Acesso à hierarquia superior,

se houver domingo à tarde, 1.ª ed., Leiria, 2021, págs. 65-66

 
 

um pouco de sol, um pouco de chuva. pouco importa.

que abres as mãos à primavera mesmo

que seja inverno, outono ou verão, e vais ver os

barcos chegar, ainda que não haja mar nem
barcos, mas porque é assim que se encontram

as coisas do coração.

um pouco de sol, um pouco de chuva, sei lá. mas

que recebas com alegria as coisas tristes, as

mágoas, que te comovas com as pessoas que te

faltam; que não precisas de palavras, gestos ou

proclamações. basta que sintas, que penses, que

acredites que de alguma maneira hão de saber da

falta que te fazem. recorda sempre que não há na

vida certezas, que tudo nos escapa.

um pouco de sol, um pouco de chuva. não

importa. aceita tudo e o seu inverso, mas nunca

as injustiças, a maldade e uma longa lista

de nomes que só te têm feito mal. resiste-lhes, para

que possas ser diferente. constrói em ti bons

sentimentos, não aceites a iniquidade.

um pouco de sol, um pouco de chuva. pode ser.

que não há no tempo humano o tempo das

estrelas. o que há é uma dor de tudo o que nunca

nos pertence. das coisas que nunca se agarram a

nós, que nos fogem, que nos deixam cada vez mais
para trás.

sim, um pouco de sol, um pouco de chuva. que

pode ser igualmente um pouco de amor, um

abraço, um aceno, uma ainda que pequena

palavra que se desprendeu do teu coração e tocou

este e aquele, quem se cruzou contigo, quem se

sentou contigo aqui ou ali, os que estavam na

mesma rua ou na outra rua e nunca viste porque

não calhou, e assim os conhecidos, os vizinhos, os

desconhecidos, e todos os que te são estrangeiros,
embora agora saibas que não há estranhos

nem estrangeiros: somos todos em cada um.

 
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