É difícil falar dum amigo que já lá vai.
Porque ficou, dele, em nós.
É difícil.
O André escolheu, na multidão das suas
leituras, um pouco de Lorca:
(………………… pero que todos sepen
que no he
muerto;
que hay un establo de ora en mis labios;
que soy el pequeño amigo del viento Oeste;
que soy la sombra inmensa de mis lagrimas.
(…………………..)
Nisto está muito, tudo, do que um jovem quis
dizer e, por conta do que foi dizendo, nada a vida lho deixou
dizer.
Sejamos objectivos.
Lembramo-nos, todos nós, seus companheiros e
amigos, do seu ar bonacheirão.
No seu rosto sentia-se a intranquilidade duma
calma que, não sendo dele — a calma —, nos procurava transmitir.
Profundamente honesto consigo, exigente.
Rigoroso na relação estabelecida.
Algo paternalista.
Mas bom!
Disse exigente. Só quem não com ele
viveu — e eu vivi — não compreende o nível da exigência inteligencial que o André punha em tudo o que fazia, em tudo com
que e com quem lidava.
Mesmo quando brincava, o André deixou vendida
a imagem de como o brinquedo era a sua «compra» de amizade.
Seriíssimo, intelectualmente, ele, criança
grande que eu balbuciava, em todo o momento procurava-se nos
outros.
Lembro-me, como se hoje fora, que, um dia, me
deu uma caixa vazia de charutos.
Disse-me:
— A tua avó dá-te vinte e cinco
tostões por semana. Vamos lá abaixo, e vais juntar essa «massa»
para comprar livros na «Feira de Março», porque são mais baratos.
Mas são os mesmos. A caixa fica aqui na minha estante.
Foi assim. Eu era menino de cerca de 10 anos.
Marcou-me. A mim, mais do que, possivelmente,
qualquer outro.
Desenhámos, juntos.
Ouvi poesia, dele.
Falei inglês, por ele.
«O teu accent é muito americano»,
dizia ele. «Já és embrionariamente, portanto, empresário». Assim
razoava. Brincando...
Deliberadamente optei por isto: por aquilo
que ele mais me disse.
Pelos passeios, a pé, de quilómetros ao longo
da nossa Ria, parando aqui e além, tirando uma que outra
fotografia: Vista Alegre, Barra, Costa, Forte. De tudo há
registo.
Das tardes, ouvindo Shakespeare, por ele lido
com amor. Do seu Thomas Mann que o endemoninhou, até ao fim.
Do nosso «lunch», depois de lavar as mãos,
nas chávenas da madrinha com o gato desenhado na asa.
No cágado que morreu no quintal.
Na cave dos segredos onde se perdia a memória
do seu tio, em livros, revistas, papelada infindável.
Na neo-camoneana, do tio.
No rádio que ouvíamos. No chapéu do padrinho
Amadeu.
A cave era lúgubre. As escadas que levavam ao
quente café-com-leite da madrinha, muito íngremes. Caí algumas
vezes.
Mas isto mesmo, com o calor da amizade, foi
mesmo, mesmo, mesmo, a estúpida coisa que fui capaz de escrever
por conta da inteligente — sua — amizade que sempre soubemos
manter.
Eu sou «eI pequeño amigo del viento Oeste».
Ele será, é, «la sombra inmensa de mis
lagrimas».
É tudo...: «de mis
lagrimas».
GASPAR ALBINO