Mariana Isabel Cruz Reis, Vácua Perfeição, 2005.

Vácua Perfeição

 

Acordo num pesadelo.
Sou um anjo suicida,
Corpo sem alma,
Enrolado num novelo
De sufocante lã grossa,
Envolto numa casca
Impermeável ao fogo e à geada.
Sou uma muralha despida,
Forte, fingidamente selada.
Tão destruída por dentro
Que severas, suas paredes sombrias
As ruínas não protegem do vento.

Sou águia de bico curvo,
Predadora na fome e na solidão.
O que caço, devoro,
O que adoro, despedaço.
A ave porque voa somente, só
Abandona o doce e o amargo da paixão.
Sou um fardo seboso,
Parasita concupiscente,
Que se avidamente alimenta
Dos podres da vida mascarados de jasmim.
Aqui mora o frio inferno manhoso,
Diabo malvado me rouba de mim.

Sou bola de sabão,
Risonha, redonda, perfeita.
Caminho como flutuo,
Que frágil é o dom de enfeitiçar.
Sufoco na essência vazia
Da doce mortalha minha.
Oh, divinamente pura que és!
Se te afago,
Dissipa-se tua volátil magia.
Não te cobiço, apenas te olho
E permaneces inquebrável,
Eterna para mim.

Sou brilhos,
Sou asas,
Sou chuva.
Dourado, carrega o cometa
Faísca incandescente.
Foge ela, selvagem,
Corta o repouso dormente
Que derrete na terra a clara aragem.
E num brusco instante,
Um desejo fugaz a dissolve,
Fulminante é a estrela cadente
Que riscou os céus de rompante.

Sou sal
Das lágrimas da escuridão.
Afundam-se os campos moles,
Barrentos nas suas fossas.
O choro dos céus,
Lívido, lânguido, trigueiro
Arrasta consigo todo o mal.
E na argila alagada
Se colhem as finas sementes
Do arrependimento e do perdão.
Sou desfile de fantasias,
Perdidas lamúrias na busca de um Messias.

Sou louco,
Sou tudo,
Sou Zeus.
Na sórdida podridão de meu ser
Me ergo, me sujo, me faço.
Qual dançarina exótica esquecida
Nas orgias que festejam o próprio desdém.
Sou uma Fénix imortal,
Que trás em si o suplício
Atormentado e trivial de viver.
Mas sou ninguém,
Se me falha o velho vício de amar.

 

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