Concluída a
reconversão de «ecos do mesmo GRITO» para o formato digital, cinquenta e
cinco anos após a sua impressão e publicação em papel, é chegado o
momento de tecer algumas considerações, não apenas relativamente aos
seus autores, mas também às suas características, à forma como o
reconvertemos e, já agora, também, pensando nas gerações futuras que
continuem a saber comunicar através da palavra escrita, fazer um balanço
entre os dois suportes de comunicação. Temos, pois, à maneira de um
sumário, pelo menos estes tópicos: os autores do livro e as
características do trabalho por eles produzido e as duas versões agora
existentes, bem como aspectos decorrentes das reflexões que forem sendo
efectuadas.
«ecos do mesmo GRITO» é um livro de
poesia escrita por Costa e Melo entre Junho de 1959 e Setembro de 1960,
na sua quase totalidade, a acreditar nas palavras do autor, em Espanha e
na Grécia, que ocupa um total de 104 páginas com as dimensões de 20x17
cm e impresso em Aveiro na tipografia «A Lusitana», no mês de Novembro
de 1960. O exemplar que me foi temporariamente cedido para reconversão e
renascimento da poeira das prateleiras de uma qualquer estante tem no
final o número 194. Na década de 1960 ainda não estava estabelecida a
norma de aposição nas primeiras ou últimas páginas de uma ficha técnica
e também ainda não se falava de ISBN, nem tão pouco se sabia o que isso
era.
O essencial de um livro escrito são as
palavras que ele encerra e, como tal, a sua autoria corresponde a quem
as pensou, sentiu e registou, para si ou para os outros. Mas este livro
de poesia foi enriquecido com as ilustrações de um companheiro da
“Companha” e um companheiro nosso de há longa data, o amigo Gaspar
Albino. Não é por acaso que a capa, ao contrário do habitual, não
apresenta o nome do autor na parte superior. É no canto inferior direito
que se regista: «palavras de COSTA E MELO. Traços de GASPAR ALBINO».
Ao dedicar a publicação «aos da “Companha”»,
Costa e Melo pensou naquele razoável número de amigos aveirenses que,
como ele, alimentaram, durante o ano de 1959, o suplemento do semanário
aveirense “Litoral”. “Companha” foi um suplemento dedicado
exclusivamente às Artes, Letras e Ciências, que pôde ser lido apenas por
três vezes, já que o quarto número não chegou ao conhecimento dos
leitores, apesar de impresso, por falta de apoios publicitários. Se o
quarto número pôde por nós ser digitalizado e disponibilizado na
Internet no espaço «Aveiro e Cultura», ficámos a devê-lo a Pedro Zargo,
nome literário do Dr. Luís Regala, advogado aveirense que teve o cuidado
de juntar todos os exemplares e de os encadernar. Esta efémera
publicação contou com a colaboração de um razoável número de aveirenses,
alguns dos quais tivemos ainda o prazer de conhecer pessoalmente, de
entre os quais aqui citamos apenas os que maior número de artigos
produziram: Pedro Zargo (7 poemas); Pinto da Costa (5 poemas); Dinis de
Ramos (4 artigos); José Palla e Carmo (4 textos teóricos sobre poesia);
Jorge Mendes Leal (3 contos); Vasco Branco (2 artigos); Costa e Melo (2
artigos: Lurçat e Jean Cocteau).
Embora no índice geral de autores que
elaborámos para a versão digital de “Companha” não figure o nome de
Gaspar Albino, a verdade é que uma elevada percentagem das ilustrações
deste suplemento artístico-literário a ele se ficou a dever.
Se quiserem recuar no tempo e também
navegar com todos os marujos de “Companha”,
cliquem no nome do suplemento e poderão ficar a conhecê-lo, pelo menos
enquanto o Ministério da Educação continuar a manter operacional os
servidores do Projecto Prof2000, onde as páginas do espaço «Aveiro e
Cultura» e da escola onde nasceu se encontram alojadas.
Poderíamos ainda tecer algumas
considerações acerca dos «ecos do mesmo GRITO», falar da sua estrutura
bipartida, com duas partes distintas, o Manifesto e as Áticas, e
reflectir um pouco acerca das ideias e sentimentos do autor, da sua
ânsia de libertar o Homem do jugo de deuses e crenças, da sua dialéctica
entre o Bem e o Mal, mas, muito melhor do que aquilo que possamos dizer
do conteúdo, das ideias e preocupações transmitidas por Costa e Melo, é
deixar que seja cada um dos leitores a retirar as suas próprias
conclusões. Assim sendo, é talvez mais interessante falarmos das duas
entidades que permitiram a concretização deste livro: o autor e o
ilustrador.
Manuel da Costa e Melo foi um advogado
da praça aveirense com quem nos relacionámos após a morte e funeral de
um amigo comum, confirmando o aforismo popular que «o amigo do meu amigo
meu amigo é». Que amigo era este que tornou amigos duas pessoas da mesma
cidade?
Antes da morte do amigo comum, o
vizinho e companheiro de café, o jornalista aveirense João Sarabando,
apenas conhecia Costa e Melo de vista, porque frequentávamos um espaço
comum. Era um bom dia ou uma boa tarde, conforme a altura em que ia para
um café ao lado do Palácio da Justiça e, raramente, um aperto de mão
meramente protocolar, porque a confiança entre nós era reduzida. Com a
morte de João Sarabando, em 9 de Fevereiro de 1996, acabámos por nos
encontrar no dia do funeral, junto do jazigo onde o ilustre jornalista
aveirense ficou à espera de retomar a sua actividade numa outra vida.
Neste local, os que ali estavam, por causa de um amigo comum, decidiram
juntar-se, semanalmente, às segundas-feiras, no café ao lado da casa de
João Sarabando. E, neste espaço, semanalmente, passámos a
reencontrar-nos com regularidade durante alguns anos. E a
Tertúlia João Sarabando ainda agora continuaria se o velho da foice
não tivesse levado, aos poucos, os amigos que ali se reuniam. Quanto ao
amigo Costa e Melo, se bem me lembro, penso que a sua assiduidade terá
sido nula, apesar de ter aderido ao projecto da tertúlia. Tirando os
encontros fortuitos no café ao lado do Palácio da Justiça, o meu
reencontro com Costa e Melo ocorreu dois anos após a morte de João
Sarabando. Foi precisamente em 2001, na Escola Secundária José Estêvão,
quando ainda frequentava diariamente esta casa de cultura como
professor.
No dia 22 de Maio de 2001, pelas 16
horas e trinta minutos, o meu Departamento de Línguas Românicas e
Clássicas, no âmbito dos 150 anos do Liceu de Aveiro, prestou homenagem,
na Biblioteca da Escola, a então designada «Biblioteca Histórica», hoje
inexistente, a três figuras aveirenses (Bartolomeu Conde, Vasco Branco e
Costa e Melo) e ao CETA (Círculo Experimental de teatro Aveirense).
[Veja-se: «Homenagem
a Figuras Aveirenses»]
A última vez que tive o prazer da
companhia do amigo Costa e Melo foi poucos dias antes de ter saído do
nosso convívio terreno, em 2002. Há já algum tempo que andava em luta
com o Homem da Foice. Esteve numa guerra involuntária entre a vida e a
morte, quase a ter de ir prestar contas ao Criador ou aos deuses de que
nos fala nos seus poemas ou, quem sabe, a encontrar-se com «são
francisco de assis», o «Santo» em quem ele não cria, mas em quem cria
enquanto HOMEM que foi e que pecou. Mas ainda não foi desta. Conseguiu
safar-se! Ainda não foi desta que foi encontrar-se com os deuses
imortais da Paz, da Guerra, do Céu, e do Mar azul ou com o Deus de todos
os deuses. Venceu temporariamente a primeira batalha com a morte e quis
festejar a vitória com os amigos da Tertúlia João Sarabando, juntando-os
num jantar no restaurante que frequentava habitualmente, na rua por
detrás ou ao lado do Teatro Aveirense. Já não me recordo qual a ementa,
mas lembro-me ainda bem da satisfação de todos nós e, sobretudo, do
prazer do autor de «ecos do mesmo GRITO» por ali poder continuar entre
os vivos. E combinámos que a próxima jantarada não seria ele a pagá-la,
mas todos os elementos da tertúlia, ou, hipótese aventada e por todos
aprovada, cada um rotativamente em data fixa e com intervalo a combinar.
Por muito que o Homem disponha há quem
tenha a última palavra acima de todos os homens. E os encontros
previstos e aprovados nunca chegaram a concretizar-se, porque numa
última batalha, imprevista e mais próxima do que se pensava, o derrotado
foi o nosso amigo Costa e Melo. Dias depois do nosso jantar, que acabou
por ser, afinal, um jantar de despedida, no dia 20 de Agosto de 2002,
com 89 anos, deixava de estar entre nós o autor da publicação que voltou
às nossas mãos ao fim de tanto tempo. E a Tertúlia João Sarabando também
pouco tempo lhe sobreviveu. Aos poucos, os elementos com mais uso da
vida foram sendo levados um a um.
Agora, ao fim de 13 ou 14 anos, eis
que o amigo Costa e Melo voltou a conversar comigo e connosco, não já
através da palavra oral, mas do registo escrito, na publicação «ecos do
mesmo GRITO», graças ao amigo comum que ilustrou o livro.
Henrique J. C. de Oliveira
Aveiro, 11 de Janeiro de 2016 |