAR ALBINO


  Página anterior  Página inicial  Página seguinte